AUDIOGEST | Notas de Verão: A Música Ligeira Popular na Cultura Portuguesa
Em parceria com a Audiogest, Associação para a Gestão de Direitos de Produtores Fonográficos, a Arte Sonora publica uma série de artigos de opinião.
Com a chegada do verão, as aldeias e cidades de Portugal enchem-se de cor e música em celebração de uma série de festas populares. Este é o cenário ideal para refletir sobre a música popular portuguesa, especialmente ao qual muitos apelidam de “pimba”.
Estas celebrações, imortalizadas no filme “O Meu Querido Mês de Agosto”, destacam a importância da música “pimba” na vida cultural e social das comunidades portuguesas. O filme, realizado por Miguel Gomes, não só documenta as festividades de verão nas aldeias, como também explora as dinâmicas familiares e comunitárias em torno destas festas. A música “pimba”, com a sua presença constante e envolvente, torna-se um elemento central, refletindo o espírito festivo e a identidade coletiva dos participantes. As canções populares, cantadas por todos, desde jovens a idosos, funcionam como um elo de ligação entre gerações, simbolizando a continuidade das tradições e a celebração da vida comunitária.
Desde sempre, este género musical mantém uma relação ambígua com o público. Para muitos, é uma paixão culposa – músicas que todos conhecem, mas que poucos admitem abertamente gostar. Durante os Santos Populares e festas de verão, contudo, a música popular ligeira assume um lugar de destaque. Isso vai ao encontro dos dados recolhidos por um estudo de 2018 da Universidade Nova de Lisboa, que demonstrou que cerca de 65% dos portugueses reconhecem ouvir música dita “pimba” durante festividades locais.
Já os resultados de um inquérito de 2020, realizado pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, revelam que 78% dos inquiridos associam este género musical a momentos de confraternização e alegria. Este estudo, intitulado “Música Popular e Identidade Cultural em Portugal”, visou compreender as perceções e os valores atribuídos à música popular pelos portugueses. Os dados recolhidos indicam que esta desempenha um papel significativo na criação de um sentido de comunidade e coesão social, especialmente durante festividades e eventos sociais, promovendo um ambiente de partilha e celebração coletiva.
Nos últimos anos temos assistido a uma evolução notável deste género musical. A internet, particularmente as redes sociais, desempenharam um papel crucial nesta evolução, permitindo que muitos artistas ganhassem maior visibilidade. Plataformas como YouTube e Spotify têm sido vitais para a disseminação e popularização deste género. Dados de 2022 mostram que as playlists de música “pimba” no Spotify acumulam milhões de seguidores, com “Bacalhau à Portuguesa” de Quim Barreiros a atingir mais de 10 milhões de audições.
Tem-se também verificado uma incorporação crescente da música popular portuguesa por artistas provenientes de culturas pop e indie que, embora não sejam tradicionalmente classificados como “pimba”, bebem desta tradição como forma de enriquecer o seu repertório.
Pedro Mafama é um exemplo desta tendência, a que alguns chamam já de “pós-pimba”. Com uma abordagem que mistura fado, música eletrónica, influências africanas e ritmos tradicionais, Mafama tem conseguido atrair uma nova geração de ouvintes. O seu álbum “Estava no Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente” (2023) exemplifica esta fusão, explorando temas da vida urbana e rural, e reinventando a música popular para o século XXI. Pedro Mafama não apenas homenageia as tradições, mas também desafia as fronteiras musicais, criando um som que é simultaneamente novo e familiar. É relevante, aliás, assinalar, que foi ele, também em 2023, o autor da letra da Marcha de Alfama.
Um dos projetos mais inovadores e relevantes é o “Deixem o Pimba em Paz”, idealizado pelo humorista e ator Bruno Nogueira. Este espetáculo, que estreou em 2013, reinterpreta clássicos da música “pimba”, conferindo-lhes arranjos sofisticados e uma execução musical de alta qualidade. A ideia por trás do projeto é valorizar este género musical, retirando-lhe o estigma de música de menor qualidade, e apresentá-lo de uma forma que evidencie a sua riqueza melódica e lírica.
A valorização e legitimação tem-se sempre apresentado como um dos grandes desafios deste género musical. A música “pimba” ainda luta contra o estigma de ser considerada música de segunda categoria – preconceito que frequentemente decorre de uma visão elitista da cultura, que tende a valorizar formas artísticas mais complexas e a desdenhar expressões culturais mais acessíveis e populares. Estudos sociológicos apontam que este estigma está enraizado em divisões sociais e culturais que associam a música pimba a segmentos menos favorecidos da população.
Os Prémios Play, organizados pela Audiogest, deram, na edição de 2024, um passo importante na legitimação deste género musical, com a criação de uma nova categoria, a de Música Ligeira e Popular. Esta categoria representa um reconhecimento formal do valor cultural e artístico da música “pimba” e outros estilos de música popular portuguesa. A inclusão da Música Popular nos Prémios Play não só celebra a riqueza e diversidade do género, mas também desafia o estigma frequentemente associado, promovendo uma maior apreciação e respeito por essas formas de expressão cultural.
A recente e inesperada parceria entre Bárbara Tinoco e Rosinha na canção “Deixou-me a Mala no Comboio” demonstra uma possível mudança na perceção da Música Popular. Esta música, que rapidamente se transformou num hit, alcançou o terceiro lugar nas tendências de música no YouTube em Portugal e acumulou 253 mil visualizações em duas semanas. O sucesso imediato que alcançou demonstra não só que artistas pop podem aproximar-se de géneros mais populares sem correr o risco de se tornarem párias, promovendo uma maior integração e respeito pela música popular portuguesa, como também que existe espaço no mercado para projetos idênticos.
Aliás, não sendo a música “pimba”, de todo, consensual, a verdade é que ela desempenha um papel significativo no panorama das vendas fonográficas em Portugal.
Para além do impacto direto nas vendas, a música “pimba” é um motor vital para o setor cultural e de entretenimento em Portugal. A produção de álbuns, organização de concertos e festivais populares proporciona remuneração a uma vasta rede de profissionais, incluindo músicos, técnicos de som, produtores, agentes, e outros trabalhadores que dependem destes eventos. De acordo com um relatório de 2021 da Direção-Geral das Artes, o setor da música popular e tradicional (onde supostamente o género se insere), gera milhares de postos de trabalho e contribui significativamente para a economia nacional. Concertos de Música Popular são eventos de grande mobilização, atraindo turistas e residentes, dinamizando a economia local com o aumento do consumo em restaurantes e comércio local.
A música “pimba” é uma parte vibrante e indelével da cultura portuguesa. Durante os Santos Populares, essa música torna-se epicentro das celebrações, unindo pessoas em torno de uma herança comum. Embora enfrente desafios no futuro – a título de exemplo, a questão da inclusão e do preconceito –, são estes momentos que demonstram que este género continuará a ser essencial no panorama musical português.
Seja através das canções que conhecemos de cor ou dos novos hits, estas canções têm um lugar garantido no espírito dos portugueses – especialmente durante as festas populares.