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Lateralus: O Xamanismo dos Tool e Alex Grey [Sinestesias]

Lateralus: O Xamanismo dos Tool e Alex Grey [Sinestesias]

Carlos Garcia
Alex Grey

“Lateralus” é o álbum onde duas vias xamânicas, a musical e a visual, se vão encontrar. Um álbum onde, musicalmente, se disseca de forma concreta e simbólica o que é isto de ser um ser humano a caminhar sobre a terra, experimentando o milagre de estar vivo.

O Rock aparece no século XX como uma espécie de organismo musical primordial, um corpo latente que havia estado adormecido no espectro musical e que ressuscitava na grande ressaca do pós guerra. Dos tambores de África aos espirtuais dos escravos, dos blues do negro segregado ao “gingar” do branco assimilado.

Toda a história da música, ao longo das eras, reflecte a par e passo a evolução do homem enquanto ente psíquico e social. De notar que a palavra evolução não denota necessariamente um melhoramento ou um progresso, pois estes são conceitos abstractos. Apenas denota uma adaptação no sentido que Darwin lhe deu. E a viagem do homem é, essencialmente, uma viagem do corpo para a mente, do concreto e palpável para o abstracto imaterial.

Assim, também a música que este cria, e que sempre o acompanhou no seu percurso, construiu-se em vagas sucessivas de complexificação e abstracção. Dos ritmos percussivos primordiais que, provavelmente, usariam o próprio corpo enquanto instrumento, para a quase matemática pura das grandes sinfonias. O uso da partitura e da notação tornou, pouco a pouco, a música num exercício intelectual, cujo o escopo era, cada vez mais, acessível a cada vez menos. A grande música tornava-se erudita. De uma elite para uma elite.

E o povo? A música popular, tendo mantido sempre a melodia e a simplicidade, foi perdendo, no entanto, o poder visceral que na aurora dos tempos a caracterizou. Até ao grande descalabro das ideias de progresso e civilização que foi a Segunda Guerra, a música teria vários fins: o de inspirar devoção (a Deus, ao rei, ao estado, a este ou aquele ideal); o de nutrir sentimentos e estados de espírito, mais ou menos elevados; o de bailar e proporcionar contentamento e diversão ao corpo e às vontades, de forma mais formal ou mais desbragada.

A música como instrumento de ascensão, não pelo sublime como pretenderiam os clássicos, mas pelo baixo, pelo vil, pelo selvagem, pelo sexual, há muito que estava ausente do mundo

Mas a mais antiga e primária função da música estava há muito tempo ausente do mundo, excepto naqueles sítios apelidados de primitivos: a função xamânica. A música e os ritmos como instrumentos de libertação do corpo, anulação da mente, desintegração do ego, para que o ser verdadeiro seja resgatado e vivido. A música como instrumento de ascensão, não pelo sublime como pretenderiam os clássicos, mas pelo baixo, pelo vil, pelo selvagem, pelo sexual. A escada para o céu começa no mundo subterrâneo. A grande máxima hermética: o que está em cima é igual ao que está em baixo. A música como ponte para o êxtase, como estrada primal para o divino. Essa função da música estava há muito tempo esquecida.

Imaginemos: o amanhecer do nosso mundo, num tempo em que o despertar da consciência estava ainda pintado de fresco, e em que caminhávamos como recém-nascidos, tropeçando de surpresa em surpresa. De dia fazia-se pela vida (primeiro pela recolecção, depois pela caça, pastorícia, e, finalmente, pela agricultura), pois o dia é o tempo do trabalho e de dar à vida o que a vida nos deu. À noite, homens e mulheres de medicina conduziam o grosso da tribo(s) do círculo da fogueira, onde comeu o trabalho do dia, para o interior de cavernas escuras e uterinas. E, à luz do fogo das tochas, iluminava-se aquilo que muito antropologicamente chamamos, hoje em dia, de pinturas rupestres. E contavam-se e cantavam-se histórias. Que são mitos. E os mitos, tal como as letras actuais do pop rock, não são reais ou factuais, mas são verdadeiros porque contêm as verdades universais reconhecidas dentro de cada ser.

E, tendo ouvido a grande história que ressoa dentro de cada um, regressava-se à grande fogueira, ao redor da qual se dançava e se extasiava e se libertava. Ao som de percussões rítmicas poderosas que arrancavam a carne dos ossos e permitiam ao espírito voar. Os músicos e os ilustradores primevos eram homens de medicina. Eram xamãs. Talvez esta história se tenha passado assim ou talvez não. Não importa, porque o mito não é a verdade dos factos, mas a verdade da nossa essência que é a única verdade que nos interessa.

Alex Grey e os Tool são os descendentes directos destes xamãs primordiais

Alex Grey e os Tool são os descendentes directos destes xamãs primordiais. Criaturas de viagens entre mundos, tanto o artista gráfico como os músicos assumem a sua arte como um instrumento de cura e libertação, para lá do simples entretenimento. A arte sacra regressa ao mundo contemporâneo pela “porta do cavalo”, despojada agora das amarras culturais que sempre a toldaram na sua versão religiosa. Alex Grey será talvez o nome maior daquela arte a que se dá, erroneamente, o nome de visionária. Toda a arte que mereça, verdadeiramente, esse nome será sempre visionária.

Mais correcto será dizer que Grey cria visões enteogénicas, visões dos mundos subtis, já que é reconhecido que a sua principal fonte de inspiração são as plantas visionárias do planeta, especialmente a grande medicina da selva amazónica que é a Ayahuasca. Um líquido composto de duas espécies diferentes de plantas nativas, a Ayahuasca é utilizada, desde tempos imemoriais, pelos povos indígenas da bacia amazónica, para induzir a visão, limpar o corpo, a mente e o espírito, e permitir a entrada no fluxo colectivo do planeta e da vida. A continuidade entre o homem e a restante natureza é, de uma forma geral, o grande cisma entre as cosmologias dos primeiros povos e aquelas do homem ocidental. Onde estes últimos vêm um território externo a ser temido, consumido, manipulado, reaproveitado ou destruído, os primeiros têm-no como uma parte integrante de si próprios. Uma árvore ou uma pedra ou uma estrela são tão parte de si como uma mão, um rim ou um pensamento. Esta visão cosmológica teria um dia sido a de todos nós mas, tal como na proverbial fábula do jardim do Éden, dela fomos expulsos. Mas tal como um fruto da terra nos conduziu ao exílio e à separação, outro pode sempre conduzir-nos de volta ao fluxo onde não somos um ente separado do resto das coisas. Um faz-nos grandes, o outro pequenos.

Grey utiliza todas as portas que o universo disponibiliza para regressarmos ao seu núcleo e deste regressa com as visões curativas para os nossos modernos maus estares. Regressa sobretudo com visões do corpo. De corpos e sistemas. Sistema linfático, ósseo, digestivo, circular, mental, energético, cármico. Corpos que podem não ser visíveis ao olho nu, mas que estão presentes em nós e somos nós. E podem ser contemplados por outros olhos abertos e visionários, mais ou menos pineais. Pinta retratos realistas à boa maneira renascentista, com técnica e conhecimento da arquitectura do sujeito. Não é um expressionista, muito menos um abstracto. O facto do seu realismo não ser reconhecido como tal prende-se com as limitações do conceito de realidade. Há quem lhe chame fantástico, mas Grey só se identificaria como tal na medida em que a própria vida é fantástica.

Os Tool sempre foram uma banda que procuraram unificar a imagem com o som. Saídos maioritariamente de escolas de artes, há uma coerência estética nos seus discos e nos vídeos. Adam Jones, o guitarrista, é o responsável pela estética dark-what-the-fuck-stop-motion que tanto caracteriza a imagética visual da banda. Corpos mais ou menos humanóides, que se deformam, dissecam, dividem, se fundem e se recombinam ad infinintum, em paisagens alienígenas despojadas e minimais. Este é o apanágio de um vídeo de Tool.

A música, essa pende para ritmos, escalas e acordes pouco usuais, mais comummente encontrados nas escolas musicais Indianas ou do Oriente médio do que na partitura ocidental. As letras e a voz de Maynard soam progressivamente, como se um profeta místico estivesse a tentar emergir do corpo de um vocalista de metal clássico. Todo o caminho vital da banda parece ser feito como um rio, que parte de uma nascente de violência, abuso, raiva e escuridão (onde tantas das correntes mais pesadas do rock começam), em direcção a uma foz de transcendência. Talvez seja quando a banda começa a brincar com sequências de Fibonacci na bateria e métricas sufi, com referências mais ou menos cabalísticas ou numerológicas, quando se começa a fazer arqueologia nos pontos vitais da arquitectura do cosmo, que se dá a maturação suficiente para o encontro, nalgum ponto cego do universo, com Grey, que já há muito fazia a sua própria arqueologia da geometria sagrada.

Lateralus” é o álbum onde estas duas vias xamânicas, musical e visual, se vão encontrar

Era expectável que, cedo ou tarde, no corpo do rock aparecesse uma banda como os Tool, que levasse o som e razão de ser para lá da fúria e do hedonismo adolescente, para lá da sexualidade, para lá da exploração inane de drogas, para lá da luta política social, para lá de pseudo flirts com espiritualidade, que são pouco mais do que teatro burlesco. Que leve a combinação de ouro, “voz-guitarra-baixo-bateria”, de volta para aquela aurora do homem, onde a música era o nosso instrumento de transcendência, redimindo-nos dos dias de luta e sobrevivência animal para as noite de voo xamânico. Os Tool não aparecem obviamente no vácuo, são precedidos de várias outras bandas que andaram a brincar nos campos do senhor. Dos Floyd aos King Crimson, dos Zeppelin aos próprios Beatles, a consciência lisérgica uniu-se cedo aos caminhos do rock e procurou guiar os seus jovens protagonistas da garagem para o templo. Mas é preciso chegar aos anos noventa para que esta consciência mature e a função xamânica seja assumida. Sem medos, pudores ou hesitações.

“Lateralus” é o álbum onde estas duas vias xamânicas, musical e visual, se vão encontrar. Um álbum onde, musicalmente, se disseca de forma concreta e simbólica o que é isto de ser um ser humano a caminhar sobre a terra, experimentando o milagre de estar vivo. O homem é assim, em “Lateralus”, a medida de todas as coisas, e é este que ocupa capa. As capas. O corpo de um homem. Os corpos de um homem. Dizem que uma das provas de iniciação do xamã é a contemplação do seu próprio esqueleto. O iniciado é levado por espíritos, mais ou menos desagradáveis, até aos confins do mundo subterrâneo, onde este é dilacerado e presenteado com a visão dos seus ossos. O esqueleto é o suporte essencial do corpo físico e é a única coisa que perdura algum tempo após a nossa morte. Até que também se desfaça no pó de que todas as coisas são feitas e de onde vieram. O iniciado medita assim nesta visão, que é uma experiência, e contempla a impermanência das coisas pelos olhos daquilo que não é uma coisa. E atinge a compreensão de quem ele é. E de qual é a sua função no mundo. Alex Grey descreve a capa de “Lateralus” como um mapa das dimensões do ser. Isto é concretizado através de várias camadas de ilustração em transparências sucessivas.

Pode e deve começar-se na imagem inicial que nos é apresentada e ir progressivamente desfolhando, retirando elementos, até chegar à essência. De fora para dentro. Temos inicialmente a imagem de um homem, despojado da pele. Vemos os músculos e o sistema circulatório, mas vemos também a forma como este corpo mais denso interage com os corpos subtis. O ponto importante são os olhos não físicos, situados nas palmas, no coração, na garganta e na fronte, e a espiral de luz, vinda de cima, que alimenta esta visão. E é esta visão que permitirá irmos vendo mais fundo na figura que nos é apresentada. O que não é mostrado, mas sugerido pela sua ausência, é que começamos já in media res: as roupas e a epiderme já desapareceram quando miramos a capa. O processo já começou antes de começar. Estamos sempre a meio julgando estar no inicio.

A próxima camada revela o esqueleto, os ossos brancos que esperam por nós. É a imagem clássica da morte, utilizada em incontáveis sepulturas e más capas de metal. É a nossa visão superficial do fim. E no entanto aqui é apenas a segunda capa. Estamos ainda longe do fim. Músculos e ossos sofrem uma permanente transformação ao longo da vida. O esqueleto que levamos para o escuro não é de todo o mesmo com emergimos deste.

Mais uma camada e são revelados os órgãos vitais, frágeis e delicados e essenciais para a nossa vitalidade, estão protegidos pela solidez vigilante do esqueleto. A figura tétrica que tanto apavora os ignorantes no seu sono é, na realidade, o grande guerreiro que mantém vigia sobre a tribo desprotegida que dorme. No centro da garganta um pentagrama representa a voz. É por ela que passa a grande criação. Cantar ou falar a verdade mete-nos em contacto com os poderes para além do pequeno “eu”. A natureza humana, a contradição de um ego temporal em união com um espírito infinito, pode ser resolvida numa união alquímica. A voz é a chave da criação. No princípio era o Verbo.

A ideia superficial de humanidade começa a desaparecer na próxima camada: somos entranhas e veias e dobras. Somos coisas estranhas e feias e repugnantes, só visíveis em caso de morte ou de graves acidentes. Se a mais bela das mulheres, em todo o seu esplendor físico, nos fosse apresentada com um corte longitudinal, a todo o comprimento, poucos conseguiriam segurar a náusea. No entanto, é desta massa visceral que todos somos compostos, apenas três camadas abaixo. É desta massa visceral que são feitos os entes que tocamos, beijamos, abraçamos e fazemos amor ao longo de uma vida. Apenas três “camadinhas” abaixo está uma organicidade que apenas cirurgiões, legistas e assassinos em série verdadeiramente chamarão bonita.

Mais um virar de página e já não temos um corpo físico. Este é o território onde o materialista, o positivista, o cartesiano param. Onde se riem e descrevem este voltar da folha como uma tontice, uma superstição, um nada. Uma incapacidade infantil de encarar o fim. Talvez seja na realidade, para o xamã que contempla, uma incapacidade ainda mais infantil de imaginação. Não se deve confundir alguém que abraça o mito e o tempo dos sonhos como um tonto ingénuo. Afinal, a única via de lá chegar é do coração, e é preciso reservatórios imensos de coragem e de lucidez para abandonar os limites da mente que pensa e lançar-se em território desconhecido. Aqui já não existe um eu no sentido clássico e este arqueólogo xamânico desidentificado só pode contar com a confiança e o despojamento. E, como recompensa pelo salto no escuro, encontra aqui um artefacto mítico. É o Vajra, o ceptro do trovão carregado pelo grande deus hindu Indra e adoptado pelos Budistas como representante da claridade e brilho da nossa verdadeira natureza. O Vajra aqui é o símbolo do espírito indestrutível, não criado e não perecível, à volta do qual o dinamismo biológico, anatómico e psíquico da vida ganha forma.

A última camada vai ser encontrada impressa no próprio disco: um círculo de olhos. Esta é a última verdade que não pode ser realmente compreendida, o grande mistério que pode ser sentido por detrás de todas as formas e conceitos. O vazio primordial, claro e infinito, está para além de toda a descrição ou representação. É o chão transcendente, não manifesto, de todos aos reinos manifestos. A sua forma serrilhada pode ser vista como uma das grandes fogueiras primordiais, à volta da qual os homens e mulheres de medicina tocavam música de ascensão e transcendência. Ou talvez os múltiplos olhos sejam os olhos que observavam o fogo em silêncio, depois dos tambores se calarem. O fogo é o símbolo da energia vital e os olhos o símbolo da consciência. Múltiplos olhos simbolizam assim uma consciência expandida, e olhos infinitos uma consciência infinita.