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ENTREVISTA | Pimenta Caseira, Luxúria Instrumental Made In Cais do Sodré

ENTREVISTA | Pimenta Caseira, Luxúria Instrumental Made In Cais do Sodré

Nuno Sarafa

Supergrupo criado nas (suadas e saudosas) noites longas do Cais do Sodré acaba de editar álbum de estreia, “Cais, Vol. 1”, que serviu de mote para a conversa com um dos fundadores deste movimento de «luxúria instrumental», Fred Martinho aka B.E.R.A.

Esta é a história de um novo disco, embora os autores sejam tudo menos novatos na cena musical nacional. Dizem que não são uma banda, nem um condimento, mas antes um movimento.

Enquanto Pimenta Caseira, começaram a dar os primeiros passos como projecto de improvisação, de uma forma descomprometida, no já longínquo ano de 2014, com uma residência de dois anos, sempre às terças-feiras, sempre na discoteca Tokyo, na mítica rua cor-de-rosa do Cais Sodré, em Lisboa.

Em 2018, mudaram-se para o clube vizinho Musicbox, onde rubricaram umas quantas sessões avulso e, no final do ano seguinte, fizeram três meses seguidos no Rive Rouge, imediatamente antes de entrarem em estúdio (Plateia d’Ilusões). «Improvisávamos em cima de canções de outros, algumas vezes em cima de temas trap ou hip-hop e houve uma altura em que sentimos que tínhamos de gravar. Era o passo natural».

O principal motor para o nascimento desta Pimenta Caseira foram a vontade e a necessidade de Fred Martinho – guitarrista dos HMB e com um passado em bandas como os Groove Quartet – de encontrar um novo som, um novo espaço sonoro, algo diferente do que se vai fazendo cá pelo burgo. «Aproveitei para transformar essa residência num laboratório, onde pudesse, com outros músicos, ir à procura desse som», conta o músico em conversa com a Arte Sonora.

Ao longo do tempo, foram vários os elementos que já integraram este movimento, com a formação – que se mantém sempre disponível a alterações – a fixar-se em 2015. A Fred juntaram-se Gui Salgueiro aka Yanagui (teclas, The Black Mamba, Nenny, Moulinex), Zé Maria (saxofone, synths e vocoder, HMB) e Ariel Rosa (bateria e pads, Nenny, Nelson Freitas, Lura), verdadeiros mestres de uma luxúria instrumental que se movimenta por áreas como R&B, soul, funk, novo funk electrónico, lo-fi ou jazz.

«Por causa da improvisação e do nosso background, os concertos são como se fossem um DJ set, quase sempre sem setlist. Vamos olhando uns para os outros e vamos decidindo».

Apesar do groove por demais evidente, não há baixo em Pimenta Caseira, com as frequências graves a ficarem a cargo de Gui Salgueiro no synth bass. Outros condimentos interessantes e diferenciadores do som deste colectivo é o muito presente vocoder de Zé Maria, e ainda a talkbox de Fred. «A minha abordagem foi mudando, tentando que a guitarra soasse cada vez menos a guitarra, para tentar transformá-la num outro som», explica o guitarrista.

O primeiro disco – produzido por Pimenta Caseira e editado pelo selo própria da banda, a R’N’C (Rhythm’n’Culture), com o apoio da SPA – já está disponível em todas as plataformas de streaming – “Cais, Vol.1” conta com participações de Luís Cunha e Pité e é composto por 11 temas (10 originais e uma versão de “Devia ir”, dos Wet Bed Gang). O segundo prato já está na cozinha a aguardar tempero.

Depois de integrarem o cartaz do Festival Super Bock em Stock, em Novembro de 2021, em que o colectivo apresentou em primeira mão ao vivo o disco de estreia, os quatro músicos esperam um 2022 em grande, com muitos e bons concertos. Portanto, não os deixem escapar. Porque além da mestria com que interpretam os seus temas, os músicos de Pimenta Caseira prometem não deixar arrefecer as pistas com a sua luxúria instrumental sempre em movimento.

A carta de intenções deste disco é um universo de fantasia, escuro, livre, tardio, nocturno

Na vossa apresentação, dizem que Pimenta Caseira não é uma banda, nem um condimento, mas antes um movimento. O que é que querem fazer mexer?
Isto são tudo conceitos que surgiram a posteriori. Essa frase surge por observação do nosso percurso, quer interno, quer externo. Pimenta Caseira é um movimento, porque começou de uma forma completamente descomprometida de intenção. Eu só queria estar num sítio onde pudesse improvisar e explorar e encontrar um som. Fui encontrando os intervenientes para estarem comigo em palco e isso foi um movimento. No início, tinha uma banda base e essa banda foi-se alterando ao longo do tempo, daí o movimento. Depois, também no sentido em que senti que as pessoas aderiam, não porque vinham ouvir o Fred dos HMB ou porque eram fãs de música instrumental; as pessoas passavam à porta do Tokyo e de repente ouviam um som que não era covers, não era jazz, era algo de que gostavam, depois, ficavam, reagiam e a palavra foi passando. Mais uma vez está presente a noção de movimento. E, finalmente, porque pomos as pessoas em movimento, a dançar. Sinto que o futuro de Pimenta Caseira vai continuar a implicar movimento e na mesma direcção, ou seja, vamos acabar por ter outros membros, inclusivamente temos falado em meter alguém que seja multi-instrumentista. E sinto que o movimento está a expandir-se, a malta já diz a Pimenta Caseira e não os Pimenta Caseira. A síntese de tudo isto é, para nós, o movimento.

Na origem desse movimento estão as residências no Cais do Sodré, quase sempre baseadas em sessões de improvisação. Como foi transpor o caos relativamente organizado do improviso para a o rigor do estúdio?
Não foi muito diferente. Esta malta tem a escola do jazz… Ensaiamos muito pouco, normalmente ensaiamos a estrutura e depois vamos moldando e colorindo à volta. Para estúdio, foi apenas uma sessão em que o Zé trouxe uma série de temas e alinhámos as canções e, dois dias depois, fomos para estúdio. Gravámos completamente live e depois fomos produzindo em cima das faixas e essa foi a parte de maior rigor. Porque o resto foi deixar sair em dois ou três takes. O trabalho posterior, de produção, é que foi mais rigoroso. A pré-produção é praticamente inexistente, a não ser aquela sessão única antes de irmos para estúdio.

Neste disco há pouca palavra. Qual o motivo dessa opção?
Acima de tudo, porque neste ensemble, apesar de haver algumas palavras, não existe um vocalista. Mas isso nunca foi um problema para comunicarmos com o público. Comunicamos através da música instrumental e através do vocoder e, entretanto, aprendi a tocar talkbox através de sintetizador, acrescentando assim uma segunda voz robótica aos temas. Passou a ser essa a nossa forma de encurtar aquele gap que ainda existe pelo facto de não termos um vocalista. De resto, a “Dá-me Tudo” tem palavra, a “Gone”, uma balada lindíssima do Zé Maria com letra minha e em que tentámos com o talkbox, mas ficava demasiado áspero e então o Zé Maria acabou por gravar com o vocoder, também tem. E a “Devia Ir”, que é uma versão de um original dos Wet Bed Gang, e que é o nosso contacto com a língua portuguesa.

Mas existe alguma narrativa subjacente a este disco?
O que queremos passar são imaginários. Quando começámos a dar as primeiras entrevistas a propósito deste disco surgiu-me a expressão luxúria instrumental. Tenho utilizado e tenho insistido, porque é um bom tag e porque resume mesmo o universo de Pimenta Caseira, um universo criado às duas da manhã, no Cais do Sodré, onde as pessoas já não se lembram quem são durante o dia e a ideia é mesmo essa, é essa a magia da noite. E sentiu-se isso durante a pandemia. Toda a gente precisa de espairecer e de se perder. E este é um espaço musical onde as pessoas se podem perder, agora em casa. E também era essa a minha intenção quando fomos gravar. A minha única hipótese de ouvir Pimenta era quando estava a tocar. Estava na altura de poder carregar no play e ouvir. Por isso quisemos gravar este disco. E assim há mais pessoas que o podem fazer. A carta de intenções subjacente a este disco é um universo de fantasia, escuro, livre, tardio, nocturno, que é a realidade da nossa música.

Gosto do timbre e da estética de um synth bass. Depois também tem a vantagem logística, é menos equipamento…

Outra opção curiosa é o facto de não existir um baixo em Pimenta Caseira. Para um ensemble em que o groove é grande parte da essência, e apesar de o Gui Salgueiro fazer umas malhas no synth bass, embora não seja a mesma coisa, não sentem falta de ter um baixista na formação?
Dizes, e bem, que não é a mesma coisa. Mas era exactamente isso que procurava, muito inspirado em bandas de que gosto e que utilizam o baixo sintetizado. Procurei precisamente uma abordagem não baixista. Mas atenção: adoro baixo, tenho imensos amigos baixistas, inclusivamente temos um convidado que gravou baixo no último tema [“Outtake”], o [Rui Pedro] Pity (Black Mamba). A opção foi mesmo essa, não ter baixo. Mas, antes de mais, o Gui é mega baixista, é super rítmico, é baterista antes de ser pianista e adoro a displicência que ele tem a tocar. É super acutilante, mas tem uma certa displicência, até porque está ocupado a tocar mais coisas e adoro a estética sonora de um baixo sintetizado, consegue-se outras frequências, consegue-se uma maior coesão na tomada de decisões…

Permite-me fazer de advogado do diabo, mas não faltará a pulsação das cordas na relação com a bateria?
Permito, pois. É bom escavar, claro, é muito fixe. Na boa [risos]. Mas não, não sinto falta de um baixo eléctrico. O Gui e o Ariel tocam juntos há uns 12 anos e eles colam tão bem que não há qualquer latência. Foi uma decisão estética e, acima de tudo, é uma opção musical. Gosto do timbre e da estética de um synth bass. Depois também tem a vantagem logística, é menos equipamento, é menos um músico… Mas o som que procurava era mesmo este, o do som do baixo sintetizado.

Outra curiosidade é o teu som de guitarra, que surge aqui de forma pouco convencional. Queres partilhar quais são os teus truques para além da talkbox que já mencionaste?
Para mim, neste momento, a talkbox e a guitarra são dois instrumentos diferentes. Já sou guitarrista há muito anos. É o meu instrumento. Mas entretanto comecei por trabalhar a técnica de conseguir emitir som com um tubo na boca. Na talkbox não podes activar as cordas vocais, senão dás cabo do som, é apenas articular, porque o som está a reverberar na boca e tens que moldar o som sem activar as cordas vocais. É estranho. Levei algum tempo a habituar-me. Aproveitei as duas últimas tours de HMB para aprender. Fazia isso mas com guitarra. O som não é tão claro, porque a guitarra tem um output muito menos estável do que um sintetizador, mas estes dois anos serviram essencialmente para poder trabalhar a técnica bocal. Depois comprei um sintetizador e passei a usá-lo. Portanto, em Pimenta Caseira tenho dois instrumentos, a talkbox e a guitarra. Ando com mais equipamento, mas estou mais feliz. Vale bem a pena. Em Pimenta, não quero que a guitarra soe a guitarra, vou atrás de outra cor. Mas o meu setup é muito simples.

Queres partilhar?
Em HMB, o meu rig é muito simples. Já Pimenta Caseira é o meu espaço de exploração. Para a gravação usei Kemper em rack com power head. Aprendi em HMB que era a solução certa e os técnicos adoram. Como uso também uma coluna amplificada, tenho a sensação do amp. Depois ponho coisas à frente, como alguns pedais. Gosto muito do octaver da MOOER, que gosto de usar como lead e com o efeito sujo quando faço acordes, que fica meio dissonante, porque as oitavas não são perfeitas. Também brinco muito com outro pedal da MOOER, um all-in-one. O meu som anda muito à volta daquele efeito que as pessoas ouvem de guitarra distorcida, que não é mais do que o tremolo com chorus com frequência muito rápida e quase a provocar desafinação. O tremolo quando está muito rápido parece um rádio partido e adoro essa cena. Utilizo poucos recursos, mas ando sempre atrás do que o ouvido procura. E é tudo muito instintivo, não perco tempo. Normalmente, tenho uma ideia, encontro-a e vamos embora!

Quando Pimenta arrancou, HMB estava com a agenda super preenchida e só abrandei porque, com família, o ritmo da estrada e da noite já não estava a dar…

Este “Cais, Vol.1” tem carimbo da vossa editora, a R’N’C. Esta vai ser uma plataforma fechada ou estão dispostos a editar projectos fora do vosso círculo?
Estamos à procura de outros projectos. Estou a gravar um disco a solo, o Gui está a preparar o segundo disco dele, o Pité dos MGDRV (Megadrive) também está a trabalhar num disco a solo que vai sair pela R’N’C. E temos mais uns artistas em vista. Procuramos essencialmente malta que esteja dentro desta linguagem musical. Queremos eternizar este movimento que é muito maior do que Pimenta Caseira.

E quanto a Pimenta, o “Vol.2” já está a ser preparado?
Sim, neste momento, o Gui já tem muitas canções ainda em formato esboço, mas que se adequam ao universo de Pimenta Caseira. Também tenho umas duas canções que farão sentido. Só não sei se se chamará “Vol.2”, porque o conceito pode mudar, mas possivelmente haverá mais um disco de Pimenta em 2022.

Para um projecto criado em palco, deve ser difícil estar tanto tempo afastado dele…
Tem sido duro para todos os músicos. Acho que todos nos recordamos bem da primeira vez que voltámos ao palco depois da pandemia… foram momentos especiais. Mas para uma banda como Pimenta tem sido complicado. O músculo está meio adormecido. Mas estamos confiantes. Se todas as nuances da pandemia se alterarem e as directrizes da DGS nos permitirem, faremos mais uma residência em Lisboa em 2022. E entretanto andamos formalmente à procura de booking internacional, porque nacional fazemos nós. O mercado é reduzido…

E concertos para os tempos próximos, há?
Íamos agora ao Porto, mas a data foi cancelada. Temos muita vontade de ir ao Porto… e nestes anos todos nunca calhou. Estávamos cheios de pica, mas entretanto a data foi cancelada… O Porto é uma prioridade! De resto, é estarem atentos, havemos de anunciar qualquer coisa entretanto.

Sendo tu dos HMB, uma banda normalmente muito activa, qual será o lugar de Pimenta Caseira na tua agenda?
Numa agenda normal?… [risos] Já houve uma altura em que ambos os projectos conviveram sem problemas. Quando Pimenta arrancou, HMB estava com a agenda super preenchida e só abrandei, porque com família e tudo o resto, o ritmo da estrada e da noite já não estava a dar… Mas acredito que quando tudo regressar à normalidade ambos os projectos vão coabitar muito bem. Aliás, três, uma vez que no próximo ano irei editar um álbum a solo. Considero-me músico, antes de ser artista, e enquanto músico só me sinto em pleno se fizer o que tem de ser feito… para mim, para estar tranquilo, tenho de fazer HMB, Pimenta Caseira, o meu projecto a solo B.E.R.A., ou o Jazz Trio no qual também participo. Se não fizer isso tudo não me sinto completo.