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Kanye West: A Teoria do Caos

Kanye West: A Teoria do Caos

Davide Pinheiro
Kevin Mazur / Universal

Por onde começar? Pelos factos? Bom, a eucaristia dominical de domingo, 29 de Agosto, trouxe ao mundo “Donda”, homenagem de Kanye West à mãe do mesmo nome, partida a 11 de Novembro de 2007, vítima de ataque cardíaco devido a reacção a uma complexa cirurgia de redução do peito e lipoaspiração.

Como tantas vezes aconteceu na história da arte, Kanye West fez da dor da perda o parto da criação. Um luto nunca superado é o guião de um álbum tornado telenovela, bem ao seu estilo. Para chegarmos a Donda, foi necessário esperar um mês, três festas de lançamento, promessas, reconciliações, zangas, vinganças, telefonemas, tweets e uma mudança de nome. Para, no fim, Kanye West nos dizer que o álbum foi publicado nas plataformas de streaming sem o seu consentimento. Será esta a versão definitiva de Donda ou, à semelhança de “Life of Pablo”, será uma obra em actualização constante, como um quadro permanentemente inacabado à espera da última pincelada?

West acusou ainda a Universal de ter bloqueado a canção “Jail 2” e responsabilizou o manager de DaBaby por este ter ficado fora de “Jail”, reduzida a Jay-Z, no leque de convidados. Em resposta, Bu Thiam diz ter dado o aval à presença de DaBaby “em dois segundos” e questionou: «porque razão não haveria de autorizar um êxito»? A verdade é que “Jail 2” já se encontra disponível em todas as versões de “Donda”. Em contrapartida, Soulja Boy foi descartado da versão final e não se conteve. «Cobarde», reagiu.

A presença de DaBaby não é inocente. O rapper foi convidado-surpresa da festa de lançamento do álbum na última quinta-feira em Chicago, assim como outra figura inesperada: Marilyn Manson. Duas figuras antagónicas, distantes no tempo e na cultura, mas com algo importante em comum. Ambos foram “cancelados”. DaBaby por comentários homofóbicos e ofensivos para com os homossexuais portadores do vírus da SIDA no festival Rolling Loud em Miami. Manson devido a acusações de violação e abusos sexuais por várias mulheres, incluindo a ex-noiva Evan Rachel Wood.

Ao convocar DaBaby e Marilyn Manson, creditado no álbum como Brian Warner, o nome verdadeiro, West está consciente da provocação e alimenta-se dela. Nada de novo para quem no passado escreveu no Twitter “Bill Cosby está inocente”, depois de o actor ter sido acusado de abusos sexuais por sessenta mulheres.

Donda West é a figura central do álbum, mas nem sequer é a única protagonista. O caos que atravessa “Donda” ao longo de duas horas é apenas um frasco de tinta permanente. Recapitulando os últimos acontecimentos, há o divórcio de Kim Kardashian West, presente com os filhos na festa de lançamento em Atlanta, e de quem o sempre bem informado TMZ diz estar empenhada na reconciliação entre ambos. Há a entrega do processo para mudar de nome para Ye, cumprindo uma promessa de 2018. E há uma batalha juvenil com o ex-amigo Drake, contrariando uma reconciliação anunciada (e concretizada no caso de Jay Z), reacendida pelos versos “All these fools I’m beefin’ that I barely know/45, 44 (burned out), let it go / Ye ain’t changin’ shit for me, it’s set in stone” em Betrayal de Trippie Redd. Em resposta, Kanye West publicou a morada de Drake mas a reacção não tardou. Fãs do canadiano vandalizaram a casa onde Kanye West cresceu com recados como “CLB (Certified Lover Boy) em breve”, “44-45 burned out (esgotado)” ou “que se foda Justin LaBoy”, influenciador e amigo de Kanye West.

Há quem diga que o conflito terá recomeçado porque Kanye West quis editar “Donda” na mesma data de “Certified Lover Boy”. Tal já não irá acontecer, porque “Donda” está cá fora, enquanto o álbum de Drake chega esta sexta-feira.

Por tudo isto, como aguardar o regresso de Kanye West a uma “normalidade” desconhecida? A insanidade sempre foi a sua fé, a questão é para onde a leva.

“Donda” está repleto de convidados da nova primeira classe da música popular. The Weeknd, o já referido Jay-Z, o falecido Pop Smoke, Travis Scott, Lil Baby, Kid Cudi, Lil Durk, Lil Yachty, Baby Keem, Playboi Carti, Ty Dolla $ign, Don Toliver, Fivio Foreign, e Chris Brown. Lauryn Hill é samplada em “Believe What I Say”, uma das canções mais celebradas entre as primeiras reacções.

O caos atravessa “Donda”. Impossível dissociar os acontecimentos supra-citados de uma epopeia de 108 minutos, obcecada com Donda e com Diabo. “God’s Not Finished” repete em “24”. Estará a comunicar com uma entidade superior ou a ver-se ao espelho? É muita informação para digerir e, insista-se, ninguém pode garantir que esta venha a ser a versão final, mas este é o Kanye West de sempre. Excessivo, provocador, impulsivo, racionalmente excessivo e obsessivamente calculista em relação a todos os detalhes.

O conflito entre o Cristianismo e o ego é latente. A temência a Deus, e o drama da morte da mãe são comida para a alma do profeta. O corpo de trabalho de Kanye West é parte de uma missão. Por ele e por quem? “Life of Pablo” (2016) foi um resumo alargado de toda a obra anterior, “Ye” (2018) bateu no fundo, enquanto “Jesus Is King” (2019), o “álbum gospel”, não inteiramente compreenda. “Donda” ainda procura um lugar na megalómana história de alguém que procura superar-se a si mesmo, para ser visto acima dos terrenos. Como um Deus de si mesmo, todo poderoso da fragilidade, transparente e desmedido. Ele e ele, em conflito pelo outro.