Melvins: A Invenção do Sludge, A Horrenda Cria do Punk e do Metal
Leiam um excerto, precisamente o capítulo sobre os Melvins, traduzido do livro “Doomed to Fail: The Incredibly Loud History of Doom, Sludge, and Post-metal”, que será publicado em 2020.
Em Fevereiro de 2020, a Rare Bird Books vai editar o livro “Doomed to Fail: The Incredibly Loud History of Doom, Sludge, and Post-Metal”, do autor e músico J.J. Anselmi. Como o título indica, o livro irá debruçar-se sobre as origens, história e evolução dos sub-géneros musicais mais atmosféricos e opressivos em termos de peso sonoro. Naturalmente que um livro sobre este assunto não estaria completo sem um capítulo dedicado aos Melvins.
“Doomed To Fail” possui esse capítulo, com o pitoresco título “Sniffing Glue on Your Cousin’s Porch” e repleto de citações do guru da banda, Buzz Osborne. «Bandas como os Flipper e os Black Flag andavam a namorar com a redução da velocidade de riffs hardcore quando os Melvins surgiram, mas isso não se compara, nem de perto, com os Melvins no que diz respeito ao peso», refere o autor Anselmi. «Ao mesmo tempo, os Melvins não eram uma banda doom. Ouvir “Gluey Porch Treatments” a par dos Trouble ou Candlemass, tornava bem clara a diferença entre o sludge e o doom. Os Melvins possuíam um intenso e definido espírito punk, o que tornou aquilo que faziam mais visceral e agressivo. Da mesma forma que se pode apontar “Black Sabbath” como o primeiro álbum doom, pode apontar-se “Gluey Porch Treatments” como o primeiro álbum sludge. É impossível imaginar o que seria esse género se esse álbum nunca tivesse existido. Dos Eyehategod aos Kylesa e tantos outros, os Melvins inspiraram inúmeras bandas e músicos a fazerem música inesquecivelmente pesada».
«Quando falei com o Buzz sobre “Gluey Porch Treatments”, fiquei pasmado por saber quão hostis eram as audiências para com esse álbum lendário. Também ouvi alguns fãs falarem sobre os Melvins a tocar para públicos bastante antagónicos ao longo dos anos. Tendo em conta essa banda e a sua música, isso significa que estavam a fazer algo como deve ser. “Gluey Porch Treatments” e muito outro material dos Melvins é pugilístico. É natural que as pessoas queiram ripostar». A Revolver partilhou um excerto desse capítulo, para promover o livro. Podem ler o original ou a nossa tradução do mesmo.
Sniffing Glue on Your Cousin’s Porch
Crescer numa pequena localidade torna-te estranho. Há uma forma má de estranho: moradores locais amargos, que temem a mudança. Há também uma forma boa de estranho: proscritos que amadurecem ao consumir toda e qualquer cultura com a qual se cruzam no caminho e não distinguem géneros como os miúdos citadinos fazem. Buzz Osborne e Dale Crover, dos Melvins, encaixam na segunda categoria.
Osborne nasceu em Morton, uma vila rural do estado de Washington, com uma população de poucos mais de mil habitantes. O seu pai trabalhava na indústria madeireira, tendo-se mudado com a sua família para a área de Montesano quando Osborne frequentava o sexto ano. Nessa época, Osborne confessa que devorava cada bocado de música em que conseguia meter as mãos.
«No sítio onde vivi durante os anos da minha formação enquanto melómano, nem sequer era possível comprar um disco. Hoje em dias, as pessoas não fazem a menor ideia do que era a América rural antes da internet. Vilas com um único semáforo, sem lojas de discos e em que dez milhas pareciam 10,000. Se quisesse comprar um disco teria que ser por encomenda postal. Aos dozes anos, dava à minha mãe o dinheiro que ganhava a aparar a relva dos jardins ou a trabalhar nos bosques. Ela passava-me um cheque e eu encomendava discos através de coisas como a revista Creem.
Então, demorava umas seis a oito semanas até teres nas mãos o teu disco de David Bowie. Não tinha irmãos mais velhos ou pessoas que soubesse serem fixes. Não me dava com pessoas onde vivia, portanto não tinha ninguém que me mostrasse o novo álbum dos Jethro Tull ou algo assim. Senti-me atraído por essas bandas apenas pela sua imagem. O mesmo com bandas punk como os Sex Pistols ou The Clash. Dessas descobri The Stooges e MC5 e parti daí. Ouvi todas essas cenas antes de ver qualquer concerto. Seattle distava 150 milhas e não tinha carro. Não tinha sequer dezasseis anos».
Nas cidades, especialmente nos subúrbios, pode descobrir-se uma nostalgia colectiva da vida em pequenos lugares, uma vaga ideia de tempos mais simples e vizinhos simpáticos que apenas seduz quem nunca viveu na América rural. A experiência de Osborne é de que as pessoas que vivem em pequenas localidades são, muitas vezes, mais rancorosas, metediças – ele odeia aquela treta de «vi que foste aos correios hoje» – e intransigentes em aceitar a diferença. «Tenta ser diferente e vê o que te espera… As flores mais altas são cortadas», diz.
Embora não tenha começado a tocar guitarra, pelo menos mais seriamente, até ter dezoito anos, a música era a única coisa que fazia sentido para Osborne. Encontrar almas-gémeas “esquisitóides” nesses lugares é tão raro como ter uma nota de 500 no bolso, portanto quando encontras um, é do caraças. Osborne conheceu o baixista Matt Lukin e o baterista Mike Dillard no liceu, mas só começaram a tocar juntos após o terminarem. Originalmente, o trio tocava rock pesado, na onda de Cream ou Zeppelin, antes de mudar para o punk, inspirados por bandas que viam nas caves de Olympia e Seattle. Osborne trabalhava na Thriftway com um tipo de quem ninguém gostava, chamado Melvin. Pensou que seria engraçado dar à sua banda o nome do seu amargo colega de trabalho.
O hardcore era um movimento de pleno direito em 1983, com figurões como Black Flag, Bad Brains e Minor Threat na sua expressividade máxima. A malta dos Melvins adorava esse tipo de música. Mas também viam quão circunscrito o hardcore podia ser. «Em ’84 ou ’85, percebi que o hardcore não ia funcionar para nós», diz Osborne. «Já nessa altura, a maior parte enjoava-me. Queríamos fazer algo mais confrontativo». Ele já havia lidado com demasiada gente que operava em rígidas caixas ideológicas e que tentava forçar esses mesmos parâmetros sobre outros. Decidiu começar a tornar canções hardcore mais lentas, até se tornarem em alguma ainda mais antagónico: a horrenda cria do punk e do metal a que hoje chamamos sludge.
Os Melvins não podem ser apontados como os únicos criadores do género. Os Flipper, de São Francisco, deram à costa em 1979. O groove-punk encharcado em feedback do grupo tinha mais em comum com os golfinhos mal-tratados que representavam no programa televisivo “Flipper” do que com a alegre versão dessa criatura que as audiências adoravam. “Album – Generic Flipper” (1982) e “Gone Fishin’” (1984) estilhaçavam ruído beligerante, um som desvairado que inspirou bandas como The Jesus Lizard e Unsane, além dos Melvins. Os Saint Vitus editaram o disco homónimo, que inclui a jam sludge “Saint Vitus”, em 1984. Nesse mesmo ano, os Blag Flag lançaram “My War”, cujo lado-B chafurda em hardcore lento. Os Black Flag andaram numa digressão sem tréguas a promover “Damaged” de 1981, espalhando punk super rápido e sem merdas por todo o lado. Assente na ideia de que qualquer um pode ser músico – e não apenas pessoas que cresceram em famílias musicais ou que passaram anos a estudar teoria musical – o hardcore era uma reacção à versão polida, excessivamente profissionalizada e estéril do rock que dominou a década de 1970. Mas o hardcore tornou-se a sua própria prisão; policiada por idiotas musculados que viam os mosh pits como uma desculpa para iniciar lutas e espancar pessoas. Em maior sintonia com o espírito provocatório do hardcore do que esses fãs percebiam, esse lado-B de “My War” é um gozo brilhante.
Durante os seus primeiros anos com os Black Flag, Henry Rollins ostentava uma cabeça rapada e levantava o dedo do meio a gadelhudos falhados que beneficiavam desse ser um estilo capilar sem custos. Ao escrever e gravar “My War”, ele e o guitarrista Greg Ginn deixaram crescer o seu cabelo, removendo o tapete dos pés daqueles que achavam que os músicos hardcore deviam ter determinado visual. Foi também uma tentativa de alienar skinheads racistas que erroneamente julgavam Rollins um dos seus. A malta do hardcore reagiu às canções lentas de “My War” da mesma forma que a Saint Vitus: ficou profundamente irritada. A chapada de luva branca dada por essas canções rastejantes é acentuada pelo facto de a primeira metade do disco acelerar como os Minor Threat.
Naturalmente, a estética de irritar pessoas teria um enorme apelo para Buzz Osborne, que desenvolvera essa tendência ao viver em cidades onde as pessoas o ameaçavam porque não gostavam da sua expressão facial. Osborne e Lukin começaram a escrever canções dolorosamente lentas – ainda mais lentas que Flipper ou o lado-B do “My war” – que misturavam elementos do metal e do hardcore. Quando o som dos Melvins começou a mudar, tornou-se claro que Dillard não era o baterista ideal para a banda. Dale Crover tocava numa banda de covers em Aberdeen. O talento do adolescente era óbvio para Osborne e Lukin, então convenceram-no a juntar-se aos Melvins. Crover adorava punk, mas também era capaz de tocar malhas de Iron Maiden e Black Sabbath, além disso era capaz de lidar com os tempos cadenciações estranhas que lhe eram debitados por Osborne e Lukin. Ah! E batia na bateria com a graciosidade de um orangotango tresmalhado.
Em 1985, uma compilação da C/Z de bandas de Washington, intitulada, apresenta quatro canções dos Melvins: a primeira vez que a música da banda viu a luz do dia. Essa editora também lançou o primeiro EP do trio, “Six Songs”, no ano seguinte. Ouvir “Six Songs” é como caminhar numa casa às escuras com pregos enferrujados a soltarem-se das tábuas do soalho: a dor é tão inevitável como imprevisível. Contando com o clássico “Easy As It Was”, que surge ainda mais hórrido em “Gluey Porch Treatments”, o EP não foi bem recebido, digamos assim. Os Melvins embarcaram na sua primeira digressão, tocando o material de “Six Songs” e a maioria do ainda inédito “Gluey Porch Treatments”.
«Em 1986, andámos em digressão por parte dos Estados Unidos», recorda Osborne, «e jurámos nunca mais fazer outra digressão. Apanhámos um monte de skinheads que queria dar-nos cabo do canastro. Não tinham qualquer interesse na nossa música». É tentador romancear as reacções hostis do público, algo que os Melvins já experimentaram de sobra. Mas ouvir todo o tipo de impropérios sobre a tua banda, noite-após noite, custava. «Regressei a casa muito desencorajado», lembra Osborne. «Ainda assim gravámos “Gluey Porch Treatments” depois disso. Sentíamos que o tínhamos que fazer».
Ouvir “Gluey Porch Treatments” a par de Flipper, “Saint Vitus” ou Black Flag é como comparar Sabbath a Zeppelin. Podem beber água do mesmo poço, mas os Sabbath e os Melvins são predadores alfa. Desde o seu início, “Gluey Porch Treatments” não faz qualquer esforço para atrair ouvintes para o seu universo imundo. Lukin inicia “Eye Flyes” com uma linha de baixo tão pesada quanto desagradável. Crover bate nos timbalões em momentos estranhos, cada batida a ir contra aquilo que é expectável. E sobre esse chinfrim, Osborne provoca os ouvintes com feedback dissonante. Ao invés de se direccionar para algo melódico e agradável, o tema desenvolve-se numa colisão instrumental em câmara lenta – como um acidente automóvel que sabes estar prestes a acontecer e não podes impedir ou evitar vê-lo. Nada em “Gluey Porch Treatments” se torna mais fácil. O álbum é um fumegante saco com dejectos caninos à tua porta de casa: tens que o deitar fora, mesmo que te vá sujar os sapatos.
Se pensam que discernir entre doom e sludge é algo académico, comparem “Heater Moves & Eyes” a Sabbath, Trouble ou Candlemass. As canções dessas bandas, ainda que lentas e sinistras, são orientadas por melodias e refrões facilmente digestíveis e seguem arcos narrativos discerníveis. Por sua vez, “Heater Moves & Eyes” é angular, ilógico e deliberadamente desleixado, obtendo um vibe muito diferente do doom dos Sabbath. Uma vez que o sludge é metal lento, muitas vezes escrito por pessoas que cresceram a tocar punk, possui uma ironia desdenhosa que não se encontra no doom. Em vez de retratar a épica luta entre o bem e o mal ou buscar verdades espirituais, o sludge é tipicamente mais terreno, escavando a negatividade da vida enquanto se ri do seu absurdo. Tudo isso é verdade em “Gluey Porch Treatments”.
O capítulo segue a descrever o álbum e o quão influente se tornou, o percurso dos Melvins a partir daqui e até o papel pivotal que a banda teve na construção do som dos Nirvana, afinal Dale Crover gravou as demos de “Bleach”, o álbum de estreia da banda liderada por Kurt Cobain. Recordamos que podem ler mais no livro “Doomed to Fail: The Incredibly Loud History of Doom, Sludge, and Post-Metal”.