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:PAPERCUTZ, Do Analógico ao Ableton Live 11

:PAPERCUTZ, Do Analógico ao Ableton Live 11

Bruno Miguel / :PAPERCUTZ
Nuno Sampaio

Bruno Miguel, o xamã do universo multi-disciplinar dos :PAPERCUTZ, reflecte sobre a progressiva integração do Ableton Live no seu trabalho e no seu híbrido setup analógico/digital.

A minha relação com software e computadores precede uma atividade de gravação e escrita de música logo sempre fez sentido que estas pudessem caminhar juntas. Desde cedo que confiei nestes sistemas digitais para processos de gravação e mistura de demos, sendo que mais tarde desenvolvi, como acontece com outros músicos, sobretudo da área da electrónica, um gosto por outro equipamento.

Sempre apreciei o contacto táctil e imediato com instrumentos acústicos como a guitarra ou o piano, logo a aproximação, primeiro a sintetizadores analógicos, e mais tarde a material físico de gravação em estúdio foi algo natural. Quanto mais esotérico, melhor. Além de que criava um maior escape de uma ferramenta que utilizava para todas as outras funções do dia-a-dia, inclusive numa outra vida, na área da informática.

Penso que o ponto mais significativo foi durante a gravação e produção do álbum de :PAPERCUTZ de nome ‘The Blur Between Us’ com uma estadia no DNA Downtown Studios em Nova Iorque e no Carriage House Studios em Connecticut, numa aprendizagem alargada com o Chris, produtor do álbum e nos quais que tivemos acesso a todo o equipamento que queríamos, desde sintetizadores clássicos como um Moog modular, mesas SSL e Neve, processamento externo vulgo um Fairchild 670 ou gravadores em fita Ampex (nomes que os leitores mais informados certamente reconhecerão) e a ideia era precisamente explorar as gravações que tinha feito no Porto e levá-las para um universo de registos de álbuns ‘clássicos’.

Reconheço que se trata sobretudo de um processo de condicionamento pois estamos habituados a associar um tipo de sonoridade mais musical aos estúdios profissionais sobretudo nas mãos de alguém experiente, sem nunca pôr de parte, momentos de experimentação que estes proporcionam no domínio do analógico. Fiquei muito contente com o resultado e tinha planos de repetir a experiência.

Foto: © Bruno Miguel

Mas tudo mudou com o que acabou por acontecer nos anos seguintes. Tanto a escrita de novos temas como convites para remisturas e produzir outros projetos dá-se entre viagens e a mobilidade torna-se um elemento importante. Além de mais, ao participar na Red Bull Music Academy, fiquei bastante impressionado pelo uso que produtores colegas ou artistas convidados como Four Tet  ou Flying Lotus davam ao computador, como se este fosse uma extensão mais óbvia da sua imaginação, dada a falta de limites que tecnologia mais antiga apresenta, ou seja, ver um sistema informático como um equipamento técnico e funcional mas também o seu enorme potencial de expressão em estúdio e ao vivo, sobretudo potenciado pelo seu desenvolvimento moderno tanto a nível de hardware como software.

Existem problemas relativo a este, questões como latência, que podem ser resolvidos com placas munidas de DSP ou a monitorização muitas vezes por headphones, apesar de mesmo neste momento se exploram soluções de convolução, um processo que simula uma presença binaural num espaço físico e claro sempre com a noção de pequenas paragens em estúdios com condicionamento acústico para algumas fases de gravação ou mistura e eventualmente masterização. A ideia de escalabilidade não deixa de se apresentar. Esta nova liberdade foi fundamental para o álbum seguinte de nome ‘King Ruiner’. Este foi um trabalho que foi alvo de maturação ao vivo e gravado entre Porto, Nova Iorque, Hamburgo e Tóquio, dados os convidados locais. Logo à partida, esta é a edição com a estética mais digital até ao momento, algo propositado mas também fruto do processo de composição.

O passo seguinte seriam os concertos oficiais de apresentação, que dada a pandemia e excepto uma digressão no Japão acabam por acontecer em Portugal, só que contrariamente ao que se esperaria, depois de experimentar um formato a duo e com alguns convidados, decido contrair os tempos com um concerto expansivo de várias vozes sobre uma base de instrumentação electrónica, dependente sobretudo de um sistema central a correr num computador. Até ao momento utilizava ao vivo vários programas sendo um deles o Ableton Lite que veio com a compra de um controlador midi mas felizmente sempre fui fluente em outros sistemas de sequenciação.

Foto © Nuno Sampaio

A maior novidade acontece, e na altura perfeita, com um convite (um agradecimento à Marina Duarte, Ned Beckett e Christa Belle) para colaborar directamente com a Ableton, um processo que estenderam a alguns artistas nacionais. Isso implica ter acesso ao software mais recente, Ableton Live 11 no momento que escrevo isto, e um apoio na parte técnica e artística. É precisamente assim nesta altura que começo a desenhar o espetáculo mencionado de nome ‘Choral’.

Este revela o álbum ‘King Ruiner’ explorando com um trio de vozes femininas, escolhidas pelo seu registo específico de Contralto, Mezzo Soprano e Soprano, que se funde num registo coral com texturas de música electrónica inspirada neste mundo globalizado. Além de que são cantoras, que nos seus momentos destacados têm uma entrega a cada tema, e que vivem da sua interpretação. Em parte esta apresentação ao vivo representa o meu fascínio já longo pela voz feminina e que se revela mais destacada do que nunca ao longo do seu alinhamento. O concerto ganha muito ainda com um desenho de luzes imersivo.

O projecto :PAPERCUTZ sempre se precipitou em contrapontos e imaginei que seria interessante nesta performance pensada para teatros e auditórios uma iluminação inspirada em cenários de música de dança, ou seja, strobes, lasers, tudo o que não seria de esperar mas que acrescenta um enorme movimento em palco, pois estamos como peças num cenário, sobretudo em posições fixas.

Foto: © Rui Cunha

Em termos técnicos o princípio básico foi o seguinte, fazer do Ableton, o cérebro da operação. Com este processo centralizado seria sempre mais fácil a sua programação e escalabilidade. O programa corre num Apple Macbook Pro que optimizei para processamento de áudio com uma placa externa RME Fireface Ucx e que se expande pelas suas saídas Adat a um conversor RME ADI 8 DS, além de um distribuidor de MOTU Midi Express XT para algum do equipamento que eu controlo, de forma que haja um maior dinamismo e controlo táctil na componente instrumental.

Tal sistema midi é potenciado pelo uso um teclado/controlador mestre AKAY MPK 61 que me permite selecionar instrumentos virtuais e processamento de efeitos através do uso de diversas camadas no Ableton e assim vou trocando entre os diversos elementos principais de cada tema. Como é óbvio não seria possível toda a instrumentação acontecer ao vivo por uma pessoa apenas, nem é isso o pretendido para este concerto, gosto de sentir precisão na música ao mesmo tempo, justaposto, com momentos mais humanos.

Aliás, isso faz de cada concerto uma performance única porque, e inclusive na narrativa do seu alinhamento, temos momentos puramente electrónicos e outros completamente despidos com apenas voz e piano, tocados neste mesmo teclado. Para além de tal ainda tenho uma guitarra modificada de 12 cordas construída pelo Luthier Luis Farinha para as gravações do “King Ruiner” ao qual lhe demos o nome de ‘Desert Mirage’, em modo resumido, implicou um sonho com o bluesman do Deserto Ali Farka Touré (uma história para uma outra altura) e o Multi Pad para percussão Yamaha DTX-Multi 12.

Foto: © Luís Farinha

Antes de ‘Choral’ estes instrumentos já eram utilizados mas com esta nova versão a guitarra é processada pelo Ableton usando um patch Max Msp que no caso em questão permite usar o instrumento como um controlador midi. O Max começou como uma linguagem de programação desenvolvida e mantida pela Cycling ’74 e que permite definir diversos módulos de processamento de áudio e vídeo mas que ultimamente com o Max for Live, podem ser facilmente integrados e customizados para correrem no Ableton.

Assim sendo, consigo criar uma sinestesia entre o som original da guitarra, dobrada ou harmonizada, dependente da intenção, por sons digitais criando um instrumento ainda mais rico. Ainda em modo de exploração esta extensão criativa do programa vai me permitir num futuro próximo definir módulos totalmente de acordo com as minhas necessidades e não vou ficar apenas preso às suas funcionalidades nativas.

No conceito deste novo concerto o DTX-Multi 12 passou a ser um controlador do Drum Rack um sampler optimizado do Ableton para elementos rítmicos (e não só) pela facilidade que este oferece em integrar samples e o seu processamento, bem mais simples que os temidos menus e métodos um pouco arcaicos deste sistema da Yamaha. De concertos passados mantenho um processador KAOS PAD KP3 para looping e processamento de efeitos, um Moog Minitaur para linhas de baixo e um BOSS VE-20 Vocal Performer para a minha voz, simplesmente pelo controlo táctil. Algo que estou a reformular será utilizar apenas controladores bem mais expressivos MPE (Midi Polifônico) já suportados pelo Ableton Live 11.

De notar que os sistemas de hardware externo também têm problemas, nada é infalível e como muitos músicos sabem, este equipamento em digressão tende a ter problemas por vezes até os diversos pontos de corrente elétrica podem gerar ruídos desnecessários, algo que não aconteceria se o áudio vier apenas de um sistema com um fonte integrada. Claro que um sistema dependente de um computador levanta alguns receios mas temos alguns pontos de redundância sendo que tenho estudado para o futuro a possibilidade de um switch elétrico e duas máquinas a correr em simultâneo. Como disse, é uma fase de aprendizagem e aperfeiçoamento, para nós também.

Voltando ao sistema digital ao vivo, as vozes das 3 cantoras são duplicadas de forma que um sinal seco chegue ao técnico de som da frente (FOH) para que ele tenha controlo no seu processamento, e outro integrado pelo meu sistema, de novo passando por um patch Max Harmonizer que lhe dá uma característica artificial e que faz parte da estética do álbum. Além de que me permite ainda poder trabalhar com pequenos loops das suas interpretações.

A ideia por detrás do álbum era explorar uma tradição oral mas através de métodos contemporâneos e portanto as vozes são muitas vezes multiplicadas de uma forma sintética a uma multidão de tons. Isto veio de pesquisas de coros africanos, ao ensemble japonês Geinoh Yamashirogumi, passando pelas experimentações harmónicas  sobrenaturais do recente falecido Jon Hassell. O uso do computador torna todo este processo uma possibilidade, fácil de integrar com algum tempo e programação, ao vivo.

Foto © Rui Cunha

Algo muito importante foi sempre manter um sistema nativo usando todas as potencialidades do Ableton. Sendo assim, todos os instrumentos virtuais e efeitos vêm do programa. Num mundo de possibilidades digitais foi uma forma de restrição mas ao mesmo tempo, e dada a uma parte da minha formação em informática, reconheço que estes estariam otimizados para uma performance dentro da DAW, o que se tem verificado dado o pouco peso no CPU.

Uma característica em :PAPERCUTZ é o uso de sons entre o acústico e o digital, basta ouvir logo nos primeiros temas de ‘King Ruiner’ como ‘Halfway There’ em que a parte principal é uma mistura entre uma onda sonora Square, um Koto e uma Flauta criando um instrumento que nos parece real mas que não existe no mundo natural. Sendo assim o instrumento nativo Collision foi fundamental na sua abordagem algorítmica de modelação das características físicas de sons acústicos. Um outro exemplo nativo, este bem mais simples, um Piano sampleado que não sendo incrivelmente detalhado, é bastante responsivo e de pouco peso no sistema, além de que me permite processar com um série de efeitos em linha.

Um exemplo é o caso do Echo que proporciona um efeito clássico, pois eu não desisti de ter interesse em sons analógicos, e em muitos casos, uma simulação digital como esta é muito credível, sobretudo ao vivo. Uma grande vantagem do Ableton Live é a facilidade com que se atribui o controle de funções a um controlador midi e em situações como este processamento de efeitos é possível manipular ao vivo todos os seus diversos parâmetros. Aliás, nesta DAW praticamente toda sua funcionalidade, pode lhe ser atribuído um sinal de controle além de um routing extenso de sinais de áudio o que permite uma multiplicidade de cenários.

Existe ainda algo que tenho experimentado em estúdio que me interessa faz algum tempo pelas suas possiblidades que é o processamento espectral, algo que o Ableton Live contempla, mas que irei falar numa próxima oportunidade.

Foto : © Rui Cunha

Como mencionado anteriormente, as luzes são parte integrante do espectáculo, e sendo assim contemplei um desenho de palco em que um laser romperia por entre  os músicos atravessando a sala e o público. Esse controlo é feito pelo protocolo DMX e para tal uso uma placa ENTTEC que converte as instruções de midi para esse mesmo sinal, sendo embebido na sequência que corre no Ableton Live, como se tratasse de um instrumento. Isso permite uma precisão totalmente sincronizada com o tempo e secções dos vários temas.

Caso quisesse poderia controlar as diversas luzes através do computador apenas mas num espectáculo desta dimensão não faz sentido senão contar com profissionais, a gerirem o som de frente e as principais luzes de palco, com toda a sua experiência acumulada ao longo de anos. Felizmente tenho uma equipa de pessoas que estendem a minha visão muito para além do que alguma vez conseguiria sozinho, algo relevante na construção de :PAPERCUTZ. Eu gosto de referir que de facto se trata de um projecto por essa mesma abertura, porque está sempre em evolução, com novos intervenientes.

Foto: © Pedro Mkk

Em forma de conclusão, estou de momento em estúdio a ultimar um EP de nome “So Far So Fading” e cujo confinamento no início do ano trocou-nos as voltas e atrasou as suas gravações em alguns meses meses. E sendo assim, nestes actos de teimosia que me caracterizam, aproveitei e fiz-lo crescer com uma lista extensa de músicos de diferentes mundos, da electrónica ao erudito. O Ableton Live vai fazer também parte da sua concepção em estúdio, algo a desvendar numa próxima oportunidade.

Penso que a mensagem sobretudo que gostaria de passar é que estes sistemas estão cada vez mais disponíveis para todos de uma forma bem mais democrática que nunca, e que podem sempre crescer, pois tal como segundo umas das frases de um dos meu filmes favoritos: “Big things have small beginnings, sir”.

Enfrentamos tempos de incerteza e a imprensa não é excepção. Ainda mais a imprensa musical que, como tantos outros, vê o seu sector sofrer com a paralisação imposta pelas medidas de combate à pandemia. Uns são filhos e outros enteados. A AS não vai ter direito a um tostão dos infames 15 milhões de publicidade institucional. Também não nos sentimos confortáveis em pedir doações a quem nos lê. A forma de nos ajudarem é considerarem desbloquear os inibidores de publicidade no nosso website e, se gostam dos nossos conteúdos, comprarem um dos nossos exemplares impressos, através da nossa LOJA.