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Scorpions: o que é o rock?

Scorpions: o que é o rock?

2014-03-10, Meo Arena
Carlos Garcia
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O que é o rock? Pode parecer uma pergunta sem nexo, já que todos guardam dentro de si fragmentos de associações do que, para si próprios, o constitui. Esse algo que, seja o que for, já caminha entre nós há mais de meio século. Guitarras de som distorcido, solos pedantes, gingar de anca, voos de palco, televisões em piscinas de hotéis, overdoses, vento na cara, dedos em riste. A lista de associações é interminável.

Ontem à noite o estrado da bateria eleva-se (dever-me-ia causar surpresa, mas o rock entrou na terceira idade, que não é propriamente conhecida por ser a idade das surpresas mas das certezas) e o solo das baquetas nas peles começa. No final James Kottak, o Kentucky Yankee da banda, levanta-se no seu assento e vira as costas ao público, no cabedal das quais se pode ler rock n’ roll forever. Ovação. Mensagem recebida pelo público, despe a indumentária revelando exactamente a mesma frase, com o mesmo lettering, desta feita tatuado na pele das costas! Redundância? Dupla afirmativa? Ou uma negativa?

O que é o rock n’ roll? Se perguntarem a muita gente na rua, ou se perguntarem a muita da gente no Atlântico de ontem (que se calhar são realmente uma e a mesma gente), os Scorpions são o rock n’ roll! Durante o seu já longo percurso de vida, o rock foi apanhando e fixando imagens, ideias, impressões sobre si próprio, sobre o que deve ser ou deve, pelo menos, parecer. E uma banda como os Scorpions, que apanha a boleia do autocarro do rock na precisa altura em que este atinge o pico da consolidação da auto-imagem, possui todos os atributos (clichés?) do rock.

Estão lá as guitarras de formatos bizarros e azeiteiros, o já referido solo de bateria. A alternância das músicas “a abrir” com as “baladas”, a voz de tenor de Klaus Meine, as labaredas de chamas, as explosões no fim das músicas, o imaginário de estrada e liberdade. Voltaram os Scorpions a Portugal, um dos países a que quase de certeza chamam casa (temos tantas bandas a chamar este cantinho de casa que podíamos construir todo um empreendimento para “rockeiros” aposentados. É aqui que o rock regressa depois de se cumprir?), e chegam a um Atlântico cheio para os receber, os escorpiões alemães apresentaram-se em grande forma e sem surpresas. E ausência delas é, passe a redundância, o elemento menos surpreendente. A máquina está para lá de bem oleada. A rodagem é tanta que um concerto destes pode ser e é feito de olhos fechados. E vêm aqui alguém em busca de surpresas? De algo fora do formato? Olhando em volta julgo que não! Os Scorpions, como outros clássicos do rock da sua geração que ainda rodam pelos palcos do mundo, vivem do conforto do familiar. E em tempos de crise, de agitação, de instabilidade, o conforto do familiar não pode ser sobrestimado. E o desafio, o caos, o confronto, o choque… não é isso rock n’ roll? O que é o rock n’ roll?

Tempos houve em que um pai nunca compreenderia que o filho/a ouvisse aquele tipo música. Que nem sequer era música. Era barulho. Ser considerado barulho pela geração predecessora era a própria definição de rock n’ roll. Daquele tipo de música. Aqui no entanto, o pai traz o filho.

Aqui dentro encontramos aquele público “todas as idades”, oito aos oitenta, pais que trazem filhos, avôs que trazem netos. Todos os que já passaram, e ainda passam, pelo 2001 e fazem rock revivals país fora. Há cotas arrumadas e miúdas jeitosas. E parecem ambas igualmente sexy e felizes quando as câmaras fazem delas estrelas de dez segundos nos ecrãs gigantes!

Tempos houve em que um pai nunca compreenderia que o filho/a ouvisse aquele tipo música. Que nem sequer era música. Era barulho. Ser considerado barulho pela geração predecessora era a própria definição de rock n’ roll. Daquele tipo de música. Aqui no entanto o pai traz o filho. Como nos Xutos. Como nos Stones. Para ouvir algo que ele, claramente, não considera barulho, mas «uma ganda malha do meu tempo». É rock n’ roll portanto?

O concerto é iniciado com “Sting in the Tail”, o tema título do último (último?) álbum. Mas não é verve desafiadora do animal que lhes dá o nome que nos é oferecido. Há muito tempo que o veneno se esgotou nas veias destes escorpiões. E o que está no seu lugar é algo quase… Doce? Fofinho?! “Make it Real” e “The Zoo” marcam instantaneamente o compasso da familiaridade ao transportar o público para a década mais emblemática da banda: a de oitenta. “Coast to Coast” e “Loving You Sunday Morning” situam-se ainda nestas coordenadas, quando a banda encontrou o elementos que marcam as características do seu som. E cujo novo hit “The Best is Yet to Come” (há aqui espaço para a ironia?) vem a demonstrar que ninguém domina a fórmula dos Scorpions tão bem quanto os próprios! Os Scorpions fazem deles próprios como ninguém. São a sua própria banda de tributo! Eles disseram que neste último álbum queriam como que canibalizar-se a si mesmos, pilhando e modernizando o som porque ficaram conhecidos. “Send me an Angel”, “Tease me Please” e “Hit Between the Eyes” vêm quase sequencialmente, os singles do álbum com que os Scorpions encerraram a porta áurea. Falta só um. Aquele que inevitavelmente reservam para o encore.

“Kottak Attack” é o já referido ataque a solo do percussionista, acompanhado de um vídeo que nos faz um percurso montanha russa virtual pelas capas mais emblemáticas da banda. A trip down memory lane. A nostalgia ainda é rock?

Encerram com “Big City Nights”, dedicada a Lisboa (esta dedicatória nos ecrãs muda de cidade para cidade)? E se falha o vídeo e Dusseldorf aparece em vez de Madrid. Ou Moscovo em vez de Kiev?) No encore (também ele um cliché do rock?) “Wind of Change” (com uma dedicatória encriptada à pseudo guerra fria, que mais parece ela própria um revivalismo desesperado, que se vive hoje na Ucrânia), “Rock you like an Hurricane”, “No One Like You”.

Agradecimentos à boca de cena, baquetas, palhetas, bandeira portuguesa (ao contrário, sempre ao contrário). Saída ordeira. Todos parecemos cumprir função. Profissionalmente. Até efusivamente. Mas função. Picou-se o ponto. Talvez o familiar seja bom também. Talvez num mundo instável seja necessário esta espécie de irreverência controlada para toda a família!

Quando era pequeno havia um ritual a que voltava ciclicamente, semana após semana, mês após mês, ano após ano. Naquele tempo demorado de quando somos crianças. E em que gostamos muito de rituais, conforto e familiaridade. À hora marcada era só sentar no sofá, taça de cereais ao colo, e ver a cena familiar: silhuetas no lusco-fusco a dirigirem-se a um recinto de concertos, um tipo de cabelo esquisito envolto em luz vermelha, a cantar num sotaque ao lado «Time, it needs time…» O conforto do habitual; pelo menos a julgar pelos dias infinitos em que isto era a música número um do top para muita gente. E ontem, sendo eu uma daquelas silhuetas no lusco-fusco, perguntava-me: Afinal o que é o rock?

FOTOS Eduardo Ventura