AS10: Melhores álbuns nacionais em 2012
2012 foi um ano extraordinário para a música portuguesa, nos seus diversos géneros musicais. A redacção Arte Sonora elegeu a sua lista final (sem qualquer recurso a violência… bom algum).
1 // David Fonseca – Seasons Rising
Que David Fonseca vai ganhando cada vez mais consistência enquanto músico e compositor a cada álbum, conseguido uma carreira em crescendo, era sabido. Que vai ganhando mais confiança na sua voz e consequentemente colocando-a mais à vontade e melhor dinâmica nos temas, também se sabia. O que foi algo surpreendente é a pujança dos temas, que brincam com as fronteiras do rock, neste disco – se ouvirem “The Beating Of Drums”, com o interlúdio a mimar o sentido do psicadelismo dos anos 70, com solos de guitarra bem assumidos e a desconstrução estrutural, essa sensação de devoção “roqueira” torna-se evidente. A riqueza instrumental e de arranjos que fazem de um single como “What Life Is For”, por exemplo, uma canção com uma dimensão que trabalhada com as armas da indústria podia perfeitamente estar no topo dos billboards internacionais, e dizer isto não é nenhum exagero patriótico. O mesmo poderia dizer-se para irresistível “It Feels Like Something”. O equilíbrio entre o universo analógico e digital é outro dos sinónimos de qualidade do álbum, percorrido de uma ponta à outra sem falhas na dinâmica e riqueza harmónica num registo que parece ser o melhor do músico até à data. A isto há que acrescentar que ainda houve uma segunda parte, contudo esta parece mais forte.
2 // The Quartet Of Woah! – Ultrabomb
Inspirado num relativamente obscuro livro infantil, “La Ultrabomba”, do autor I. Sedarazzi (o livro foi mesmo banido em vários países), o álbum de estreia deste projecto é uma das grandes surpresas do ano de 2012. Com uma solidez impressionante nas estruturas e uma enorme vitalidade na produção sonora e arranjos durante todo o disco. A miríade de paisagens sonoras que percorre “Ultrabomb” é um recompensador exercício quebra-cabeças de descoberta de fontes estéticas, mas a forma como nos surge é surpreendentemente simples e directo. A torrente de riffs dá-se num encadeamento que faz um álbum conceptual tornar-se um passeio em vez de um objecto de estudo intensivo. Poderia argumentar-se que aqui ou ali faltaria um tremendo solo de guitarra ou que o trabalho de teclados não é exactamente algo ao nível de Keith Emerson, mas isso nunca chega a ser uma questão devido ao sentido e bom gosto da instrumentação que faz-nos pensar numa frase algo batida: não há highlights neste álbum senão a sua própria totalidade. Diga-se apenas que o trabalho vocal, a maturidade e a atitude nas vozes, é algo realmente acima daquilo que ouvimos no universo pop/rock em Portugal.
Em sentido contrário a muitas obras-primas do rock psicadélico, “Ultrabomb” não nos remete para analogias herméticas. Antes, mantém-nos em consonância com o fluxo directo do seu instrumental e esbofeteia-nos com a realidade mundana “They’re gonna make you think you own things / Just keep on thinking you’re the boss here / Just keep on Reading your Time mag / Keep the Sundays for believing / And all the resto f the week to fuck the weak / Be exceptionally meaningless/ And so pretty nevertheless”. “Ultrabomb” é a emancipação definitiva do rock português. Carregado de balanço e emocionante, chegando a ser épico!
3 // Ana Moura – Desfado
É certo que a renovação do fado trouxe uma série de propostas para todos os gostos. Mais sofisticado, mais castiço, mais tradicional ou mais experimental. Todos estes pressupostos têm vindo paulatinamente a ser congregados sob a tremenda alma de Ana Moura. É precisamente através desse veículo que é possível congregar tantos autores e fazê-los soar com unidade. Sem pretender ensombrar a voz de Ana Moura com uma comparação injusta, evocando Amália. É fácil perceber porque possam surgir essas associações através daquele timbre “arranhado”, carregado de soul, como se a voz estivesse cansada de chorar a saudade. A fadista, em “Amor Afoito”, confessa: “O meu mal é ter verdade a mais”. Descontextualizando a sentença, esse é efectivamente o bem deste “Desfado” – nenhuma das correntes que são inseridas esteticamente no álbum são despropositadas ou soam a plástico, à procura do prémio world music. E depois Ana Moura também não tem apontamentos de egocentrismo, os seus apontamentos nunca procuram a exuberância ou o protagonismo. A conquista pretendida neste álbum não é o mercado, é a música e o fado. Há no entanto um pecado nesta suma musical. “A Case Of You” mostra a fadista sem a mesma espontaneidade que nos outros temas. Terá sido uma escolha íntima, mas não se ouve o âmago nesta versão, nem conforto com a dicção em inglês que se ouve nos outros dois enormes exemplos da fusão jazzy que foi procurada também com “Thank You” e “Dream Of Fire”. Com o jazz no meio, Ana Moura assume-se uma vez mais como um dos grandes nomes do tradicionalismo do fado em “A Fadista” e como uma sonhadora da pop em “Quando O Sol Espreitar De Novo”.
4 // The Firstborn – Lions Among Men
O crescimento que a banda vem denotando foi, ao mesmo tempo, afastando a sua sonoridade de algumas sombras do death e do black metal (bem presentes ainda, em momentos como “Vajra Eyes”). Progressivamente a banda tornou o seu som mais “roqueiro”, mais coeso e orgânico. O benefício é que essa coesão permitiu uma simplicidade ou um sentido de base musical mais directo, que permite acolher perfeitamente os arranjos e desenvoltura conceptual da sua fusão estética com o mundo oriental. Que não se leia que este “Lions Among Men” é um álbum de absorção simples, apenas que pode – caso o ouvinte opte por isso – ser ouvido de uma forma descomprometida. Aquela solidez “roqueira” do disco permite isso. Contudo, fazê-lo será desperdiçar uma experiência enriquecedora, uma banda sonora, que longe de ser um tratado, não deixa de ter uma enorme pertinência filosófica. E, como tantas vezes se repete, este é um tipo de discos que algures nos anos 70 perdeu a guerra contra a indústria. Assim, não prestar atenção à minúcia detalhada de arranjos que os The Firstborn nos oferecem, é abdicar de ouvir a música como algo maior. A progressão musical dos temas – solidez de baixo e crescimento das linhas de bateria que se desenvolvem para puxarem pelo clímax melódico final – é sustentada por mantras de repetição nas guitarras, cujas camadas conduzem a uma elevação cognitiva súbita sobre a peça em causa é um exercício que, somado no final, pode ser aplicado analogicamente ao próprio álbum. Ao longo de “Lions Among Men” os The Firstborn unificam as parcelas com a totalidade. Um sentido perfeitamente ilustrado pelo entrançamento das linhas de guitarra ao longo do disco. Negro. Denso. Melódico. Espiritual. Surpreendente. Autêntico. É uma pena que álbuns como este sejam, quase invariavelmente, ostracizados.
5 // Process Of Guilt – Fæmin
Por mais que as bandas o relativizem há sempre um risco no trabalho de pós produção feito à distância – a pessoa encarregue de o fazer, sem a pressão da banda, pode limitar-se a cumprir uma formalidade e retirar a alma aos temas que esteja impressa nas captações. “FÆMIN” é um exemplo de quando as coisas correm bem por dois motivos: dentro do género o trabalho de Andrew Schneider está a tornar-se seminal e seria difícil esvaziar de alma um álbum como este terceiro longa-duração dos alentejanos. “FÆMIN” é um monumento de peso colossal e com uma solidez de construção que não demonstra qualquer tipo de fissuras. Em comparação com os álbuns anteriores ganha sonoramente – quer em pressupostos técnicos quer estruturais – por um sentido mais cru, com menos processamento nas guitarras e um tamanho enorme no som de bateria. Certamente que aqueles que se fidelizaram com a banda devido a um sentido mais melódico poderão manifestar descontentamento com a estética deste álbum, mas não poderão anunciar-se surpresos, pois o álbum anterior já caminhava neste sentido. E no fundo, este é um álbum com composições e som muito mais fiéis ao que a banda mostrava ao vivo há um par de anos. Se “Renounce” e “Erosion” foram construções circulares, “FÆMIN” é o centro megalítico da carreira dos Process Of Guilt – um punho no rosto de deuses esquecidos.
6 // A Naifa – Não Se Deitam Comigo Corações Obedientes
Como é que se continua uma banda após a perda de um dos elementos fundadores, que é também a tónica-mor na composição? Reinventa-se, parece ser a resposta dada pela Naifa com este novo álbum, que é o quarto da banda, mas o primeiro sem João Aguardela. Os ingredientes mudaram, e como tal a receita também, pelo que este novo trabalho mostra-nos uma Naifa igualmente guerreira, mas menos aguerrida na sonoridade. Há menos surpresa nas músicas e talvez se tenha perdido alguma força de roupagem electrónica, que tão bem contrastava com os arranjos da guitarra de fado electrificada – a meu ver o que sempre foi um dos pontos diferenciadores do projecto. Mas continuam outros pontos fortes que são desde o início características intrínsecas e que hoje ganham ainda maior relevo. Desde logo as letras e a interpretação dada pela personalidade de uma voz distinta. Assim como os pequenos-grandes apontamentos que recuperam reminiscências da música e cultura popular portuguesa – um ressoar de percussão tradicional, o vibrar das cordas da guitarra pelas ruas do fado, e a força de uma palavra “proibida” que bem encaixada ascende a poesia. Esta é uma naifa renovada, redescoberta, que não tentou imitar o caminho trilhado – até porque as mentes não se clonam – mas antes continuar a percorrê-lo, com orgulho no passado mas com um novo presente, num percurso cuja descoberta não é imediata, requer um ouvir mais atento. Este álbum tem menos “canções-gordas”, não é à primeira que se fica a cantarolar um refrão. Como dizia Pessoa, permitam-me o cliché… primeiro estranha-se e depois entranha-se.
7 // Moonspell – Alpha Noir / Omega White
A opção pela dicotomia estética separada em dois LPs foi decisiva para a solidez de cada uma das faces do último trabalho dos Moonspell. As malhas mais pesadas são, efectivamente, mais pesadas e as que abraçam um sentido melódico e entram no universo gótico já não surgem algo desenquadradas nas amarras dum alinhamento. Em resumo este é um álbum mais focado que os seus antecessores. Cada ouvinte terá a sua própria preferência por uma das faces aqui representadas pela banda, ainda assim a metade “Alpha Noir” é a que melhor demonstra a capacidade que a banda foi adquirindo ao longo da sua carreira e que a tornou num dos colectivos mais capazes, no cenário mundial, em conseguir soar densa e ao mesmo tempo dinâmica. Este esforço duplo mostra os Moonspell no seu auge criativo e musical. Isto sem que a banda, durante todos estes anos, tivesse admitido compromissos estéticos e de identidade, como é perfeito exemplo um tema como “Em Nome Do Medo”. Uma banda conseguir o seu melhor álbum após 20 anos de carreira, não é algo comum e é revelador de uma qualidade que pautou os Moonspell desde o início da sua carreira: o compromisso sério com a sua música. O tamanho de produção deste álbum é assombroso.
8 // Pontos Negros – Soba Lobi
O mais fácil seria referir que a extraordinária qualidade sonora que trabalhar numa das salas de Abbey Road foi determinante neste trabalho. E isso é, evidentemente, um factor decisivo – dá gosto ouvir a riqueza harmónica deste disco. Mas os Pontos Negros mostram mais que serem um produto de produção. A riqueza dos arranjos instrumentais, com enfoque nas transições e interligações melódicas dos elementos de cordas e a sintetização e a gentileza vocal deste álbum são uma constante em toda a sua duração. E um álbum de rock ou pop rock será sempre julgado, em última análise, pela guitarra eléctrica. Sem exuberâncias técnicas, mas com enorme criatividade, as linhas dos dois guitarristas são um testemunho de trabalho bem desenvolvido e de bom gosto. Entre os tiques indie da cena internacional e os mais familiares de Jorge Palma, “Soba Lobi” é um trabalho que nunca será admitido como referência por ninguém, mas devia fazer parte de qualquer manual de boa conduta, nisto que é fazer música e discos.
9 // The Doups – Small Town Gossip
Já dizia o velho ditado: “quanto mais depressa, mais devagar”. Entenda-se portanto: “mais vale fazer devagar e bem, do que depressa e mal”. Dois anos passados do promissor EP “Six O’Clock Shadow”, eis que nos chega “Small Town Gossip”, o primeiro disco de longa-duração dos setubalenses The Doups. Se “Six O’Clock Shadow” já tinha colocado o quarteto de Setúbal na lista das jovens promessas da primeira liga do indie/pop rock feito em Portugal, “Small Town Gossip” garante o acesso directo à liga dos campeões onde actuam colossos internacionais do género que vai satisfazendo a procura da sociedade de consumo imediato. Homogéneo em conteúdo e equilibrado no alinhamento. Os The Doups apresentam um disco recheado de energia, vivacidade e descontracção. E se por um lado, quando escutamos pela primeira vez a voz de João Rodrigues na cativante “Just a Predicted”, encontramos umas quantas semelhanças com um Alex Turner [Arctic Monkeys] adulto, maduro e mais comedido. “Your Words” embala as guitarras, desperta os sintetizadores e recorda-nos quantas vezes fomos convidados à dança pelos Franz Ferdinand. Comparações à parte, as referências nunca foram demais. Uma entrada vibrante para um disco que apresenta como single “Joyful”, que é precisamente isso mesmo, alegre, melodioso e com um refrão “catchy” que teima em não sair da cabeça, enquanto a coesão musical se estende a verdadeiros hinos populares como “I Said”, músicas de uma vida como “These Days” e festividades por um dia como “You’re Hot”. Para qualquer dia, a qualquer hora. Para qualquer momento ou acontecimento. “Small Town Gossip” coloca-se claramente na linha da frente do indie/pop rock do novo milénio, registo de modernidade e musicalidade de marca Século XXI. Portugal tem talento e os The Doups são de qualidade certificada. Valeu a pena esperar!
10 // Salto
Não vou iniciar a redacção sobre o disco de estreia dos Salto com uma dissertação sobre o facto de já não haver novidades na música. Que se lixem essas balelas que pretendem fazer-nos crer que a interpretação não é por si só um reflexo criativo, ainda mais quando, como sucede neste álbum, é um veículo de imaginação musical, enriquecida por solidez musical, balanço e vários detalhes que vão estimulando a audição e refrescando o disco tema a tema. Reunir esses pressupostos tem um nome: atitude. Esta estreia está cheia de atitude, nas programações, beats, synths, guitarras e voz – e todos sabem o quão difícil é descobrir discos com atitude nas guitarras. O que quero dizer com atitude? Quero dizer que não há aqui qualquer timidez nos ataques em powerchords ou nas linhas melódicas, que o som vem para a frente da mistura, não necessariamente por truques de produção, mas pela prestação agressiva, pela “porrada” que as cordas estão a levar. Essa postura directa serve de catapulta dinâmica ao desenvolvido trabalho de sintetização, colorando as zonas rítmicas com força harmónica. Nada neste disco é pretensioso, “nem ouves rock n’ roll e sabe a pouco a tua simpatia” resolve de forma simples o problema da raridade de compromissos de longa duração. Dizer que isto é uma desculpa misógina é banha de cobra e bem barata. A juventude é muito curta para quadrados. Essa sensação está impressa duma ponta à outra deste disco. Esta estreia é a personificação do novo kitsch. Não é para nos colocar a reflectir, mas a saltar.