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AUDIOGEST | Papo Reto: o hip hop ainda é o grito de resistência da periferia?

AUDIOGEST | Papo Reto: o hip hop ainda é o grito de resistência da periferia?

Artigo de Opinião

Em parceria com a Audiogest, Associação para a Gestão de Direitos de Produtores Fonográficos, a Arte Sonora publica uma série de artigos de opinião.

Desde o 25 de Abril de 1974, a música em Portugal tem desempenhado um papel crucial na formação da consciência social e política. Durante o período revolucionário, a Música de Intervenção foi uma ferramenta essencial na mobilização da sociedade, transmitindo mensagens de resistência e liberdade. As letras de músicos como Zeca Afonso, José Mário Branco ou, o recentemente falecido, Fausto Bordalo Dias, ricas em metáforas e simbolismo, serviam como formas de contornar a censura, levando o espírito revolucionário aos portugueses.

No ano em que continuamos a celebrar o 50.º aniversário da Revolução de Abril, que prometia trazer liberdade e justiça social, importa lembrar que as composições de muitas destas músicas se tornaram verdadeiros hinos que ainda hoje são ouvidos.

Com o passar do tempo, outros géneros ganharam destaque, e a Música Urbana, em particular o Rap, emergiu como uma das formas mais influentes de expressão cultural entre os jovens. Originado nos Estados Unidos, o Hip Hop (movimento cultural e artístico do qual o Rap faz parte) foi rapidamente adotado pelos jovens portugueses, que encontraram nele uma forma de expressar as suas frustrações, esperanças e vivências.

Com o florescer desta nova Cultura Urbana, grupos como Da Weasel, Dealema e artistas como Valete, Sam the Kid e Capicua tornaram-se vozes proeminentes, utilizando o Hip Hop como uma plataforma para abordar temas como desigualdade, racismo, pobreza e exclusão social.

Mas, voltando às suas origens, não é acidental que o Hip Hop surge, em Portugal, nas zonas periféricas de Lisboa e Porto, onde comunidades, muitas vezes formadas por descendentes de imigrantes africanos e de outras ex-colónias portuguesas, enfrentavam (e ainda enfrentam) desafios profundos como a pobreza, a discriminação racial e a exclusão social. Estes bairros, marcados por um acesso limitado a oportunidades educativas e económicas, tornaram-se terrenos férteis para o desenvolvimento de uma cultura que reflete a luta diária dos seus moradores. O Hip Hop nestes contextos surge como uma forma de resistência e expressão, permitindo que os jovens destas comunidades, que vivem esmagados pelo peso da grande urbe, canalizem as suas frustrações, esperanças e identidades através da música, utilizando-a tanto como veículo de denúncia social quanto como ferramenta de construção de uma identidade coletiva e de reivindicação de espaço numa sociedade que frequentemente os marginaliza.

O Hip Hop permite que os jovens destes bairros expressem as suas realidades de uma forma que é autêntica e, muitas vezes até, visceral. As letras falam diretamente das suas experiências com a violência, discriminação e as dificuldades da vida nas periferias, criando um espaço para a reflexão e o diálogo sobre questões sociais que muitas vezes são ignoradas pela maioria da sociedade. Através da música, os jovens encontram uma maneira de se conectar, de se afirmar e de lutar por reconhecimento e mudança.

Uma particularidade do Hip Hop em Portugal é a coexistência de rimas em português e em crioulo, refletindo a diversidade cultural do país. Mas esta dualidade linguística não é só um reflexo das influências culturais: é também uma manifestação de identidade e resistência.

Hip Hop em português vs. Rap crioulo: duas faces da mesma moeda

Uma particularidade do Hip Hop em Portugal é a coexistência de rimas em português e em crioulo, refletindo a diversidade cultural do país. Mas esta dualidade linguística não é só um reflexo das influências culturais: é também uma manifestação de identidade e resistência.

O Rap rimado em português tem uma maior acessibilidade ao público em geral, permitindo que as mensagens cheguem a uma audiência mais vasta. Este uso do português ajuda a conectar os temas discutidos no Hip Hop com uma narrativa nacional mais ampla, possibilitando que questões como a desigualdade social, a corrupção e a luta por direitos sejam entendidas e discutidas por um público mais abrangente. Valete ou Sam the Kid são dois exemplos de artistas que rimam, predominantemente, em português, tendo sido capazes de alcançar um público diversificado e utilizando as suas letras para discutir questões universais e outras específicas da realidade portuguesa.

Por outro lado, o Rap Crioulo, língua falada por muitas comunidades cabo-verdianas e guineenses em Portugal, carrega consigo uma carga cultural e identitária bastante forte. Rimar em crioulo é, para muitos artistas, uma forma de preservar e afirmar as suas raízes culturais, num contexto de marginalização e discriminação. O crioulo traz para a música uma autenticidade e uma proximidade que ressoam profundamente com as vivências dos jovens nas periferias. Além disso, as rimas em crioulo têm o poder de criar um sentido de pertença e solidariedade entre as comunidades que falam essa língua, tornando-se uma forma de resistência contra a assimilação cultural e a invisibilidade social.

Artistas como Chullage, Karlon ou Loreta são exemplos de rappers que utilizam o crioulo para expressar as suas realidades e as das suas comunidades, abordando temas como a imigração, a identidade e a luta contra a discriminação. A escolha do crioulo não é apenas uma preferência estilística, mas uma declaração política, que afirma a existência e a resistência das comunidades africanas em Portugal.

Se esse posicionamento fez com que, durante muito tempo, o Rap Crioulo habitasse apenas o espaço físico das periferias, sendo marginalizado pela cultura musical dominante (e visto como marginal), a verdade é que, nos últimos anos – e muito devido à proliferação de videoclipes no YouTube – ele é já muito mais ouvido para lá dos limites do “bairro”.

Mas o Hip Hop tem sido sempre usado enquanto ferramenta de inclusão social. Um exemplo notável disso é o projeto Kova M Estúdio, nascido pelas mãos da Associação Moinho da Juventude, no bairro da Cova da Moura, Amadora. Este projeto pretende chegar às aspirações dos jovens do bairro, através de formação e divulgação musical, oferecendo-lhes oportunidades para se expressarem através da música. Trata-se de uma estrutura que é disponibilizada aos seus utilizadores para que estes possam desenvolver as suas capacidades musicais e artísticas, mas também de gestão de carreira, de forma que possam ingressar no mercado.

Este tipo de iniciativas demonstra como o Hip Hop é muito mais do que uma forma de entretenimento, podendo ser um meio poderoso de transformação social, oferecendo alternativas positivas num contexto muitas vezes marcado pela exclusão e pela falta de oportunidades.

O Rap também se rima no feminino

O Hip Hop português no feminino também tem vindo a ganhar destaque, desafiando estereótipos de género e reivindicando espaço num género musical que, historicamente, tem sido dominado por vozes masculinas.

Artistas como Capicua, Eva RapDiva e Mynda Guevara (esta última da Cova da Moura) são exemplos de mulheres que têm utilizado o Hip Hop para expressar as suas perspetivas e experiências únicas, abordando temas como o feminismo, a igualdade de género, a discriminação racial, bem como as suas vivências nas periferias. As narrativas destas rappers são poderosas, já que inspiram outras mulheres a seguir o mesmo caminho, mostrando que o Hip Hop pode ser um espaço inclusivo e diverso, onde as vozes femininas têm tanto valor quanto as masculinas. Ao trazerem para a música questões de género e identidade, estas artistas estão a ampliar os horizontes da Música Urbana, tornando-a mais representativa e plural.

A Continuidade da Luta através da Música

O Hip Hop em Portugal, seja rimado em português ou em crioulo, continua a tradição de resistência cultural iniciada pela Música de Intervenção de Abril (mesmo antes de Abril). Hoje, não só dá voz a uma nova geração que enfrenta os desafios do nosso tempo, mas serve também como plataforma para a inclusão social e o empoderamento de comunidades marginalizadas.

Para além do Hip Hop, outras formas de Música Urbana que têm na sua génese preocupações de cariz político e social têm florescido em Portugal na última década. O Trap, caracterizado por batidas pesadas e letras que abordam tanto a ostentação como as dificuldades da vida urbana; o Afrobeat e a Kizomba, com fortes raízes nas comunidades africanas residentes em Portugal, têm-se afirmado como expressões culturais significativas, trazendo ritmos e sonoridades que evocam as suas origens enquanto dialogam com o contexto urbano português. Estes géneros, bem como outros, funcionam como veículos de identidade e resistência, permitindo que diferentes comunidades expressem as suas histórias e experiências num espaço musical em constante evolução.

Olhando para os tops digitais ou para os nomeados e vencedores dos Prémios Play, não é difícil perceber que o Hip Hop conquistou lugar entre os géneros preferidos do público português. Resta agora saber se, à medida que o interesse pela Música Urbana cresce muito para além da cultura e público de “nicho”, esta será capaz de manter a sua matriz de resistência e denúncia social.