jethro tull c ines barrau
Foto tirada em 2024 no concerto do Coliseu de Lisboa. (c) Inês Barrau

Jethro Tull: Quando o “Aqualung” Ganhou Vida em Guimarães

12/10/2025

Review

Voz
8/10
Banda
9/10
Ambiente
10/10
Som
8/10
Overall
8.8/10
Some Day the Sun Won’t Shine for You
Beggar’s Farm
A Song for Jeffrey
Thick as a Brick (shortened)
Mother Goose
Songs from the Wood
Weathercock
The Navigators
Curious Ruminant
Bouree
My God
The Zealot Gene
The Donkey and the Drum
Over Jerusalem
Budapest
Aquadiddley
Aqualung
Locomotive Breath

Os Jethro Tull de Ian Anderson regressaram uma vez mais a Portugal para actuar no Multiusos de Guimarães. Não foi apenas uma performance, foi uma experiência que evocou memórias de infância, despertou novas emoções e consolidou o legado de uma das bandas mais originais do rock.

A Música que Contava Histórias

Uma das memórias mais marcantes de quando comecei a gostar de rock foi com os Jethro Tull. Em criança, era muito visual, e o disco “Aqualung” do meu pai exercia sobre mim um magnetismo quase sobrenatural. Na capa, aquela figura com expressão sofrida, o cenário erguendo-se entre ruínas góticas ou vielas antigas, fazia-me sentir que estava a entrar numa cidade medieval, onde o som da flauta me convidava a uma história de isolamento, de confronto e de beleza melancólica. Só mais tarde percebi que não era só a música: era a atmosfera, o drama, o contraste entre o suave e o áspero, tudo envolvido numa paisagem sonora que parecia fundir o folclore inglês com o rock mais expansivo.

Agora, décadas depois, a expectativa de ver o Jethro Tull ao vivo pela primeira vez misturava ansiedade e euforia. A possibilidade de estar no Multiusos de Guimarães, uma cidade histórica, de traços medievais e palco do nascimento deste país, adicionava ainda mais significado à experiência. Cada dia que se aproximava do concerto parecia prolongar a tensão deliciosa de quem vai finalmente tocar num mundo que, até então, só conhecia através de vinis e memórias auditivas.

Do Vinil ao Palco: Uma Viagem no Tempo

Antes mesmo de as luzes se apagarem, chamou a atenção o repetido aviso no sistema de som que pedia ao público que evitasse filmar ou fotografar durante o concerto. O motivo, segundo a produção, era que a banda se distraía com o brilho dos telemóveis. O público respeitou, e esse pacto de silêncio visual criou uma atmosfera curiosa, quase cerimonial, como se estivéssemos prestes a assistir a algo destinado apenas a ser vivido, e não capturado.

O concerto começou com Ian Anderson sozinho na harmónica, e logo se ouviu “Some Day the Sun Won’t Shine for You”. A abertura, seguida de “Beggar’s Farm”, trouxe de imediato uma sensação de familiaridade, como se a banda nos convidasse a revisitar os primeiros capítulos da sua história. Cada tema parecia escolhido com cuidado para desenhar um arco emocional: da leveza folk de “Mother Goose” e “Songs from the Wood” à complexidade progressiva de “Thick as a Brick”, ainda que em versão encurtada.

O som, embora muito bem equilibrado, não estava alto. Num espaço como o Multiusos, essa opção teve um efeito duplo curioso: se, por um lado, preservava a clareza dos instrumentos e a precisão da flauta de Anderson, por outro tornava o eco do pavilhão mais perceptível, diluindo ligeiramente a força das passagens mais intensas. Ainda assim, a qualidade técnica manteve-se praticamente irrepreensível. Foi o tipo de espetáculo que se ouve mais com o coração do que com o corpo.

A banda manteve um equilíbrio perfeito entre os clássicos e as peças mais recentes. “Curious Ruminant” e “The Zealot Gene” mostraram que, apesar de todas as décadas, os Jethro Tull continuam inovadores e relevantes.

A banda manteve um equilíbrio perfeito entre os clássicos e as peças mais recentes. “Curious Ruminant” e “The Zealot Gene” mostraram que, apesar de todas as décadas, os Jethro Tull continuam inovadores e relevantes. A minha expectativa por “Budapest” concretizou-se, talvez a minha canção preferida da setlist, e foi interpretada com uma delicadeza que me arrepiou. A capacidade de Ian Anderson em alternar entre momentos de virtuosismo instrumental e interpretações mais introspectivas manteve o público hipnotizado.

Ao contrário do que muitos afirmam, considero que a voz de Anderson continua a exercer um magnetismo inconfundível. Aquela sensação de estarmos a ouvir um ancião a contar histórias sábias é uma das características que nele só melhora com o tempo. A sua flauta, os solos, a postura singular, muitas vezes tocando sobre uma perna só, (imagem de marca criada pela imprensa, como o próprio recorda em entrevista), e a interação com os músicos deram ao concerto uma vivacidade notável. Cada mudança de ritmo ou pausa dramática era recebida pelo público com aplausos e assobios, criando uma atmosfera de comunhão e partilha de emoções.

Entre os clássicos, temas como “Aqualung” e “Locomotive Breath” transformaram a plateia numa explosão de nostalgia coletiva. Foi apenas nesta última que o público pôde finalmente filmar, como prometido, e talvez por isso cada gravação tenha sido feita com uma devoção silenciosa, como quem queria guardar não apenas o som, mas o instante. Era notável a presença de fãs de todas as gerações, que participavam intensamente, provando que a música dos Tull transcende o tempo. Mesmo os momentos mais recentes, menos conhecidos, ganharam vida própria em palco, e a banda soube equilibrar tradição e inovação de forma magistral.

Epílogo de uma Noite Memorável

O concerto deixou uma sensação de completude. Não foi apenas uma performance, foi uma experiência que evocou memórias de infância, despertou novas emoções e consolidou o legado de uma das bandas mais originais do rock. Saí do Multiusos com a mente e o coração repletos de música, lembranças, histórias novas e uma magia difícil de explicar. Um encontro raro entre passado, presente e futuro que, por uma noite, coexistiram na mesma melodia.

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