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ENTREVISTA | JP Simões na Pele de Bloom: Inquietações de um Eterno Inconformado

ENTREVISTA | JP Simões na Pele de Bloom: Inquietações de um Eterno Inconformado

Nuno Sarafa

JP Simões em entrevista à AS sobre o seu mais recente “Drafty Moon”, o segundo álbum do alter ego Bloom.

Cantor, compositor, letrista, contista e dramaturgo, é um ilustre conhecido da música que se faz cá no burgo, edita álbuns desde 1995, com Pop Dell’Arte, Belle Chase Hotel, Quinteto Tati e a solo ou em colaboração com outros compositores.

Falamos de JP Simões, que está de volta com “Drafty Moon”. Neste caso, vestindo a pele de Nicholas Bloom, ou apenas Bloom, o alter ego que inventou há cinco anos para prestar homenagem aos seus heróis da música anglo-saxónica.

O novo tomo vive muito «longe do bucolismo dormente» plasmado em “Tremble Like a Flower”, a estreia discográfica de Bloom, e ainda mais distante do perfume brasileiro da sua outra persona, o próprio JP – está antes muito mais perto do seu interior mais profundo, que parece ter entrado em choque frontal com uma certa sociedade de hiperinformação catastrófica.

«Este disco foi construído durante uma altura de crise pessoal, num contexto de uma sociedade de hiperinformação catastrófica. E este disco foi todo escrito antes de 2020, não havia nenhum peso imposto por esta gripe espanhola. Mas sinto que talvez haja um certo lado negro a atravessar aquilo tudo, mas é um negro libertador, pelo menos para mim. É mesmo um exorcismo», conta JP Simões em entrevista à Arte Sonora.

Ao longo desta conversa, o músico conimbricense relata-nos as suas grandes inquietações e explica o conceito subjacente a “Drafty Moon”, um álbum mais assertivo, mais rock e que o próprio considera «de combate, de dissipação de sombras, de esclarecimento e desintoxicação», uma espécie de exorcização e constante «tensão entre sombra e luz».

O novo disco, sob o pseudónimo Bloom, é uma edição Lux Records/Omnichord Records, está disponível em vinil, cd e nas plataformas de streaming do costume. Foi co-produzido por JP Simões e o guitarrista Miguel Nicolau, companheiro dos últimos anos, que também integra a banda ao vivo, da qual fazem ainda parte João Abelaira Nascimento (sintetizadores), Diogo Sousa (bateria), Pedro Pinto (baixo), Nuno Ferreira (guitarra) e Catarina Falcão aka Monday (voz).

Gostaria de publicar mais discos como JP Simões, mas ainda estou a perceber o que poderei fazer nesse âmbito

O recurso a este personagem, Nicholas Bloom, és tu a fugires de ti próprio?
Pode ser, sim [risos]. Todo o meu trabalho musical é sempre uma tentativa de renascimento, o que deve indicar que devo sofrer de uma espécie de insatisfação crónica. Não sei se estava à espera de ser qualquer coisa melhor em termos morais, físicos ou intelectuais… não sei, portanto, é provável que seja mais um daqueles saltos para outra coisa qualquer.

O que não é necessariamente mau, porque te leva a entrar noutros universos no acto de criação.
Sim, claro. E o personagem mais próximo de mim, o tal JP Simões, também já estava um bocado esgotado musicalmente. Cheguei a uma altura em que não sabia bem como dar continuidade e então a ideia foi inventar outra coisa qualquer. Assim comecei com este personagem e tenho gostado bastante do que estou a fazer dentro desta pele.

Se um dia te vieres a fartar do JP Simões e do Nicholas Bloom, imaginas-te a matar estes personagens e criar um novo, ou a acrescentar uma nova pele a estas duas que vestes?
Não sei responder. Na verdade, não planeio estas coisas. É como quando olhas para um jardim e entretanto a relva cresceu desmesuradamente e nem sequer reparaste. É um pouco assim que estes personagens aparecem na minha vida. Por estes dias, por exemplo, vou escrevendo em português, coisas que faço para mim e que podem ser ensaios para canções. Gostaria de publicar mais alguns discos como JP Simões, mas ainda estou em processo de perceber o que poderei fazer nesse âmbito. Estou em processo. Portanto, não sei bem como responder.

Parece que quando estou a cantar aquilo que escrevo estou dentro de outra pessoa, é uma espécie de encenação

Este disco, “Drafty Moon”, assim como o alter ego Nicholas Bloom, são simultaneamente uma homenagem aos teus heróis anglo-saxónicos e um certo apaziguamento com outros dos teus passados musicais?
Os meus discos sempre foram, de certo modo, zonas de confluência de coisas de que gosto, mas acho que toda a gente faz isso. Não sinto que alguma vez tenha sido profundamente original. Este disco toca em influências que não estavam tão óbvias em outros trabalhos meus, mas sempre tive os meus heróis anglo-saxónicos. Lembro-me de Belle Chase Hotel ser um misto de Tom Waits com Bryan Ferry, por exemplo. Nunca me esforcei para dominar aquilo que aparentemente pudesse ser mimético da minha parte.

Dizes que o teu trabalho não é profundamente original, mas se por um lado sempre testaste caminhos diferentes, por outro, sempre soaste a ti próprio… o que não deixa de ser uma originalidade.
Creio que isso é um elogio! [risos] Vistas a 10 mil anos luz, as pessoas são todas muito parecidas. É tudo poeira cósmica. Mas, vistos de perto, somos todos muito diversos, não há duas histórias iguais. Às vezes pode ter que ver com o facto de ter um timbre particular de voz, por exemplo. Não sei como é que isso se forma, não sei se houve propriamente um trabalho criativo, nunca pensei em atingir um determinado timbre ou soar meio a diseur com rouquidão das noites mal dormidas… Não fiz de propósito para ter essas características. Mal ou bem, sempre tive um certo distanciamento em relação às coisas que faço e parece que quando estou a cantar aquilo que escrevo estou dentro de outra pessoa, é uma espécie de encenação onde ainda sobra um observador atrás do acto. Talvez isso também dê uma ressonância qualquer às coisas que vou fazendo. Não sou daquelas pessoas que acredita piamente que está em transe ou num lugar profundo de si próprio. O que vamos buscar ao fundo de nós próprios, se é que há um fundo, é sempre um relato e uma coisa mediada, nem que seja pelas palavras e pelo discurso. É sempre uma representação de qualquer coisa pessoal.

Estou mais velho e não tenho tanto tempo para me condoer melancolicamente sobre a minha condição humana

Nas letras deste disco nota-se uma certa carga, uma inquietação latente.
Muitas delas são exorcismos de sentimentos ou impressões um pouco negras. Toda a música que gostava na adolescência era sempre bastante negra, com um certo cunho gótico [risos]. Mas acho que não exagero muito, sendo que, como tenho a noção de que tudo é uma certa representação, acabo por ter essa bipolaridade de ser um bocado negro, mas ao mesmo tempo ironizar um pouco sobre tudo. No caso deste disco, foi construído durante uma altura de crise pessoal, num contexto de uma sociedade de hiperinformação catastrófica. E este disco foi todo escrito antes de 2020, não havia nenhum peso imposto por esta gripe espanhola. Mas sinto que talvez haja um certo lado negro a atravessar aquilo tudo, mas é um negro libertador, pelo menos para mim. É mesmo um exorcismo.

O que é que precisavas de exorcizar?
Algumas letras podem ser ligadas a determinados fenómenos, como é o caso de “Bad For Business”, que é sobre este momento de dificuldade e dúvida que vão grassando pelo mundo, sobre a autofagia do hipercapitalismo, que está a entrar num caminho sem retorno. E quando achamos que a idade adulta é a mais sábia, de repente vemos crianças com 11 anos e adolescentes a irem para a rua manifestarem-se sobre a incompetência da instituição dos adultos. Essa canção anda à volta desses fenómenos. Há outras letras que são meros exorcismos sobre alguma dificuldade de existir, que às vezes sinto, e que para variar não quis exprimir através de uma melancolia derrotista, porque sinto que estou mais velho e não tenho tanto tempo para estar aqui a condoer-me melancolicamente sobre a minha condição humana. Este disco saiu com mais raiva, com mais vontade de mudança, seja ela qual for. Traz essa carga negra, mas é uma carga de libertação. É mais um exorcismo do que um lamento.

Não costumas repetir muito as pessoas com quem trabalhas, no entanto o Miguel Nicolau tem sido constante nos últimos discos. Presumo que seja uma parceria que funcione bem…
Tenho imenso respeito pessoal, artístico e profissional pelo Miguel e somos, acima de tudo, mesmo muito bons amigos. Quando começámos a trabalhar, houve logo um grande entusiasmo em relação ao que os dois poderíamos desenvolver. A parceria foi-se mantendo e espero que se mantenha por muito tempo, porque tenho mesmo muito gosto em trabalhar com ele. Costumo dizer que há uma espécie de telepatia quando trabalhamos juntos. Ele adivinha o que eu quero e de volta traz-me coisas surpreendentes. É sintoma de uma boa parceria.

Tenho canalizado a minha energia para coisas que me façam sentido e esta coisa dos alter egos não é assim tão importante

Isso significa que as bases normalmente partem de ti e depois o Miguel aplica a magia dele?
Sim, nestes discos de Bloom tem sido sempre assim. No primeiro [“Tremble Like a Flower”, 2016], a base foi sempre guitarra e voz e o Miguel foi trabalhando por cima. Neste segundo, já foi um bocado ao contrário, houve mais liberdade para pegar nas bases, tirar as guitarras e trabalhar só no sentido de procurar sons dramática e cenicamente interessantes para o contexto de cada canção e libertar um pouco da parte mais baladeira que trazem a guitarra e a voz. Houve um trabalho de pré-produção e de produção muito mais extenso, que demorou quase dois anos, e que deu tempo para as canções maturarem e, neste caso, o disco não seria nada do que é sem a presença do Miguel.

O trabalho de estúdio envolveu muitas batotas?
Uma das virtudes deste disco é precisamente o manancial de batotas que tem. Foi essencialmente feito em casa e muitas das músicas já estavam a soar quase como estão agora, mas com baterias feitas no teclado. Basicamente, o que se fez em estúdio foi regravar baterias, para as canções ganharem outra dimensão e outro corpo, e algumas das vozes. Mas, de resto, saiu quase da cozinha para o mundo. O disco cresceu muito organicamente, houve temas que tinham 300 acordes, como o “Public Affairs”, com uma melodia e uma harmonia interessantes, mas a história que estava a ser contada vivia um bocado em confronto com a voracidade da guitarra. O que fizemos foi tirar a guitarra e deixar a voz a soar com o arranjo e o tema passou a ser mais puro, mais direccionado para aquilo que a voz e a letra estavam a pedir e a contar. Quase como uma encenação; perceber o que é que tem mesmo de estar em cena para se poder contar uma história e o que é preciso tirar de redundante e repetitivo para deixar apenas o essencial.

Onde é que gravaram?
Grande parte das coisas foram feitas no estúdio do Miguel, no Scratch Built, no centro de Lisboa, outras num estúdio que tenho em Sintra, onde trabalho grande parte dos dias, e ainda no estúdio Bela Vista. Foi muito compensador, foi um trabalho de constante surpresa e entusiasmo infantil no bom sentido, que acontece com as pessoas que gostam do trabalho que fazem. Foi tudo feito com o máximo de cuidado, com o nosso melhor artesanato, mas ao mesmo tempo com um entusiasmo puro e infantil e, para mim, isso talvez tenha sido a coisa mais importante em todo o processo. Aquele minerar, burilar…

Já sei que ainda não é desta que vais matar o JP e que tens mais músicas de Bloom prontas…
Tenho estado a canalizar a minha energia para coisas que me façam algum sentido e esta coisa dos alter egos não é assim tão importante, não sou assim tão pessoano quanto possa aparentar… mas na verdade o que tenho feito agora com Bloom tem-me servido para explorar coisas dentro da minha ligação à música anglo-saxónica. Aparentemente, esse é o quadro mais óbvio. Muda-se um pouco a forma, mas é mais um trabalho que tem um pouco de tudo o que já fiz.