Quantcast
ENTREVISTA | Electronic Warfare, A Residência Dedicada à Música Electrónica

ENTREVISTA | Electronic Warfare, A Residência Dedicada à Música Electrónica

Miguel Grazina Barros
Miguel Grazina Barros

Electronic Warfare é uma residência artística em parceria com a Rua das Gaivotas nº6.

Numa típica e íngreme rua lisboeta acontece a Electronic Warfare. Diogo Melo é o responsável pela curadoria e o fundador da residência artística, que se iniciou em Abril de 2021, primeiro ainda no estúdio em sua casa. Ainda no mesmo ano, e lutando contra todas as restrições impostas pela pandemia, a Electronic Warfare (EW) deslocou-se para a Rua das Gaivotas 6, onde acontece até hoje. Com um percurso que passou pela Engenharia Electrónica e uma pós-graduação em Arte Sonora, Diogo é o catalisador desta residência que se preza pela confiança mútua e dá origem a peças sonoras com as mais diversas finalidades. Existe um sentimento de inter-ajuda e partilha de interesses e conhecimento, possibilitando a estes artistas o contacto com instrumentos e técnicas em estúdio que de outra maneira, não teriam fácil acesso.

No estúdio podem encontrar-se sintetizadores, drum machines, racks de efeitos e no centro disso tudo, o Ableton Live – o coração moderno de todo um ecossistema que funde máquinas vintage com modernas, o analógico com o digital. À primeira vista, pode observar-se um Roland Sh-09 personalizado, um Roland JX-8P, um Nord Lead 2X, um Casio CZ-5000, um mítico Yamaha DX7, uma string machine Crumar Multiman-S e um Roland SH-2000, o segundo sintetizador a ser produzido pela Roland. No meio destes gigantes, o semi-modular Behringer Crave, uma Drum Machine Boss DR-550, e um Novation Nova não passam despercebidos, tal como a mítica unidade de efeitos em rack Alesis MidiVerb II. São muitas máquinas com história, apesar de Diogo admitir o amor imediato que os artistas que por ali passam têm pelo knobs do Nord Lead e pela imediatez do Crave, ambos sintetizadores modernos. A Arte Sonora esteve à conversa com Diogo Melo, que nos abriu as portas do seu estúdio recheado de surpresas.

Qual é a razão que te levou a começar o programa naquela altura?
Estive alguns anos ligados a indústrias onde a partilha de material é uma estratégia de sobrevivência quase como o Cinema e oficinas colaborativas como os Fablabs/makerspaces em lisboa por exemplo. Ficou-me dessa experiência que é possível partilhar com outros o teu material desde que exista uma base de confiança mútua. Pedir a um amigo músico um suporte de micro é quase pedir o filho primogénito, muito menos um synth ou guitarra mas quem é director de fotografia ou de som empresta ao colega uma câmara ou gravador numa base de confiança. Num Fablab estás a usar uma cortadora laser de 50k€ passado meia hora de conversa e as pessoas confiam em ti. Percebi também que queria continuar a fazer outras coisas na vida para além da música e que nunca iria querer estar em estúdio sempre. Em conversa com um amigo meu (Francisco Couto aka HIFA) combinamos que ele poderia vir à minha casa em residência, dormir lá e usar o estúdio durante uma semana. Com isto pedi um logo ao Afonso de Matos e assim começou a EW.

O espaço onde acontece a residência é um estúdio em desenvolvimento. Como foi o processo de recolha de material? Tens algum apoio?
Desde dos 16 anos que toco e que vou tendo a necessidade de ter um estúdio. Depois de muitas fases em que me aproximei e afastei da música, em 2017 voltei a ter vontade de voltar a construir um estúdio. A música e o som voltaram para a minha vida de uma perspectiva profissional, não em bandas (thank god) mas noutros contextos como performance e arte sonora por exemplo. Até agora ainda não temos apoios financeiros, é tudo suportado pelo meu estúdio e algumas doações de material mais pequeno. Desde essa altura que voltei a procurar instrumentos e como tenho a facilidade de reparar grande parte do que encontro por aí foi relativamente tranquilo construir o que agora temos. Tudo é material que aparece casualmente, nada foi “grandes paixões” por assim dizer. Essas paixões são demasiado caras hoje em dia. Em 2002 comprei um Roland Juno-60 por 300€ do Reino Unido com portes, hoje seria dez vezes mais. É incomportável estar ao sabor das modas e também não é por ter um Moog ou Prophet-5 novo que vais ser melhor seja no que for. O estúdio serve-me também para desmistificar isso, daí a aposta em tipos de síntese diferentes como subtractiva, FM, PD e vector synthesis.

É incomportável estar ao sabor das modas e também não é por ter um Moog ou Prophet-5 novo que vais ser melhor seja no que for.

Como escolhes quem deve ter direito à residência? Prezas quem não tem fácil acesso ao material?
Preferimos sempre desafiar quem não é músico a tempo inteiro. Há uma serie de artistas plásticos e sonoros, atores, performers, entre outros, que podem ou não saber de música mas têm um genuíno interesse em som.
A nossa ideia sempre foi abrir o estúdio a quem não tinha experiência ou acesso a este tipo de espaços. Muitas vezes até queres fazer um investimento mas em que instrumento? Sem experiência é quase impossível perceber o que é melhor para cada um. A EW também te ajuda a ter uma opinião mais informada quando fores investir no teu próprio estúdio. Inicialmente foram convites a pessoas a quem reconhecia talento mas que não tinham mais do que um software, um controlador MIDI e pouco mais. Muitos tiveram a primeira experiência de gravação aqui, outros já gravaram albuns e expõem o seu trabalho regularmente. Futuramente iremos ter open-calls consoante os apoios que consigamos obter. A EW é um programa de residências sem fins lucrativos e gerido por voluntários.

De que maneira a pandemia influenciou a realização da residência?
Foi muito importante, foi um momento em que pelas piores razões passamos a ter mais tempo e mais necessidade de expressão. Quem o pôde fazer no estúdio inicial usufruiu de um momento de criação que dificilmente seria acessível naquela altura. A Adriana João chegava a ficar até às 4h da manhã em minha casa.

Quando os músicos chegam ao estúdio, qual é a primeira reação perante o material, e quanto tempo demoram a habituar-se ao espaço?
Normalmente é sempre a ansiedade do paradoxo da escolha. Há tanto por onde começar que é difícil escolher. Desenhei o estúdio de forma a que esteja tudo ligado ao computador, que é a mesa de mistura neste momento, e que seja o mais simples possível para começar a experimentar. Começo por mostrar onde está tudo, como se liga, falo sobre o software que usamos, Ableton Live, e sobre os synths. No final do dia os artistas já estão à vontade para trabalhar sozinhos.

Qual é a duração de cada residência artística?
Cada residência é por uma semana, onde só estou no primeiro dia para fazer a introdução ao estúdio.

Tendo um background em eletrónica e em música, qual é o teu papel durante uma residência? Isto é, influencias de alguma maneira a criação artística que acontece durante aquele período?
O meu papel é o mínimo possível. Mostro os cantos à casa, ensino o mínimo para que os artistas sejam autónomos e o resto é com eles. Não tenho nenhum requisito temático nem influência sobre o trabalho de cada um, pedimos apenas que nos forneçam uma peça para efeitos de arquivo. O programa de residências é sobre os seus participantes e não sobre mim ou o sobre o estúdio em si.

O programa de residências é sobre os seus participantes e não sobre mim ou o sobre o estúdio em si.

Os resultados das residências são expostos de alguma maneira? Ou ficam apenas para o portfólio de cada músico?
A residência é um meio para os artistas terem melhores condições para criação. Os trabalhos resultantes têm o encaminhamento que os artistas quiserem, desde álbuns, peças sonoras e ambientes sonoros para espectáculos. Desde que estamos em parceria com a Rua das Gaivotas 6 que todos os artistas que apresentem o seu trabalho no espaço estão convidados a fazer a nossa residência, mas futuramente esperamos alargar o leque de colaborações.

Que músicos integraram a residência até hoje?
Até ao momento tivemos – Francisco Couto (HIFA); Adriana João; Hugo Januário; Leo Soulflow; Inês Borges; André de Campos; Inês Marques, Joana Brito Silva e João Gamory; Diana Carvalho; Gonçalo Alegria; Isabel Cordovil. Todos são artistas antes de tudo o resto, ninguém é exclusivamente músico nesta lista. Interessa-nos apoiar a interseção do seu trabalho com o som. É nessa hibridez que nos interessa viver.

Que instrumento no estúdio costuma suscitar mais interesse por parte dos músicos?
No meio de tanta escolha vão para os botões do Nord Lead 2X ou Behringer Crave mas rendem-se ao som o Roland JX-8P. O Crave como tem sequenciador interno e é muito simples de operar oferece-te logo algo de interessante com poucos tweaks.

Se tivesses de escolher apenas 3 instrumentos/gear do teu estúdio, quais escolherias?
Tenho uma luta constante entre nerdisse e vida real mas normalmente ganha a vida real. É também um exercício interessante para mim perceber que no meio de tantas coisas acabo sempre a usar sempre o JX-8P, o Nord Lead 2X e uma unidade de efeitos Alesis MIDIVERB II. É sempre este trio em estúdio. Ao vivo é o Crave, Novation Nova e o MIDIVERB II também.

Quais são as expectativas futuras para o programa? 
Para além de financiamento seria alargar o estúdio para outros campos, mais ligados à arte sonora, composição e ensino. Para isso vamos tentar diversificar o material e estabelecer parcerias com instituições de ensino e outros colectivos para partilhar e conhecer outro tipo de abordagens de trabalho em som. Essencialmente tudo o que possibilite a partilha de métodos de trabalho com som porque é nesse lugar que sentimos que fazemos falta.