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ENTREVISTA | MITO: Electrónica com Coração

ENTREVISTA | MITO: Electrónica com Coração

Nuno Sarafa
Rita Carmo

Falámos com Manuel Siqueira, uma das metades dos MITO, uma nova banda portuguesa que se estreia com “A Razão É Óbvia”. A premissa? Pôr toda a gente a dançar.

«O mito é o nada que é tudo / O mesmo sol que abre os céus / É um mito brilhante e mudo / O corpo morto de Deus / Vivo e desnudo». Assim como nestas primeiras cinco frases do poema “Ulisses”, de Fernando Pessoa, o autor deixa para quem lê parte do trabalho da construção do sentido, também Manuel Siqueira e Pedro Zuzarte poderiam seguir tónica semelhante. Mas não. São muito directos. No que dizem e no que fazem.

E talvez mais importante do que o significado poético do nome da banda – se é que ele existe – seja mesmo aquilo que eles fazem e, quanto a isso, restam poucas dúvidas. É música orelhuda, com arranjos sofisticados, música apontada às pistas de dança, mas com um toque grandiloquente tradicionalmente reconhecível nos mais prodigiosos cantautores do cancioneiro nacional.

Apesar de “A Razão É Óbvia” ser o álbum de estreia dos MITO, Manuel e Pedro não são propriamente uns novatos nestas andanças. Amigos há mais de 10 anos e com outros tantos de colaborações musicais, já editaram três discos com a banda Lotus Fever, da qual são ambos fundadores.

Neste processo, não existem egos, mas sim o potencial de cada ideia ao invés da sua origem

Agora, na estreia como duo, cortaram com o passado, criaram um espaço próprio e fizeram-no com uma nova abordagem de composição. O vocalista não assume apenas o microfone e o guitarrista deixou de ser guitarrista, passou também a ser baixista, baterista, violinista e tudo o mais que foi necessário.

«Neste processo, não existem egos, mas sim o potencial de cada ideia ao invés da sua origem, e uma procura pelo carácter e personalidade na música que se entrega. O imaginário urbano, contemporâneo, néon e eléctrico funde-se com um profundo desejo de experimentação, com traços de uma pop electrónica de origens indefinidas e que explora a nossa língua materna de uma forma única», anunciam.

Os MITO pertencem a uma geração que pensa e grava tudo de forma independente. E assim foi o processo do álbum de 10 canções, misturadas e masterizadas por Sassá Nascimento (Agir, Carolina Deslandes, Dengaz, HMB), e que conta com participações de nomeada: Manel Cruz (Ornatos Violeta, Pluto, Supernada, Foge Foge Bandido), David Jacinto (TV Rural, Lobo Mau, Noves Fora Nada) e as Golden Slumbers, de Margarida Falcão (também de Vaarwell) e Catarina Falcão (aka Monday).

Ainda sem edição física, “A Razão É Óbvia” está disponível nas plataformas digitais desde Fevereiro deste ano e foi apresentado pela primeira vez ao vivo em Julho, na Casa do Capitão, em Lisboa. As pistas de dança aguardam.

Que razão tão óbvia é esta que vocês apregoam?
As letras são escritas pelo Pedro [Zuzarte] e têm muito que ver directamente com a vida dele. Mas diria que o significado dessa afirmação é uma oposição entre, por um lado, aquilo para que ele foi sempre empurrado para fazer, e aquilo que descobriu que queria mesmo fazer, que é música. É sobre aquela fase da nossa vida em que estamos divididos entre as pressões que sentimos pela família e aquela vontade de fazer o que realmente nos apaixona. E as letras deste álbum surgem nesta fase da nossa vida e da do Pedro em particular. Portanto, o motivo destas canções e destas letras surgirem é esse, daí que a razão seja, para nós, óbvia. Mas a mensagem é dos dois, até no sentido em que temos um percurso bastante semelhante, vimos de famílias com mentalidade semelhante, passámos pelos mesmos problemas em relação a isso, talvez ele mais. Quando digo problemas, falo de, no caso dele, muitos anos a estudar Direito, e eu Gestão. Ele não gostava nada daquilo, mas esteve anos e anos a tentar, até que depois decidiu ir para Ciências Musicais e dedicou-se à música. No meu caso, a lógica é parecida.

Para quem não conhece, quem são os MITO?
Quando criámos a banda, MITO era a nossa relação e a forma como sempre trabalhámos juntos, antes mesmo dos Lotus Fever, porque já tocamos juntos há muitos, muitos anos. MITO é esta dinâmica que temos e que foi crescendo à medida que as músicas se foram desenvolvendo e à medida que fomos descobrindo esta estética que não era óbvia à partida, mas que agora é evidente. É algo que puxa para a electrónica, para a dança, para a noite, as luzes. Foi esse o imaginário que construímos à volta de MITO.

Já não sou guitarrista, sou músico

Em que período é que fizeram estes temas?
Foi antes da pandemia. Este álbum já tem algum tempo, na verdade. No início, estivemos num vaivém, a descobrir qual o sítio criativo onde nos iríamos encaixar e houve músicas que foram sofrendo muitas alterações ao longo do tempo. Houve uma grande evolução dos arranjos e, depois, a pandemia atrasou tudo, mas as músicas já têm algum tempo.

E fizeram música paras as pistas de dança numa altura em que as pistas estavam fechadas…
Sim, foi pena, especialmente o último single, “As Propostas”, que é mesmo a puxar à noite, à dança, às luzes, talvez seja o tema que mais fortemente identifica o que são os MITO e todo o conceito à volta do projecto. A verdade é que ainda não conseguimos levar a banda para o palco tanto quanto gostaríamos, mas espero que seja uma questão de tempo.

Cantar em português foi uma coisa pensada de antemão?
Sim. Algumas músicas surgiram antes do projecto. O Pedro começou a compor logo em português, porque lhe é mais fácil falar dele em português do que em inglês. As nossas letras em Lotus Fever são muito mais para fora, mais focadas na sociedade, enquanto em MITO são mais pessoais, mais autobiográficas. E sai-lhe mais fácil se o fizer na língua materna, naturalmente. E quando saíram algumas músicas, o Pedro sugeriu fazermos um novo projecto em português.

Que tipo de liberdade têm em MITO que não tinham/têm em Lotus Fever?
É a diferença entre estares num projecto como Lotus Fever, que é um quarteto, e em que as funções estão muito mais definidas, e estar numa banda em que tens de fazer tudo. Tenho de ser baixista, guitarrista, baterista, teclista, tudo. Embora sejamos dois, as nossas músicas não soam a músicas feitas apenas por duas pessoas. Diria que ganhámos esta qualidade. Já não sou guitarrista, sou músico. Neste momento, talvez componha 20% para guitarra e 80% para outros instrumentos. Portanto, é muito diferente compor para MITO.

Para mais fácil?
Não, para mais difícil. Mas a verdade é que gosto de não ter de meter os travões por estar a entrar no campo de outra pessoa, porque o processo criativo é diferente. Quando flui, quando me surge uma linha de baixo, tenho de aproveitar essa linha de baixo. Não é por não ser baixista que não o posso fazer. Mas há um bocadinho esta dinâmica nas bandas em que há papéis mais atribuídos, mais específicos, e não queremos pisar os pés dos outros músicos. Nesse sentido, é mais fixe ter liberdade total para compor qualquer instrumento.

Somos desta geração que vê que não há possibilidades para um músico passar a vida a ir gravar a estúdios

Fala-me um pouco do vosso processo criativo.
Para este primeiro álbum, normalmente, o Pedro trazia canções ao piano e depois começávamos a trabalhar e a descobrir os arranjos. Agora, o processo é um pouco ao contrário. Trabalhamos arranjos até descobrirmos secções que podem vir a ter letra, etc. Mas depende muito dos temas e das fases em que estamos e de quanto tempo passamos juntos. É normal que quando passamos mais tempo juntos a estrutura dos temas vá surgindo mais rapidamente do que a letra e a voz, por exemplo, que é mais um trabalho de casa, neste caso, do Pedro. O Pedro compõe muito à base de secções e progressões harmónicas, enquanto eu é mais à base de riffs de guitarra ou de baixo, mas é sempre um pouco dos dois. Nesse sentido, complementamo-nos bem, às vezes damos por nós a criar uma secção inteira num instante.

Como é que foi o trabalho de estúdio neste disco?
Não fomos para estúdio. Somos desta geração em que nos apercebemos de que não há possibilidades para um músico passar a vida a ir gravar a estúdios e temos a vantagem de o nosso projecto ser mais electrónico e permitir que não precisemos tanto do estúdio. Se tivéssemos bateria, obviamente que seria muito mais complicado, mas não temos. Houve aqui uma fase em que começámos a investir em equipamento e neste momento já conseguimos gravar tudo por nós. Somos independentes e gravámos este disco todo em casa!

Que material utilizaram?
Foi tudo muito simples. Os sintetizadores só surgiram agora para as novas canções, porque o primeiro disco tem muitos synths mas em plugins, muito Omnisphere, muito Triliam para o baixo. De resto, gravámos tudo numa Apollo Twin [interface áudio da Universal Audio], o micro para a voz foi o Neumann TLM 103 e para a guitarra pusemos um microfone Electro-Voice RE 20 no amplificador Vox AC15 C1, mas neste momento, para os temas novos, estou a apostar num cabinet simulator da Captor X, para não precisar de fazer muito barulho. A guitarra utilizada foi a minha Gibson ES-335 que não trocava por nada deste mundo! Os beats foram feitos directamente no computador, à mãozinha [risos]. Mas agora já temos uma drum machine, uma Elektron Digitakt, o que torna todo o processo muito mais fixe.

Se tivessem gravado baterias não teria sido tão fácil…
Se fosse para gravar bateria, talvez não nos sentíssemos capazes… É muito mais complicado.

Têm convidados de luxo no disco de estreia. Como surgiram estas colaborações? Fizeram os temas a pensar nas participações ou lembraram-se de determinados músicos porque os temas assim o pediam?
Primeiro, surgiram os temas. Depois, surgiu a ideia de chamarmos estas pessoas. Não pensámos: “‘Bora fazer uma música com o Manel Cruz“. Foi o contrário. Quando estávamos a compor “Tudo Tem Um Fim”, achámos que fazia sentido incluir o Manel. E foi exactamente o mesmo processo com o resto dos convidados [David Jacinto em “Que Fazer” e Golden Slumbers em “Solta O Caos” e “Grão A Grão”]. Apesar de que os motivos foram completamente diferentes. O que precisávamos em cada música era bastante distinto. Foi um misto de acharmos que encaixavam bem nas canções e de admiração por essas pessoas. Mas é um bocado surreal, para nós, logo no nosso álbum de estreia, termos convidados com este peso. Mas, de certa forma, isso dá-nos força e motivação, porque se esta malta colaborou connosco foi porque nos respeitou e isso é sinal de que estamos no bom caminho. Termos dois grandes ícones do nosso país a participar no nosso primeiro disco é brutal.

Têm planos para juntar essa malta em palco?
É difícil juntar essa malta toda. O Manel está no Porto e, eventualmente, quando formos lá tocar, gostávamos de o ter connosco. Em Lisboa, na Casa do Capitão, o objectivo era termos as Golden Slumbers e o David [Jacinto], mas infelizmente o David no fim-de-semana anterior ao concerto teve de ficar em isolamento. Mas há-de acontecer, sem dúvida alguma. Até já ensaiámos juntos.

Os MITO passam de duo a trio ao vivo. Precisavam de mais massa crítica para tornar os concertos mais vivos?
Sim. Ao vivo, o Pedro [Zuzarte] assume as teclas e a voz, eu a guitarra, voz e teclas, e temos bateria, que é o Diogo Teixeira de Abreu, que também toca em Lotus Fever. Isto é um projecto electrónico e este tipo de projectos ganham muito quando têm um baterista ao vivo. Foi nessa lógica que incluímos bateria nos concertos, para termos um concerto mais real, mais presente, mais dinâmico.

A mensagem é do coração, não é uma música electrónica distante

Uma vez que no disco os beats são electrónicos, qual o setup que o Diogo utiliza ao vivo?
O Diogo usa alguns triggers através de um sample pad, mas o esqueleto é a bateria acústica.

Estrearam-se ao vivo na Casa do Capitão a meio de Julho. Como foram as reacções de quem viu e ouviu?
Foram muito boas. Mais do que pelo concerto em si, julgo que o facto de muitas das pessoas já não verem um concerto há mais de um ano também ajudou. Foi muito bonito. Faz muita falta a música ao vivo, quer para o público, quer para nós. Andámos todos a penar há bastante tempo…

Ainda vão querer explorar mais o disco ao vivo, ou já estão concentrados em músicas novas?
Ambas as coisas. Precisamos de tocar este disco ao vivo, sem dúvida, mas no próximo ano já teremos um novo álbum cá fora, seguramente. O objectivo é termos o álbum composto e gravado até ao final do ano para o misturarmos no início de 2022. Estamos a trabalhar para isso. Não vamos fazer um álbum igual ao primeiro, porque o nosso objectivo é sempre ir por novos caminhos e desafiarmo-nos criativamente. Mas vamos querer explorar esta essência electrónica, não perdendo a faceta de cantautor. Há aqui uma mensagem muito pessoal, embora os temas tenham uma estética e uma vestimenta mais electrónica, mas a mensagem é do coração, não é uma música electrónica distante. Nada disso. É a nossa vida, no fundo. Não conseguimos fazer algo completamente diferente, pois temos uma forma específica de compor e estamos juntos há muitos anos. É sinal de que estamos a fazer as coisas de forma verdadeira. Vai ser algo diferente, mas seguramente vai soar a MITO.