Os Jethro Tull de Ian Anderson regressaram uma vez mais a Portugal para actuar no Multiusos de Guimarães. Não foi apenas uma performance, foi uma experiência que evocou memórias de infância, despertou novas emoções e consolidou o legado de uma das bandas mais originais do rock.
A Música que Contava Histórias
Uma das memórias mais marcantes de quando comecei a gostar de rock foi com os Jethro Tull. Em criança, era muito visual, e o disco “Aqualung” do meu pai exercia sobre mim um magnetismo quase sobrenatural. Na capa, aquela figura com expressão sofrida, o cenário erguendo-se entre ruínas góticas ou vielas antigas, fazia-me sentir que estava a entrar numa cidade medieval, onde o som da flauta me convidava a uma história de isolamento, de confronto e de beleza melancólica. Só mais tarde percebi que não era só a música: era a atmosfera, o drama, o contraste entre o suave e o áspero, tudo envolvido numa paisagem sonora que parecia fundir o folclore inglês com o rock mais expansivo.
Agora, décadas depois, a expectativa de ver o Jethro Tull ao vivo pela primeira vez misturava ansiedade e euforia. A possibilidade de estar no Multiusos de Guimarães, uma cidade histórica, de traços medievais e palco do nascimento deste país, adicionava ainda mais significado à experiência. Cada dia que se aproximava do concerto parecia prolongar a tensão deliciosa de quem vai finalmente tocar num mundo que, até então, só conhecia através de vinis e memórias auditivas.
Do Vinil ao Palco: Uma Viagem no Tempo
Antes mesmo de as luzes se apagarem, chamou a atenção o repetido aviso no sistema de som que pedia ao público que evitasse filmar ou fotografar durante o concerto. O motivo, segundo a produção, era que a banda se distraía com o brilho dos telemóveis. O público respeitou, e esse pacto de silêncio visual criou uma atmosfera curiosa, quase cerimonial, como se estivéssemos prestes a assistir a algo destinado apenas a ser vivido, e não capturado.
O concerto começou com Ian Anderson sozinho na harmónica, e logo se ouviu “Some Day the Sun Won’t Shine for You”. A abertura, seguida de “Beggar’s Farm”, trouxe de imediato uma sensação de familiaridade, como se a banda nos convidasse a revisitar os primeiros capítulos da sua história. Cada tema parecia escolhido com cuidado para desenhar um arco emocional: da leveza folk de “Mother Goose” e “Songs from the Wood” à complexidade progressiva de “Thick as a Brick”, ainda que em versão encurtada.
O som, embora muito bem equilibrado, não estava alto. Num espaço como o Multiusos, essa opção teve um efeito duplo curioso: se, por um lado, preservava a clareza dos instrumentos e a precisão da flauta de Anderson, por outro tornava o eco do pavilhão mais perceptível, diluindo ligeiramente a força das passagens mais intensas. Ainda assim, a qualidade técnica manteve-se praticamente irrepreensível. Foi o tipo de espetáculo que se ouve mais com o coração do que com o corpo.
A banda manteve um equilíbrio perfeito entre os clássicos e as peças mais recentes. “Curious Ruminant” e “The Zealot Gene” mostraram que, apesar de todas as décadas, os Jethro Tull continuam inovadores e relevantes.
A banda manteve um equilíbrio perfeito entre os clássicos e as peças mais recentes. “Curious Ruminant” e “The Zealot Gene” mostraram que, apesar de todas as décadas, os Jethro Tull continuam inovadores e relevantes. A minha expectativa por “Budapest” concretizou-se, talvez a minha canção preferida da setlist, e foi interpretada com uma delicadeza que me arrepiou. A capacidade de Ian Anderson em alternar entre momentos de virtuosismo instrumental e interpretações mais introspectivas manteve o público hipnotizado.
Ao contrário do que muitos afirmam, considero que a voz de Anderson continua a exercer um magnetismo inconfundível. Aquela sensação de estarmos a ouvir um ancião a contar histórias sábias é uma das características que nele só melhora com o tempo. A sua flauta, os solos, a postura singular, muitas vezes tocando sobre uma perna só, (imagem de marca criada pela imprensa, como o próprio recorda em entrevista), e a interação com os músicos deram ao concerto uma vivacidade notável. Cada mudança de ritmo ou pausa dramática era recebida pelo público com aplausos e assobios, criando uma atmosfera de comunhão e partilha de emoções.
Entre os clássicos, temas como “Aqualung” e “Locomotive Breath” transformaram a plateia numa explosão de nostalgia coletiva. Foi apenas nesta última que o público pôde finalmente filmar, como prometido, e talvez por isso cada gravação tenha sido feita com uma devoção silenciosa, como quem queria guardar não apenas o som, mas o instante. Era notável a presença de fãs de todas as gerações, que participavam intensamente, provando que a música dos Tull transcende o tempo. Mesmo os momentos mais recentes, menos conhecidos, ganharam vida própria em palco, e a banda soube equilibrar tradição e inovação de forma magistral.
Epílogo de uma Noite Memorável
O concerto deixou uma sensação de completude. Não foi apenas uma performance, foi uma experiência que evocou memórias de infância, despertou novas emoções e consolidou o legado de uma das bandas mais originais do rock. Saí do Multiusos com a mente e o coração repletos de música, lembranças, histórias novas e uma magia difícil de explicar. Um encontro raro entre passado, presente e futuro que, por uma noite, coexistiram na mesma melodia.
