Como um ser elementar do imaginário do folklore nórdico, que nos leva do plano terreno ao etérico, Aurora encantou o Campo Pequeno com a sua voz celestial e um discurso, sempre importante, sobre saúde mental e espiritualidade. Entre luzinhas coreografadas no público, intervenções desbocadas da norueguesa e momentos de puro êxtase, o concerto tomou o rumo de uma montanha russa repleta de emoções.
Estávamos no Passeio Marítimo de Algés, mais precisamente no NOS Alive 2024, quando, a meio da sua actuação no Palco Heineken, Aurora anunciou aos fãs que o seu regresso a Portugal já estava marcado para Maio de 2025. A recepção a esse concerto foi calorosa, mas na altura soube a pouco para os fãs da cantora norueguesa que tiveram que esperar nove anos pelo seu regresso. Desse concerto no pequenino Musicbox até à atuação no Campo Pequeno, Aurora construiu a sua identidade sonora enquanto artista de pop versátil e algo à margem das correntes mainstream. Em vez de enveredar por um pop mais comercial, a cantora norueguesa optou por abraçar a riqueza da sua cultura local ao explorar géneros como o folk nórdico ou um pop mais negro e atmosférico reminiscente de outras culturas musicais do seu país.
Todavia, “What Happened to the Heart?” (2024), o álbum que veio promover, vai muito além dessa paleta sonora ao trazer para cima da mesa elementos que vão desde o indie pop ao disco, passando pelo techno. Talvez seja por isso, este espetáculo que Aurora apresentou se traduza tão bem em arenas, sem que momentos mais intimistas se percam na imensidão da sala.
Apoiada por um imponente jogo de luzes e de projeções, Aurora optou por apresentar nesta tour uma cenografia minimalista e sem qualquer tipo de efeito pirotécnico ou confettis, algo bastante comum quando os artistas saltam das salas mais pequenas para as arenas. Ao longo do concerto foram várias a projeções conceptuais, quase sempre com a artista em grande plano, que criaram uma narrativa silenciosa para este mundo profundamente sensorial que Aurora apresenta em palco. Foi exatamente assim que entrou em palco para dar início ao concerto com “Churchyard”.
Em vez de enveredar por um pop mais comercial, a cantora norueguesa optou por abraçar a riqueza da sua cultura local ao explorar géneros como o folk nórdico ou um pop mais negro e atmosférico reminiscente de outras culturas musicais do seu país.
Já com o público a seus pés e numa histeria profunda, Aurora rapidamente percebeu que aquele seria um concerto especial e memorável, não só por ser o fim desta leg da tour, mas também pela paixão que os fãs demonstraram para consigo e com as suas músicas. Da igreja seguimos para “Soulless Creatures”, com uma curiosa Aurora a espreitar por um buraco de uma fechadura. Numa demonstração de que a sua sonoridade também é fruto de um trabalho coletivo de uma banda, a cantora fez-se acompanhar neste tema das harmonias dos dois elementos femininos da sua banda. Com uma clareza tremenda e numa articulação perfeita, as três vozes ressoaram com uma reverberação esplêndida digna de um trabalho irrepreensível dos técnicos de som, algo que se confirmou ao longo de todo o concerto.

«Muito, muito obrigada!», soltou Aurora em bom português. Esta interação na nossa língua foi algo recorrente ao longo do concerto, com a artista a atirar-se a algumas palavras bem desafiantes como «Meus guerreiros e guerreiras». «Senti a vossa falta desde o festival», disse Aurora fazendo referência ao concerto do NOS Alive 2024. «Tive um momento muito mágico naquele festival.»
Mas, entre momentos de maior seriedade, Aurora também demonstrou toda a sua genuinidade e à vontade para soltar alguns “à partes” que alguns podem ter considerado algo inoportuno. Como foi o caso do momento em que disse que estava com vontade de fazer xixi, mas que ia tentar não pensar nisso. Informação a mais, ou não, momentos como este só demonstram a pureza de Aurora e uma ausência total de malícia nas suas palavras.
«A próxima música é sobre o meu líquido favorito no mundo, lágrimas», anunciou antes de partir para uma versão despida de “The River”, aqui já com os quatro elementos da banda a largaram os seus instrumentos para dedicarem-se às harmonias vocais.
Com uma setlist bem encadeada onde as baladas e os temas minimalistas se encruzilharam com a pop mais dançável e efervescente, Aurora soube criar vários momentos de climax e de catarse ao longo do concerto. Da melodia dos fiordes de “A Soul With No King” à pop espiritual de “Heathens”, passando pela new age de “All Is Soft Inside” e uma reinvenção acústica de “Murder Song (5, 4, 3, 2, 1)”, todos os temas chegam-nos com aquela transcendentalidade que emana no repertório da norueguesa e que tantos frissons causa aos mais sensíveis a estas experiências sensoriais.
Numa indústria pop onde as palavras debitadas em palco parecem ter cada vez menos significado e veracidade, Aurora contraria essa postura ao demonstrar que ainda é possivel fazer pop genuíno, com uma mensagem, e sem se deixar corromper pelas pressões do mediatismo do mainstream. Bravo!
Com uma voz ativa pelos direitos da comunidade LGBTQ+, “The Dark Dresses Lightly” trouxe esse apoio para cima do palco com um jogo de luzes arco-íris e uma bandeira a condizer que Aurora empunhou com orgulho. Já mais à frente, “Runaway” trouxe um momento que deixou a cantora de boca abertura. Numa coreografia bem coordenada, o público dividiu-se em três partes para criar com as luzinhas dos telemóveis um esquema com as três cores da bandeira portuguesa. Por sua vez, “Starvation” transformou o Campo Pequeno por momentos numa espécie de Berghain com os seus elementos de techno a levarem o público ao delírio.
Já com o concerto a encaminhar-se para o fim, Aurora preparou as primeiras despedidas com “Giving In to the Love”. O regresso a palco sob um coro ensurdecedor de aplausos e assobios fez-se com um dos temas mais dançáveis do seu catálogo, “Cure for Me”. Seguiu-se “Some Type of Skin” e muitos, mas mesmo muitos agradecimentos a tudo e a todos. Aliás, Aurora não quis mesmo deixar ninguém de fora e até interrompeu de forma caricata a derradeira “Invisible Wounds” porque se tinha esquecido de mencionar o seu segurança pessoal.
Mas, esta foi apenas mais uma demonstração da natureza humana de Aurora e da pureza de espírito que emana. Numa indústria pop onde as palavras debitadas em palco parecem ter cada vez menos significado e veracidade, Aurora contraria essa postura ao demonstrar que ainda é possível fazer pop genuíno, com uma mensagem, e sem se deixar corromper pelas pressões do mediatismo do mainstream. Bravo!












































