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Dead Combo e a Bíblia lisboeta

Dead Combo e a Bíblia lisboeta

2014-03-21, Coliseu dos Recreios, Lisboa
Nero
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«O próximo chama-se “Miúdas e Motas”, o sonho de qualquer puto no liceu», diz-nos Tó Trips. A beleza da generalização é a conversão da realidade a larga escala, a uniformização. Beleza porque há momentos em que nos sentimos congregados sob a mesma atmosfera e, para lá daqueles que sonham com miúdas e motas, foi assim que uma plateia afortunada viveu o concerto dos Dead Combo no palco do Coliseu dos Recreios.

Estamos a chegar ao soundcheck [uma visita exclusiva da Arte Sonora] quando os céus de Lisboa se adensam e saturam, explodindo numa carga de pluviosidade que será esquecida com o calor de uma tundra imaginária, onde vagueiam dois mariachi com um ar de quem já viu melhores dias. A apresentação de “Bunch of Meninos” foi, naturalmente, o bloco angular do concerto dos Dead Combo. O calor tropical que emana de temas como “Povo que Cais Descalço” e “Waiting For Nick” contraria a ideia anterior mas, ao ouvir temas como “Mr. Eastwood” ou “Miúdas e Motas”, regressa rapidamente a noção de que Pedro Gonçalves ou Tó Trips poderiam subjugar-nos e fazer-nos uma “gravata mexicana” antes que a moeda que Trips coloca a girar nas costas da guitarra (no final de “Miúdas e Motas”) caísse. As tonalidades das guitarras acústicas ou do contrabaixo, misturadas com a densidade dos riffs de um tema como o novo “Waits”, recordam-nos que os Dead Combo se tornaram um dos mais interessantes projectos de guitarra dos últimos anos, não só a nível nacional, mas também mundial.

A guitarra eléctrica, nas mãos de Trips, é uma prostituta endurecida por uma vida na “fronteira”.

E a partir desse momento de maior electricidade, no eixo “Waits”, “Rodada” e “Pacheco”, Trips revela-se, não como um amante da guitarra eléctrica, mas como alguém que a usa, que a abusa. A guitarra eléctrica, nas mãos de Trips, é uma prostituta endurecida por uma vida na “fronteira”. Não há shred, mas há técnica [se ouvirmos o picking mudo de “Rodada”, talvez até seja errado afirmar que não há shred]. Há um sentido estranho e melódico cada vez mais maturado. E, acima de tudo, há uma exalação de autenticidade, mesmo em momentos inesperados como as ternurentas dedicatórias às filhas dos dois músicos (“Zoe Llorando” e “Welcome Simone”). Não há descaracterização, há transformação.

O projector de vídeo, em “Esse Olhar que Era Só Teu”, mostra-nos as carreiras desta Lisboa que foi a porta da evangelização do mundo – Santos 10, Prazeres 22, Sta Apolónia 24, Belém 30, Ajuda 13… – livros de uma Bíblia apócrifa, escrita pelo Fado e ressoada a guitarra. Sentimos uma nostalgia boémia e fantasmagórica por todos os excessos que não iremos cometer na noite alfacinha. E então, em “Eléctrica Cadente”, o público é esmagado por um truque simples e deslumbrante de produção – sobe a cortina do palco e olhamos as galerias de traço de arquitectura civil eclética do Coliseu (como é magnífico o trabalho de Manuel Garcia Júnior).

O encore, com “Malibu Fair” e “Lisboa Mulata”, foi, naturalmente, apoteótico. Lisboa é uma cidade de guitarras. Os Dead Combo são de Lisboa.

Fotos: Tomás Lisboa

SETLIST

  • 1.Povo Que Cais Descalço
    2.Waiting For Nick
    3.Miúdas E Motas
    4.Mr. Eastwood
    5.Waits
    6.Rodada
    7.Pacheco
    8.Mr. Snowden’s Dream
    9.Dona Emília
    10.Cachupa Man
    11.Arraia
    12.Rumbero
    13.Lusitânia
    14.Zoe Llorando
    15.Welcome Simone
    16.Esse Olhar que Era Só Teu
    17.Eléctrica Cadente
    18.Dos Rios
    19.A Bunch Of Meninos
  • Encore:
    Malibu Fair
    Lisboa Mulata
    A Menina Dança