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AS10 | Melhores Álbuns Nacionais 2019

AS10 | Melhores Álbuns Nacionais 2019

Redacção

Na nossa perspectiva, ainda que tenham surgido novos projectos de forma fulgurante, 2019 foi um ano de particular consagração de alguns nomes históricos. Eis os álbuns nacionais que mais gostámos de ouvir.

A música portuguesa continua a mostrar novos valores todos os anos. Mas também há alguns veteranos que insistem em manter o seu vigor artístico, não é Lena d’Água? E, falando em veteranos, porque razão os Mão Morta nunca extravasaram as nossas fronteiras, é a pergunta que fica a cada disco. Já muitos tentaram responder e ninguém consegue. Algo que também se poderia dizer dos Gaiteiros.

A maturidade que vai chegando aos compositores, nos mais variados géneros, vai permitindo a assinatura de obras idiossincráticas com um enorme carácter, casos do rapper Slow J ou dos metalheads Besta e Martelo Negro. Deixar ainda uma saudação a discos que não ficaram nesta lista, mas são fenomenais, como “Aurora”, dos Sensible Soccers, ou “Yess”, dos Paus.

Eis os melhores álbuns nacionais que ouvimos em 2019. Sem ordem específica. Como sempre, procurámos ser eclécticos.

MÃO MORTA | NO FIM ERA O FRIO

“O Mundo Não É Mais Um Lugar Seguro” estabelece o majestoso ambiente sonoro do álbum. Sintetizações luxuriosas e guitarras sobrecarregadas de efeitos criam uma parede fria e, de certa forma, também extremamente envolvente às palavras distópicas de Adolfo Luxúria Canibal.  Distopia ou realismo mágico? “Um Ser Que Não Se Ilumina” contém o charme estrutural de uns Swans, mas com todas as idiossincrasias de Mão Morta. O seu corpo, a sua estrutura e força rítmicas, o desespero prímevo vocal… “Quem És Tu”/”Oxalá”, novo movimento de introdução e canção, com destacadas vozes corais. O enorme peso de “Passo O Dia A Olhar O Sol”. O hipnotizante díptico “Invasão Bélica”/”A Minha Amada”com a sua propulsividade rítmica, ainda que simples, num cruzamento entre electrónica e acústica; os drones sónicos de sintetização e cordas; e as palavras que quase descrevem uma fantasia erótica e distópica de Paolo Eleuteri Serpieri, criaram um dos melhores momentos da discografia dos Mão Morta.

“Deflagram Clarões De Luz” é um boogie orelhudo. Um rock ‘n’ roll que se gruda instantaneamente na memória. Se haverá uma canção que poderá ser isolada deste homogéneo disco, é esta e o seu mesmerizante final, cujos “clarões” melódicos transportam alguns dos momentos mais calorosos no conceito “No Fim Era O Frio”. A terminar, “Isto É Real”, passe a idiotice de enumerar referências a Mão Morta, soa a uns The Stooges mais contemplativos, antes de “Sinto Tanto Frio” encerrar o álbum, revestindo-o uma vez mais dum espesso corpo de guitarras e de densidade no baixo e nas sintetizações.

TROLL’S TOY | 18:05

Desde a introdução de sintetização ou o seguinte “Mandatory Eight Count”, desde o início, portanto, fica explicíto que por mais experimentais que sejam os temas, o envolvente corpo sonoro e a produção sedutora de “18:05” criam uma sensação de uniformidade no álbum. Há um peso subjacente, não declarado (ou talvez até seja), que mantém o disco texturalmente bem espesso. E depois a soberba prestação de João Martins na bateria, que cola todos os elementos polirrítmicos de forma magistral. Valia, por si só, o disco!

“Derrota” acentua a dimensão contemplativa desses pressupostos sonoros supra-citados. Melodicamente, com evidente protagonismo dos saxofones de Gabriel Neves, a simplicidade é o maior trunfo deste álbum. Um álbum fácil, digamos assim, de acompanhar e de interiorizar, sem excentricidades gratuitas ou presunçosas, mesmo quando surgem os momentos de maior complexidade ou mais Zappescos, como “Aveiro”. Cada um dos capítulos de “18:05” evolui através de elegantes crescendos, mais que de contrastes dinâmicos, que também existem como nos mostra “Khat”.

SLOW J | YOU ARE FORGIVEN

No dia 21 de Setembro, de 2019, o álbum simplesmente apareceu. Não existiram truques ou estratégias, apenas o mais importante, a música. Slow J quer expressar-se e explorar a vida através da sua discografia e “You Are Forgiven” entra em campos de profunda honestidade pessoal. Envolto em produção moderna, com muitos elementos comuns ao hip-hop, principalmente a percussão e os graves carregados, não se fecha num círculo, abrangendo também ritmos africanos (“FAM”), segmentos virados para o R&B (“Onde É Que Estás”).

E as influências tipicamente portuguesas, como sucede em “Lágrimas”, canção que, segundo o próprio autor, é o tema central do disco. Um exercício pungente sobre o aborto espontâneo que o artista e a namorada enfrentaram, onde é expressa a dor sentida e o desejo de mudar a realidade. É estampada por uma das melhores performances vocais no álbum e o instrumental carrega a melancolia guitarra portuguesa de Nuno Cacho. “Silêncio” é o arco final na arquitectura do álbum. Uma reflexão sobre a sua evolução na vida, combinando o passado e o presente, ao mesmo tempo que procura alcançar conclusões sobre o que realmente importa. «Tenho andado à procura do culpado / Da tristeza que trago / Disparei ‘pa todo o lado resta o autor dos disparos».

BESTA | ETERNO RANCOR

Implacável, a ferocidade de Besta é alimentada por um tremendo savoir faire do line-up. A coesão da banda advém da bastardia de um certo balanço death ‘n’ roll dos We Are The Damned e violência sanguinária do frontman. Demência, horror e… punk, é o que nos é oferecido a cada álbum. Torna-se distinto este disco por cristalizar uma progressivamente crescente consciência social que o grindcore da banda foi desenvolvendo nos últimos anos. Sonicamente, este álbum prossegue uma estética apegada aos padrões do género no final dos anos 80, sem grandes compromissos na atitude. É old-school, revestido de algum caparro extra de low end. Ou seja, groove à bruta no que respeita ao som e ao vigor de execução da banda, na qual se destaca o dinamismo instrumental e o facto da voz não ser uma espécie de one trick poney.

LENA D’ÁGUA | DESALMADAMENTE

Trinta anos depois do seu último álbum de originais em nome próprio, Lena d’Água regressou aos discos. Em “Desalmadamente” todas as letras e músicas são da autoria de Pedro da Silva Martins (Deolinda, Ana Moura, António Zambujo, Cristina Branco, Sérgio Godinho), com arranjos de João Correia, António Vasconcelos Dias, Sérgio Nascimento, Mariana Ricardo, Francisca Cortesão e Benjamim, com a produção destes quatro últimos. A diversidade de gente que construiu este trabalho é reflectida na sua sonoridade. O elemento comum é a forma jovial, descomplexada e cheia de vigor com que soa a voz da nossa Leninha.

Talvez o disco seja ainda mais bonito por revelar a admiração que tanta gente na nova música portuguesa admira a cantora e a sua obra e por mostrar que a amizade e a dinâmica da intercomunicação  continuam a ser factores preponderantes na música enquanto arte, isto numa sociedade em que o indivíduo de vai isolando, expondo apenas excertos minuciosa ou sarcasticamente filtrados da sua vida em plataformas de enferma interacção social. É a nudez emocional, de alegria contagiante, deste disco que o torna tão especial. Como se a Lena fosse nossa!

THE SPILL | PRETTY FACE

Ao segundo disco, os The SPiLL iniciaram um novo capítulo na sua existência primeiramente infundida pelo jazz e pelo rock, um que os catapultou na direcção de um universo explosivo e assertivo. Não existem pretensões quanto ao rock que praticam – é um acto desmedido, mas calculado, rematado pela inabalável voz de Sara Badalo. E extremamente orgânico. As dinâmicas de percussão são arrasadoras. “Vain”, “Get This Thing Done”, “Bitch Is Gone” são malhões com riffs irresistíveis que certamente terão cativado Alain Johannes, que misturou “Pretty Face”.

O disco tem uma alma esquizofrénica, composta por elementos melódicos excêntricos, de desconstrução do óbvio, sem nunca perder o equilíbrio entre aquilo que é fascinante para a banda, na sua exploração explosiva duma fusão com rock e electrónica, e o que é fascinante para o ouvinte. Tem a cara de uma miúda atrevida, nascida de um romance promíscuo entre os Queens Of The Stone Age e os Battles. Tem uma cara bonita.

GAITEIROS DE LISBOA | BESTIÁRIO

Os Gaiteiros de Lisboa são Carlos Guerreiro, Miguel Quitério, Miguel Veríssimo, Paulo Charneca, Paulo Tato Marinho e Sebastião Antunes. “Bestiário” é o sexto disco de originais dos seus quase 30 anos de carreira. Os sopros tradicionais, a percussão e as polifonias vocais continuam no centro, a música ao seu redor continua a ser surpreendentemente moderna, inventiva, viva, contemporânea e ao mesmo tempo intemporal.

No prefácio do disco, Carlos Seixas usou palavras que o traduzem bem e às quais, por reverência ou preguiça “mafarriquenha”, nada teríamos a acrescentar, talvez apenas que é extremamente humoroso: «Com a língua afiada, túbaros de Orpheu, cabeçadecompressorofone e clarinetes acabaçados na memória de todos, a irreverência e luta têm sido as matérias-primas de um grupo que inova e se renova ano após ano: vinte e oito passados a criar a mais refrescante e insubmissa música portuguesa».

ANDRÉ CARVALHO | THE GARDEN OF EARTHLY DELIGHTS

Uma obra notável criativa e instrumentalmente, onde coabitam o trompetista Oskar Stenmark e os saxofonistas Jeremy Powell e Eitan Gofman (naquela que é a face mais tradicional da linguagem jazz neste disco) com a alma rocker e explosiva que é imprimida no álbum pelo baterista Rodrigo Recabarren e o guitarrista André Matos. No meio de tudo, a sobriedade dos baixos do grande arquitecto, André Carvalho.

É recorrente usar-se a expressão de que as palavras são insuficientes para descrever aquilo que se pretende. Poucas vezes isso é tão ajustado como no caso do extraordinário terceiro disco de André Carvalho. “The Garden Of Earthly Delights” é um titã conceptual inspirado no críptico e tríptico painel de Hieronymus Bosch, com o mesmo nome, que reside no Museu do Prado, em Madrid. A miríade de paisagens e detalhes musicais é arrebatadora e elegantemente fundida por luxuosas orquestrações, num crescendo de camadas, primeiro a cada música, e de intensidade, ao longo do disco. Um trabalho carregado de contrastes e de jogos dinâmicos soberbos, como em “Dracaena Draco”, em que a exuberância instrumental progressivamente se transforma num eloquente monólogo do baixo. Um álbum verdadeiramente notável.

MARTELO NEGRO | PARTHENOGENESIS

“Parthenogenesis”, o terceiro álbum dos Martelo Negro, mantém os pressupostos estéticos thrash/black metal da banda – um grande caldeirão sacrílego onde estão combinados HellhammerCeltic FrostNapalm Death, os Entombed e uma certa atitude e cadenciação rock ‘n’ roll – dotado de uma natureza arcaica. Os temas são feitos de riffagem tão esmagadora quanto crua, o peso da sonoridade apodrecida é avassalador. Por simples que soem estas evocações de vileza primordial, conseguir dar-lhes carácter é o truque e se os músicos não revelam pretensões de malabarismo técnico, o groove que conseguem transladar para o disco é qualquer coisa digna de registo. Nota-se a evolução da banda nas composições, com melhores evocações atmosféricas e maior preocupação dinâmica. Ainda assim, o disco retém todo o charme underground dos álbuns anteriores, além do despretensioso humor macabro de sempre.

TGB | III

“Red Manalishi”, logo a abrir o álbum, terá que ser o tema jazz mais pesadão de sempre. A guitarra de Mário Delgado, com slide e reverse delays, evoca a tundra norte-americana, mas quando a bateria de Alexandre Frazão e a tuba de Sérgio Carolino, frenéticas, se lhe juntam, emerge a sombra de John McLaughlin e da Mahavishnu Orchestra nuns épicos oito minutos de fusão. Gravado por Pedro Vidal nos estúdios de Vale de Lobos (misturado depois nos Auditiv), “III” é propulsivo, shredder e exótico. É surpreendente e divertido ouvir a forma como Carolino desdobra o seu instrumento para cumprir o papel de um baixo ou para conduzir melodicamente os temas e até a forma como soa pesada ou suave, simples ou extravagantemente multifónica.

Se nem sempre o álbum é directo para o ouvinte, como sucede nesse tema de abertura, em “Flint”, “Sete Portas Mal Fechadas” ou “Knife To Meet You”, não deixa de ser entusiasmante de procurar desvendá-lo. A banda, nos momentos calmos como “Starless” ou nos explosivos como “Clockwork” (Mãe do Céu, Frazão!) revela um dinamismo e coesão super-humanos. Algo ainda em maior evidencia pela forma como o revestimento sonoro instrumental soa cru. O terceiro álbum do trio, obedece à sua sugestão de matemática mágica e roça a perfeição.