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Black Sabbath, o Insustentável Peso do Ser

Black Sabbath, o Insustentável Peso do Ser

2013-12-10, O2 Arena, Londres
Nero
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Este é o relato de uma peregrinação herética. Da memória inesquecível de ter visto monstros e da liturgia triunfal de uma das maiores bandas da história.

Se há algo que nos suprime o medo de voar deve ser a música. «I wanna reach out and touch the sky», berra Ozzy em “Supernaut”. Vestimos a pele do navegador psicotrópico, cantado no “VOL. 4”, e acolhemos a insanidade de viajar sobre jactos que nos impelem a mais de 700 Km/h. Os BLACK SABBATH actuam em Londres, numa arena O2 esgotada. A neblina, sombria e gélida, que nos abraça na capital do Reino Unido ajusta-se à solenidade do momento, em jeito de atmosfera invocada pelos deuses obscuros da antiga Albion. Do aeroporto para o “Underground”. Quando saímos do submundo do metro londrino, na estação da O2 ouve-se uma guitarra entoar melancolicamente as notas de “Changes”. Quão mudados estarão, de facto, os SABBATH?

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Na mundana O2 há o Union Square, com um menu especialmente dedicado ao evento da noite. Copos minúsculos de bourbon são empurrados pela lager local.

Depois de uma vida de idolatria herética ao rock n’ roll, está-se prestes a ver, finalmente, os sacerdotes primordiais do termo heavy, os artesãos de um som cinestésico ao período megalítico. Se numa liturgia há a partilha de pão e vinho, na mundana O2 há o Union Square, com um menu especialmente dedicado ao evento da noite. O pão é algo esquecido, mas o vinho (sob a forma de copos minúsculos de bourbon, empurrados pela lager local) corre com abundância.

Também os minutos correm depressa e começa a sentir-se o arrebatamento da assembleia – efusividade, prostração, reverência e temor são sentimentos próprios da devoção religiosa. Outro desses sentimentos é a dúvida. Idades em torno dos 65 anos; a voz de Ozzy destruída por décadas de self-abuse constante; o cancro de Iommi;  a ausência de Bill WardTommy Clufetos em vez de Brad Wilk (que gravou, em estúdio, “13”)…

Não importa ver uma banda tocar bem ou mal, o que realmente conta é ver músicos a darem aquilo que têm e o que não têm em palco, é isso um concerto!

Soam sirenes de alarme, estridentes e agressivas, não na nossa cabeça, mas numa sala que explode quando se começa a ouvir, como que a anunciar passadas de mastodontes, os acordes espaçados e bélicos de “War Pigs”. «Generals gathered in their masses / Just like witches at black masses…Oh Lord Yeah!» O hino que abre “Paranoid” instala na massa Londrina um estado febril!

Osbourne está fora de tom, e assim se irá manter em “Into the Void”… A experiência, ainda assim, é arrepiante, não importa ver uma banda tocar bem ou mal, o que realmente conta é ver músicos a darem aquilo que têm e o que não têm em palco, é isso um concerto! Mas quando em “Under the Sun” Ozzy acerta, finalmente, com a afinação, o que estava a ser arrepiante entra no nível do inesquecível! Osbourne anuncia “Snowblind” e os ecrãs gigantes mostram-nos Tony Montana (o personagem de Al Pacino, em “Scarface”) na famosa cena em que se “besunta” numa montanha de cocaína. Será o tema em que mais se nota a presença de Alan Wackeman, o teclista de apoio que está escondido atrás do cenário, e é filho de Rick Wakeman, que gravou os teclados que se ouvem no álbum “Sabbath Bloody Sabbath”.

Com o público num delírio próximo daquele provocado pelo alcalóide, é altura de surgir o primeiro momento do álbum que invocou a reunião – “Age of No Reason”. Será devido ao facto da convivência familiar com os clássicos da banda que só no concerto se permite perceber que neste tema Iommi tem um dos melhores solos da sua discografia? Diz-se que é preciso ter dedos ou unhas para tocar guitarra, Iommi prova que isso é coisa de “meninos”, e que se pode ser um dos melhores do mundo apenas com “2 dedos e 2 meios”.

O “Iron Man” está a lutar com um cancro e toca com a fúria de uma besta ferida. Iommi poderá não ser o melhor guitarrista da história das 6 cordas dentro do espectro sonoro mais pesado, mas é certamente o maior. Iommi foi o Ferreiro que inventou o martelo e a bigorna que haveriam de mudar para sempre a história da guitarra eléctrica – hoje usam-se afinações em B ou mesmo drop A, de modo a que seja mais imediata a sensação megalítica do som, mas Iommi erige dólmens apenas com as mãos…

Iommi foi o Ferreiro que inventou o martelo e a bigorna que haveriam de mudar para sempre a história da guitarra eléctrica

É pelas mãos de Iommi que surge o trítono mais famoso do rock, “Black Sabbath”. Ao contrário do que muitos fanáticos da shred guitar possam pensar, tocar um riff tão simples e tão lento é uma tarefa abismal – conseguir manter o corpo do acorde, a solidez das notas e a dinâmica da canção está ao alcance de muito poucos. E, pegando na dinâmica, Tommy Clufetos tocou este tema como se tivesse sido ele a gravá-lo em 1969.

Aqui dissolvem-se todas as dúvidas que pudessem restar – a força majestosa como os SABBATH estão a soar não se deve apenas ao que as más-línguas dizem ser a intenção de realizar uma tour de reunião para “aumentar o tesouro do dragão”, mas a uma pura demonstração de fúria e vitalidade. “Behind the Wall of Sleep” mantém o concerto na rotação do álbum de estreia da banda e, através de um solo do groove psicadélico dos baixos de Geezer Butler, mantém a ponte para “N.I.B.”.

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Após “Rat Salad”, Tommy Clufetos assinou uma obra de arte no seu solo de bateria.

A meio do set volta “13”, com “End of the Beginning”, e depois a banda torna a focar-se em “Paranoid”, com “Fairies Wear Boots” e “Rat Salad”, a partir da qual Clufetos assina uma obra de arte no seu solo de bateria. Há um ditado latino que ilustra a transformação de um baterista que andou “meio perdido” a tocar com Ted Nugent, Alice Cooper ou Rob Zombienanos gigantum humeris insidentes. Depois a humildade com que o americano procura mimicar a dinâmica de pancada de Bill Ward, e até mesmo a pose deste, é tocante. No final do concerto todas as conversas acabavam por chegar à seguinte conclusão: «E aquele baterista, hein?» A cadência do solo vai diminuindo até uma pancada única no timbalão de chão, num lento compasso 4/4 e adivinha-se a chegada colossal de “Iron Man”.

Nanos gigantum humeris insidentes

Ozzy guardou as notas mais agudas para alguns dos clássicos mais marcantes, só assim se explica a capacidade do vocalista em conseguir fazer “Iron Man” ou “Paranoid” e serem deixados de lado temas como “Supernaut”, “Symptom of the Universe” ou “Sabbath Blood Sabbath” (o épico riff de abertura deste tema ainda será tocado como ponte para “Paranoid”, no encore). Antes desse final apoteótico ouvimos a pergunta niilista de “God is Dead?”, o boogie de “Dirty Women” (uma meia-surpresa ouvir um tema de “Technical Ecstasy”, e um deleite as imagens que, no ecrã gigante, ladeavam os músicos) e a revolucionária “Children of the Grave”.

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Quando, em “Under the Sun”, Ozzy acertou, finalmente, com a afinação, o que estava a ser arrepiante entrou no nível do inesquecível!

A viagem terminará com uma resposta clara à pergunta inicial. Os SABBATH sofreram muitas mudanças e esta não foi a reunião perfeita, mas se “13” esteve longe de convencer os fãs dos primeiros trabalhos e até a própria banda (que apenas inclui três temas desse álbum na setlist), o poder impresso no concerto está muito longe de fazer esmorecer a força da lenda. Parecem estar já confirmadas datas para 2014, aproveitem para pisar aquele chão biblicamente proibido: o chão sagrado!

SETLIST

  • War Pigs
  • Into the Void
  • Under the Sun/Every Day Comes and Goes
  • Snowblind
  • Age of Reason
  • Black Sabbath
  • Behind the Wall of Sleep
  • N.I.B.
  • End of the Beginning
  • Fairies Wear Boots
  • Rat Salad
  • Iron Man
  • God Is Dead?
  • Dirty Women
  • Children of the Grave
  • Paranoid