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Mars Volta

2012-06-14, Coliseu dos Recreios, Lisboa
Carlos Garcia

Algures a meio da função, enquanto a banda faz a pausa que irá preceder a longa e semi improvisada secção do meio, Cedric Bixler-Zavala inicia um monólogo para o público, no qual compara o interior do Coliseu dos Recreios com o de uma nave espacial (ou assim me pareceu), para concluir que nem sempre uma nave espacial será reconhecível enquanto tal. E para rematar esta sua tese aponta para o resto da banda: “Por exemplo, aquilo é uma nave espacial!”

Temos pois assim, na definição dos próprios, a essência do que são os Mars Volta (o próprio nome já assim o sugere): mais do que uma banda do chamado Rock Psicadélico, ou uma troupe de músicos com queda para digressões semi jazzisticas, os Volta são uma nave espacial destinada a levar os seus passageiros a mares sonoros, conceptuais e sinestésicos, nunca ou muito raramente navegados. Viagem pelo espaço interno da psique, que espelha e reflecte o espaço externo do cosmos, numa nave que é simultaneamente orgânica e imaterial. Bixler-Zavala é o vocalista e a face visível da nave Volta, o casco exterior percorrido por luzes a todo o comprimento que muitos pilotos reportam ver nos céus durante solitários voos nocturnos.

Híbrido, quase destilação conceptual de todos os frontman dos anos setenta (entre a roupagem, a voz, a pose, os movimentos e a farta cabeleira há algo de Plant, de Bolan, de Morrison, de Ozzy) é ao logo de todo o concerto um carrossel vivo de movimento e expressividade, que surpreende por reflectir de maneira tão exacta o som que está a ser produzido em palco no momento. Impossível de tirar os olhos, relembra-nos que um concerto de rock é, e deverá ser sempre, ritual, destinado à purga, à catarse, ao êxtase: o Rock n’ Roll é dionisíaco!

O motor da nave é a secção rítmica constituída pela dupla Juan Alderete no baixo e Deantoni Parks na bateria. Ambos garantem uma pulsão constante, ora discreta e concreta, quase imperceptível, ora completamente explosiva, sugerindo abruptas mudanças no curso da viagem. Passamos de nebulosas estranhas, repletas de matéria viva inorgânica, em que o rumo lento permite discernir os seres de lenta existência que vivem no meio da névoa cósmica, para de repente acelerar em modo warp por quasares vertiginosos que explodem em cores fora do espectro conhecido, num crescendo vertiginoso de elevação, e repentinamente, quando damos por isso, estamos estacionados na orbita de um gigante violeta, gasoso e massivo, imaginando as estranhas civilizações que possam existir lá em baixo! “Major Tom to ground control: I’m stepping though the void”!!!

 

Marcel Rodriguez-Lopez é o responsável pelas teclas que aqui fazem a vez de Drive Warp. É ele que permite a passagem aos estados subtis: longe da propulsão e combustão convencional que nos faz deslocar pelo eixo tríplice do espaço clássico (altura, comprimento, profundidade), estamos a viajar sem nos mover, dobrando o espaço e o tempo, passando num milésimo de segundo para o outro lado do universo, ou quiçá mesmo para outros universos, discerníveis toda a vida pelo canto do olho e agora tornados concretos. Os ritmos Newtonianos foram deixados para trás. Viaja-se agora numa onda sonora de probabilidades quântica na qual a nossa disposição afecta o resultado do que estamos a ouvir.

O computador central, a inteligência não artificial que comanda e organiza todo o voo é o guitarrista  Omar Rodríguez-López, alguém para quem o uso de superlativos como génio, por uma vez talvez não sejam exagerados.  É ele quem calcula as rotas e as trajectórias, fazendo com que uma viagem por milhares de anos-luz se proporcione de forma tão natural, sem acidentes, desvios ou colisões. Um mentat que realiza computações orgânicas onde se pressente que todas as possibilidades do mundo estão ali contidas. E que quando o disco parar de girar poderemos já não estar no mesmo sítio. Ou ser a mesma pessoa. Espírito que alimenta um cérebro que comanda as mãos que extraem de uma guitarra variações impossíveis de seis cordas. Não há separação entre instrumento, corpo, mente e alma!

A viagem que começa em The Whip Hand termina em Goliath (“Never heard a man speak like this man before”!). Abruptamente. Quase violentamente. Não há forma suave de aterrar esta nave. Talvez não haja forma de aterrá-la de todo. Os passageiros são ejectados sem cerimónia e devolvidos a procedência.

Cada um abrirá os olhos na sua sala de estar e permanecerá na dúvida se alguma vez saiu do mesmo sítio. A nave só existe enquanto movimento. Findo o percurso desintegra-se e sai de cena. O desejo de continuar a viagem é grande e chama-se e pede-se e implora-se. Mas existem limites de até onde a psique humana pode ir sem que o voo se torne somente de ida.

Antes dos Volta, o aquecimento e preparação para os rigores de cruzar o cosmos, foram feitos por Le Butcherettes, o duo Mexicano punk garage rock. A apetecível vocalista guitarrista Teri Gender Bender e a massiva baterista Lia Braswell, apresentaram-se no Coliseu acompanhadas no baixo por alguém muito semelhante a um clone Rodríguez-López. Muita presença, atitude, ritmo e salero, num set em que as convenções de feminidade dos anos cinquenta são impiedosamente esquartejadas pelo bisturi clínico do pós-milénio. Não ficaram nada mal neste palco e não ficariam mal a tocar num qualquer canto do Black Lodge: “Where we’re from the birds sing a pretty song, and there is always music on the air”!