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Entrevista | IAN Entre a Fé e o Paraíso

Entrevista | IAN Entre a Fé e o Paraíso

Nuno Sarafa

Conhecida pelo seu trabalho na Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, como primeiro violino, Ianina Khmelik carrega a solo um verdadeiro desafio de liberdade. Apesar do virtuosismo, IAN é uma incitação à originalidade, quer na forma como funde uma espécie de electrónica “kraftwerkiana” com melodias cativantes, quer na atitude que transmite em palco.

O disco de estreia, “RaiVera”, chegou em Agosto passado e foi bem acolhido. Mas Ianina – ou o seu alter-ego artístico IAN – espera que 2021, apesar da pandemia, seja o ano da sua consolidação no panorama nacional, no mínimo.

Em entrevista à AS, IAN conta que, apesar de 2020 ter sido um ano controverso, houve muitas vitórias. Para além da edição do seu primeiro-longa duração e da apresentação do mesmo ao vivo, a artista foi ainda responsável pelo tema genérico da série da SIC “O Clube”, tendo igualmente recebido um convite para ser autora do Festival da Canção 2021, onde participará em Fevereiro com um tema original.

Ianina, que iniciou os seus estudos musicais com apenas cinco anos, em Moscovo, e que mais tarde ingressou na Escola Profissional de Música Gnessin, já venceu um prémio no Concurso para Jovens Músicos de Moscovo, estudou na Holdstadt Schulle em Schlewig-Holstein, na Alemanha e, aos 15 anos, instalou-se finalmente em Portugal.

A maior parte da sua carreira em Portugal tem sido como primeiro violino da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, mas eis que agora decidiu aventurar-se a solo por terrenos electrónicos, onde fala da Rússia, da sua infância, da sua adolescência, de amores e desamores, onde se abre ao mundo, finalmente, como se de um primeiro livro se tratasse.

A produção dos nove temas ficou a cargo de Nuno Gonçalves, dos The Gift, havendo ainda um dueto com Pedro Oliveira (Sétima Legião). Olhando para o futuro, IAN sonha partilhar ideias com Laurie Anderson.

Este trabalho afasta-se totalmente daquilo que tem sido grande parte do teu percurso na música, que é mais clássico. E quem estiver à espera de ouvir um disco cheio de violinos está redondamente enganado…
Não foi propriamente quebrar com o passado. Talvez musicalmente, sim, mas em termos de ideia, este disco surge da vontade de mostrar o meu passado, porque enquanto violinista não tenho voz, sou intérprete na maior parte das vezes, embora já tenha feito arranjos para outras bandas, mas são músicas que não são minhas. Dou uma parte de mim, uma parte pequena, mas nunca é uma criação totalmente minha. Na verdade, nunca consegui mostrar o meu outro lado, aquilo que sinto, a vontade de compor e de expressar precisamente sobre o meu passado, porque o “RaiVera” começa com o passado; é, digamos, o início de um livro. Este foi o primeiro capítulo desse livro. Vem aí mais.

Procuro a felicidade a fazer aquilo que me preenche e notei ao longo dos anos que ser intérprete não me preenchia na totalidade

Este é um disco quase totalmente electrónico, por vezes dançável, mas algo frio, sombrio e onde se notam influências de nomes como Björk ou mesmo Portishead. Revês-te nisto?
Revejo completamente. Recentemente, fui ver a Björk em Glasgow e, no final, quando cantou “Mantra”, disse: ‘Pronto, agora podem dançar!’ Mas como é que tu danças ao som da música da Björk [risos]. Não é música quadrada, circular, previsível… E eu revejo-me tanto nisso. E também no facto de ela ser super inovadora, sempre com sons completamente novos, únicos. Isso influenciou-me imenso quando estava a escrever este disco. E, claro, Portishead, que faz parte da minha adolescência e do meu crescimento. Outra grande influência é o Tricky, mas mais ao nível das letras, são muito bonitas, ricas e inteligentes.

Já tinhas editado dois EP (#1 e #2), mas porque é que esperaste tanto tempo para te lançares a solo com um longa-duração? Foi medo?
Também, sim. Parecendo que não, é um desafio bastante grande, mas acho que cheguei a um ponto de maturidade que me permitiu ter essa coragem. Procuro a felicidade a fazer aquilo que me preenche e notei ao longo dos anos que ser intérprete não me preenchia na totalidade. Foi por isso que comecei a ter aulas de Logic, comecei a aprender produção musical, porque até então essa realidade era completamente longínqua para mim. Foi bastante difícil, juro, porque tudo o que tenha que ver com computadores sempre me fez alguma confusão.

imagino que começar a trabalhar com ferramentas de produção tenha sido um passo importante.
Muito importante. Comecei a trabalhar com o Logic em finais de 2016. E, depois, quando comecei… fiquei viciada, o meu cérebro deu um nó. Tive aulas na Dance Planet do Porto e adorei. O Logic é simples e intuitivo, adoro trabalhar com esse programa. Nunca tinha feito nada disso. Sempre criei apenas com violino e voz, mas sempre estive dependente de alguém que ajudasse a fazer o resto e, ao aprender a mexer com esta ferramenta, abri o meu campo de possibilidades. Foi brutal. Foi uma aquisição muito importante para o meu conhecimento.

Quais foram os truques que mais abusaste?
Para ser honesta, essa pasta passeia-a para o Nuno Gonçalves. Mas sei que fizemos algumas coisas engraçadas, tipo pôr a voz a correr ao contrário; não se nota muito, porque está lá no fundo, mas dá uma textura sonora diferente e no resultado final fica muito engraçado. Não usámos muito reverb, é um disco um pouco mais fechado… não abusámos de muitos efeitos. Mas há várias partes de beats feitas com ritmo corporal, a fazer outra camada por cima dos beats electrónicos construídos de raiz. Esses pormenores vêm da minha aprendizagem na Casa da Música em termos de música contemporânea. Quis juntar todas as minhas experiências.

Não são apenas sons do Logic, tem muitos plugins e efeitos incríveis que o Nuno Gonçalves usou em grande parte para alterar aquilo que eu tinha feito inicialmente

Então, construíste tu as bases do disco no Logic?
Sim, a maior parte da composição dos temas esteve a meu cargo; letras e músicas. Quando comecei a trabalhar com o Nuno [Gonçalves], algumas músicas já estavam mais acabadas do que outras, já com estruturas mais sólidas, não só em termos de composição, mas também em termos sonoros, plásticos. Outras, não, outras precisaram de mais trabalho em estúdio, já com o Nuno. Mas muitos dos beats fui eu que construí, apesar de ele ter feito aqui um grande trabalho, teve um papel determinante no resultado final do disco. O que ouves não são apenas sons do Logic, como se compreende, tem muitos plugins e efeitos incríveis que o Nuno usou em grande parte para alterar aquilo que eu tinha feito inicialmente, sozinha, na minha casa. Também estiveram envolvidos o Andrés Malta, o Francisco Reis e dois produtores russos, de Moscovo, da Mars Records [Georgiy Stefanov e Alex Suprunov], que fizeram o arranjo do tema “Freiheit”. Eu queria assim uma coisa mais russa, mais fria. E a Rússia não é apenas fria em termos de clima, historicamente nós sofremos muito, pobre povo. E continuamos a sofrer enquanto povo.

E esse sofrimento reflete-se na criação artística…
Reflecte-se em tudo. No trato das pessoas, na arte, em tudo. E esse tema, apesar de cantado em alemão, tem um toque muito russo, muito frio, áspero, que me agrada bastante. Sei bem que o disco é algo negro, mas depois há o tema “Temporary Perfect”, que é colorido, quase cor de rosa, é a parte de fé deste disco no meio da escuridão.

Então, este disco começou por ser uma criação solitária que depois se abriu à participação de outras pessoas…
Sim. Foi muito solitário o processo de construção do álbum. E algumas músicas até já têm alguns anos, eram coisas que tinha guardadas. Entretanto, editei o EP1 e o EP2, mas algumas das músicas que entram em “RaiVera” já existiam antes desses EP. Mas senti que esses temas não se enquadravam nesta história e que mereciam fazer parte de um capítulo maior, de uma produção diferente, também.

Daí a escolha de Nuno Gonçalves, que está intimamente ligado à música electrónica, para a produção deste disco?
Sim, fui eu que escolhi trabalhar com ele. O Nuno não precisa de provar mais nada na música… e, para mim, é difícil encontrar alguém que admire assim tanto, quase cegamente ao ponto em que sabes que as coisas vão correr bem, sabes que ele não vai desvirtuar o teu trabalho ou roubar a identidade inicial. Sabes que vai enriquecer o teu trabalho. É muito difícil encontrar uma pessoa assim. Tivemos algumas discussões saudáveis no La Folie Studios, em Alcobaça, mas, mesmo nessas ocasiões, se eu tivesse razão, ele acabava sempre por concordar. Nunca tentou impor as suas ideias. Foi mesmo fácil trabalhar com ele.

E como chegaste até ao Pedro Oliveira para o tema “Again”?
O Pedro é aquela voz… [Ian começa a cantarolar “Por Quem Não Esqueci”, dos Sétima Legião, banda à qual Pedro Oliveira deu voz]. Foi uma escolha totalmente natural. Eu componho em várias línguas, apesar de a maioria ser em inglês, mas para “Again”… pensei logo nele, foi mesmo uma escolha muito natural, imaginei-o imediatamente a cantar este tema e fiquei muitíssimo feliz pelo facto de ele ter gostado e, principalmente, ter participado com a sua voz. Era mesmo a voz dele que eu queria… Quando ele diz, por exemplo, “amor”… até me arrepio. Não houve qualquer direcção, foi tudo super natural, super rápido, incrível. Ele gravou em Lisboa no estúdio do Rodrigo Leão, mandou-me o take e não se mexeu em absolutamente nada.

Nesse tema – “Again” -, cantas em português. Chegaste a pensar o álbum para ser em português ou isso nem te passou pela cabeça?
Sabes que sou de desafios, mas a verdade é que já estou em Portugal há mais de 20 anos e até considero que falo bem a língua, mas quando canto sai-me um sotaque muito esquisito. É muito engraçado! [risos] Não imaginas o que me custou gravar a minha parte nesse tema. Pode ser que no futuro faça um disco apenas em português. Mas na verdade gosto de cantar em inglês e de ouvir os temas em inglês, é uma língua internacional e acho que assenta bem nos meus temas. Não é apenas pelo desafio de cantar em português e de escrever em português, que é realmente difícil. É muito fácil ultrapassar aquela fronteira muito ténue do… piroso, digamos. Ao escrever em português é muito fácil cair-se no óbvio, no feio e vulgar. E se não tens um vocabulário abrangente, uma bagagem muito forte a nível literário, o português pode mesmo ser muito difícil. É um desafio muito grande, mas para o qual me estou a preparar, sim.

DA RÚSSIA COM AMOR

Cantas “Freiheit” (que significa liberdade) em alemão e “Again” em português e o resto em inglês, mas nunca na tua língua materna. Há alguma razão especial para ter sido assim?
Já cantei em russo no meu EP2, no tema “Stop Stop Never”. Não senti esse apelo para este disco. Entendo a língua como um instrumento musical, cada língua tem a sua cor, a sua sonoridade e, por exemplo, no “Freiheit”, não havia letra, no início era só electrónica e violino e depois quando desenvolvemos o tema é que surgiu a letra e achei que a sonoridade da língua alemã encaixava na perfeição naquela base instrumental. Neste álbum não surgiu o russo, mas é claro que vai surgir no futuro, talvez no próximo disco.

Achas que usar muitas línguas diferentes pode desviar a atenção daquilo que é uma linha coerente de um disco, ou não?
Acho que pode enriquecer, mas também não pode parecer uma feira, tipo: ‘Olhem aqui, eu falo cinco línguas! Olhem o que sei fazer!’ Mas se for numa dose certa e se houver um fio condutor musical, acho que pode enriquecer. Tudo o que seja feito com gosto é aceitável. É preciso é conseguir esse bom-gosto [risos]. Acho que consegui isso neste disco, modéstia à parte.

Para concluir o capítulo da língua, o título do álbum é uma junção de palavras russas…
Sim, “Rai” significa paraíso e “Vera” fé. Rai pode parecer uma palavra agressiva, que faz lembrar raiva, mas para mim não é a isso que soa. Tenho muita fé neste disco. Finalmente, consegui mostrar quem sou, dizer o que tenho para dizer, mostrar o que sou para além de intérprete violinista.

Tendo tu tocado com tanta gente importante ao longo da tua carreira, não sentiste em nenhum momento o apelo de chamar mais contribuições de fora para este teu disco?
Sim e penso fazer isso no futuro. Mas tenho de te revelar uma coisa: o meu dueto de sonho era com a Laurie Anderson. Vi o espectáculo dela na Casa da Música e vale pelo todo, é incrível, maravilhoso, impressionante, é uma artista completa, gigante, que passa história, que não conhece fronteiras ou limites.

Tens de lhe enviar um e-email.
Claro que sim, hoje em dia é mesmo assim que funciona e o “não” já está garantido [risos].

Inspiraste-te na tua Rússia natal para fazeres este disco? Ou foi apenas o nome do disco e o vídeo que filmaste lá para o tema “ What The Eyes Cannot See”?
Não sei responder… sei que o título é inspirado na Rússia, neste disco falo da minha infância e da minha adolescência, dos meus primeiros passos na música, aos cinco anos, quando fui aprender violino. Acompanhei de muito perto a “perestroika”, tinha 5 ou 6 anos e aquilo foi muito feio. Toda a gente vivia bastante mal, cheia de medo, não é que agora seja muito diferente, mas essa experiência marcou-me imenso. A minha avó foi secretária pessoal do procurador geral da União Soviética, então, imagina… ela não podia falar, sabia que a casa estava sob escuta… viver assim não é fácil. Os russos foram ensinados a serem os melhores, a mostrarem que são os melhores em tudo, custe o que custar. Viver num mundo perfeito bastante podre só pode ser muito difícil. E é. Essa carga negativa influenciou a minha vida, obviamente. Tenho lá grandes amigos, adoro Moscovo e a sua grandeza, adoro a neve, mas há um lado muito negro que não aprecio tanto. Este vídeo foi filmado em Fevereiro do ano passado, mesmo antes do encerramento, adorei ir ao pé da casa onde nasci, à minha primeira escola de música, foi mesmo muito fixe e isso suplanta as memórias menos boas que tenho da antiga União Soviética.