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Gilberto Gil volta aos Coliseus rodeado de filhos, netos e do seu quente abraço

Gilberto Gil volta aos Coliseus rodeado de filhos, netos e do seu quente abraço

Maria Brito
Teresa Mesquita

“Aquele Abraço” foi o nome da tour que trouxe Gilberto Gil e a sua banda, composta por filhos e netos, a várias salas europeias onde o músico baiano marcou presença ao longo da sua carreira. Gilberto Gil esteve no Coliseu de Lisboa a 30 e 31 de outubro, e no Porto, a 2 de novembro. Com todos os concertos esgotados, Gil trouxe o abraço quente da Bahia que vamos querer sempre voltar a receber.

Dois anos depois de ter marcado presença em Portugal, trazendo a participação especial de Adriana Calcanhoto, Gilberto Gil voltou a esgotar dois dias do Coliseu de Lisboa e um do Porto. Com o mote “Aquele Abraço”, mítico êxito com que encerrou o primeiro concerto de uma série de três, na passada segunda-feira, 30 de outubro, em Lisboa. A tour vem celebrar os 60 anos de carreira do cantor, compositor, instrumentista, dos quais mais de 50 se passaram a tocar em grandes salas europeias que fizeram parte do seu percurso internacional.

Tão rigoroso e amável como todas as vezes, Gilberto Gil fez-se acompanhar em palco por filhos e netos. Trouxe Bem Gil, na guitarra e no baixo, José Gil, na bateria, e os netos João Gil, no baixo e na guitarra, e Flor Gil, nas teclas e na voz. O show contou ainda com uma participação especial do seu neto, Bento Gil, jovem talentoso que na guitarra acompanhou o avô numa versão ternurenta e acústica de “Tempo Rei”, outro grande sucesso conhecido do artista.

Esta foi uma noite de grandes êxitos, envolta numa aura gloriosa muito festiva, mas que arrancou lentamente. Gilberto Gil tocou as primeiras músicas sem se levantar da cadeira, com uma voz que parecia estar ainda a habituar-se aos primeiros sons da noite. Já na guitarra não lhe adivinhamos os 81 anos, já que é também a perícia com que domina o violão o que o coloca em pé de igualdade com nomes como João Gilberto ou António Jobim. Depois de “Expresso2222” e antes de “Viramundo”, dois clássicos, o cantor brasileiro já dava nota de que “hoje” – e nos próximos dias – o “Boa noite” seria numa só língua, “uma ode a Portugal e ao Brasil, e a um povo só”. O poema estava ali, ainda com uma voz rouca, por vezes fugidia, mas presente para celebrar aquele encontro e encher a sala.

Assim que aqueceu ouvimos de tudo: desde rock, ao samba, ao reggae, à bossa nova e ao baião, género oriundo do nordeste brasileiro e que junto com o samba é uma parte incontornável da formação da identidade da música popular brasileira. O que parece ter sido um início com sabor a ensaio para a banda em palco, para o público já era tudo. Obrigado a confinar a energia que recebia ao seu limite de espaço sentado numa cadeira apertada, a expectativa, o deslumbramento, o carinho e a emoção com que ouviam Gil era enternecedora.

A este ponto começam a entrar uma série de sambas na sala, seguidos e bem escolhidos, todos anunciados por Gil, que colocam ainda mais em evidência essa dificuldade que era não poder usar o corpo em pé para fluir com o som alegre e festivo. Entre um samba rock, samba canção, um samba carnavalesco, é com “Chiclete com banana” que abre esta sequência. Segue-se “Upa Neguinho”, escrito por Edu Lobo e interpretado também, numa das primeiras sensações do seu repertório, por Elis Regina. Seguiu-se “Ladeira da preguiça”, mais um sucesso de Elis que foi escrito pelo próprio, em Londres, aquando do seu exílio de um Brasil em plena ditadura. Partilhou connosco que a canção tinha surgido numa altura em que o assoberbou “uma vontade de falar da saudade que sentia”.

Gilberto Gil esteve exilado em Inglaterra durante a ditadura militar brasileira. Londres foi escolhido como o sítio da Europa mais propício para jovens músicos na altura. Depois de ter estado preso em 1968, no ano seguinte partiu, juntamente com Caetano Veloso, deixando para trás o movimento mais marcante da história da música (e não só) brasileira. A “Tropicália trouxe sons e opções nunca antes ouvidas, numa tentativa de romper com o intelectualismo encontrado na bossa nova e deixar claro que a música brasileira podia e devia aproximar-se da cultura popular, do samba, do pop, do rock, do psicadelismo. Enquanto estava fora exilado, a editora lançou o seu terceiro álbum, “Gilberto Gil”, que inclui êxitos como “Aquele Abraço” ou “Cérebro Eletrónico”, tocado nesta noite numa versão mais acústica e suave que a malha mais psicadélica gravada no disco lançado em 1969.

Além de Elis Regina, houve tempo para homenagens e menções a outros compositores e intérpretes brasileiros, como Ary Barroso ou Gal Costa. Depois de “É luxo só”, toca “João Sabino”, e é com a “Garota de Ipanema” que abre um terceiro ato. Um samba não ortodoxo com laivos de reggae é-nos entregue por Flor Gil. A obra de Tom Jobim e Vinicius de Moraes é interpretada tanto em português como em inglês, uma opção que até dispensaríamos, mas que recebemos com todo o encanto que teve. Finalmente, é “Moon River” a canção eleita para um momento sereno e íntimo, de um avô de Salvador e uma neta que nasceu em Nova Iorque, dominando as primeiras palavras que pronunciou na língua inglesa.

O momento de uma intimidade particular prolongou-se quando Gilberto chama o jovem Bento Gil e juntos tocam uma versão acústica de “Tempo Rei”. Como que a pedir licença e a esperar a deixa de entrada, o público entrava afinado no refrão e entoava junto daquele combo de amor. Mas o cenário muda quando, de seguida, Gil levanta-se – e assim permanece de guitarra elétrica na mão até ao fim do concerto – e toca a sua tão popular versão em português do reggae (“No Woman, No Cry”) “Não Chores Mais”, sucesso de Bob Marley.

Depois de apresentar a banda, tocam “Sonho Molhado”, “Cérebro Elétrico”, uma outra canção dos dias de cárcere, “Esotérico”, como homenagem a Gal Costa que tinha cantado com Maria Bethânia uma versão que ficou para a memória, “Touchez pas à mon pote” escrita para um movimento SOS Racisme em Paris e “Back in Bahia”, uma ode à liberdade. É nesta canção sobre esperança, dos tempos de regresso do exílio, que toda a sala acompanha com palmas entusiastas e se prepara para o início do fim.

«Uma canção pra gente cantar junto», anuncia Gil, já bem no final, quando surgem “Andar com fé” e “Palco”, o lugar onde não restam dúvidas de que Gil pertence. De repente, ninguém sabe onde se sentou no início do concerto e o lugar de onde celebram agora já é outro. O público mistura-se com pessoas que já conhecia ou com completos estranhos e assume o novo lugar de onde vai ver o concerto até ao final. Foi ali vivida uma euforia e uma alegria partilhadas que talvez nem as palavras conseguem descrever.

“Aquele Abraço” e “Toda menina baiana” celebram um digno encerramento de uma bonita festa, que se quer ver repetida por mais anos.

Em baixo podes ver a reportagem do concerto dado no Coliseu do Porto.