Quantcast
Festival F: O Festival da Festa da Família em Faro [Vídeo + Fotos]

Festival F: O Festival da Festa da Família em Faro [Vídeo + Fotos]

Dewis Caldas
Dewis Caldas

O Festival F realizou-se entre os dias 7 a 9 de Setembro de 2023 em Faro. A Arte Sonora esteve lá pelas palavras e lente do documentarista, jornalista e músico brasileiro, Dewis Caldas.

Três noites se esquivando na multidão pelas ruas da baixa histórica de Faro, entre os sessenta concertos divididos em nove palcos e muito mais. Este é um pedaço da minha história em busca da música feita em Portugal naquele que é considerado o último festival de verão.

Ao fundo, bem longe, mas bem alto, ainda escuto aquela voz densa, complexa e lendária de Pedro Abrunhosa. Era aquele momento com os dois pés no alto do refrão, «Vou dar o salto, eu sou o rei do Bairro Alto». E na hora perguntei para um senhor que sorria vendo o concerto: «Qual bairro alto, o de Lisboa?», ele riu, «O do Porto, pá, ele é do Norte». Então acenei com aquele sorriso como quem diz, «ei, tenho desculpa, sou brasileiro.» Quanto mais distante fico da voz, uma nova sonoridade ecoa, vou seguindo esse outro som e chego na festa armada de José Pinhal, que com sua “pimbalhada” de homenagem mostra talvez o lado menos sério da música neste país.

Escrevo ”pimbalhada” porque ouvi a expressão no meio do público, na verdade nem sei se o termo é bom de se dizer, é que por vezes ainda me atrapalho com as nuances entre o português do Brasil e o português de cá, mesmo depois de anos em terras portuguesas. E assim, deste modo, entre fotografias e alguns vídeos, percorri os três dias de festival e escrevo agora algumas impressões do que consegui perceber – com minhas referências de quem não cresceu neste país, sobre a envergadura da música feita em Portugal, que é uma das grandes bandeiras do próprio festival.

Ter chegado de surpresa neste concerto do José Pinhal Post – Mortem Experience é uma das oportunidades de realmente entender os aspectos profundos da música em Portugal. Vou confessar que não sabia que aquele era um projeto tributo e aconteceu comigo algo fantástico, que foi assistir ao espetáculo achando que era mesmo José Pinhal (1952-1993). E foi espantoso conhecer José Pinhal por ele próprio, acho que a única pessoa do público que não sabia que não era o cantor de Santa Cruz do Bispo, era eu.




Até percebi que era um espetáculo dedicado aos anos 80, que misturava aqueles timbres, aquele jeito de ser, aquele deboche sério, ou que fosse uma homenagem à época de ouro do pimba, depois descobri que era mais do que isso. Ao chegar em casa fui pesquisar que era um projeto tributo e de facto, pela primeira vez, vi o verdadeiro José Pinhal, fiquei absolutamente entusiasmado por esta ideia que é realmente post-mortem de um dos grandes e curiosos nomes da música nacional. Essa minha real experiência post-mortem é a absoluta prova de que o espetáculo funciona para quem conhece e para quem não conhece a obra do fenómeno que morreu prematuramente num acidente aéreo.

 

Esta estética, portuguesa e profunda, se mistura com o outro lado da aldeia, a da música do campo, do povo, que é toda a inspiração da música da Criatura. Há algo de revolucionário que vem do campo, da beleza da paisagem, dos costumes, dos timbres, dos tons e dos intervalos tradicionais. Talvez o primeiro impacto que senti ao chegar em Portugal foi entender que a música tradicional e folclórica estava fora não só do mercado musical, mas da cultura pop, sentimento esse que foi mudando ao longo do tempo e me lembro de ter tido essa percepção quando surgiu, lá por 2015, o bando da Criatura.

Nestes anos a fio, após dois álbuns, o projeto já se firmou como um pilar desta reconstrução modal e estética da música feita aqui. É um espetáculo para se contemplar, para se sentir o vento dos campos, ao mesmo tempo que se confronta com as questões sociais e pessoais que habitam pelas nossas mentes. O equilíbrio, vamos dizer assim, gestacional, entre Edgar Valente e Gil Dionísio, é uma das coisas raras que presenciamos, é como se juntos fossem o sim e o não, a cor e a não cor, o mar e o vento, aquela completude que está a serviço de uma ideia além da música. Vê-los no palco por si só já é uma representação do que a música tradicional pode ser, sempre moderna, sempre rural.

 

Estas questões, conceitos e limites da música portuguesa são também um dos motivos do festival existir. «Ainda se discute o que é fado e até onde o fado vai, mas fado é tudo o que acontece entre pessoas reunidas numa mesa», disse Ricardo Ribeiro, o fadista que se apresentou na última noite do festival, mas que antes, durante a tarde, participou da tertúlia musical, nos Claustros da Sé junto com Noiserv e o moderador Rui Miguel Abreu, sob o título “Vamos Falar Sobre Música”. Neste encontro, aberto ao público, discutia-se os muitos aspectos da música feita por cá, estabelecendo assim um paralelo com a programação do festival que entre raps, rocks e fados, tenta mostrar os muitos aspectos da música feita hoje. Nos dias anteriores artistas como Da Chick, Mimicat, Perigo Público e Tó Trips também participaram.

Falando em Tó Trips, este é outro emblema de Portugal. Há algo de magnetismo em sua postura, sua forma de ampliar os temas na guitarra elétrica, a postura absolutamente rocker. Estava eu feliz em o fotografar novamente, a primeira foi na Festa do Avante durante a pandemia. Outra banda que escutei muito antes de vir para cá, são os Dead Combo, lembro como se fosse hoje ter-me impressionado com o “Volume 1”, o disco de estreia lançado em 2004, e sempre tive a grande vontade de os fotografar. No backstage encontrei-me com Tó Trips, apresentei-me e mostrei a fotografia que fiz dele próprio dois anos antes, ele reconheceu, pois havia postado a fotografia nas suas redes sociais e disse, «então hoje vais fazer novas chapas». Confesso que ainda não associo fotografia com a palavra “chapa”, mas entendi bem, foi tipo um momento de fã.

Este som rock, com mistura clássica, com sabor português, é uma combinação perfeita de um dos projetos mais estimados que tenho notícia, simplesmente não existe ninguém que não ache no mínimo extraordinário. Tanto em estética, em sonoridade, postura e razão de existir. Infelizmente, o projeto teve que acabar, mas acho que para sempre estará, assim como MadreDeus ou António Variações, como um dos emblemas mais importantes da música lusófona. Uma sonoridade única, com aquele sabor que o fado dá, entre Carlos Paredes e os faroestes italianos, e muita guitarra bem timbrada.

 

Emoção também tive no concerto do Pedro do Vale. Tentei ao máximo separar a nossa relação pessoal, mas confesso que não consegui. O Pedro, além de ser uma das grandes vozes que surgiram no espaço da música portuguesa, é também meu amigo, e foi por causa dele que hoje moro em Faro. Tudo aconteceu há dois anos, quando vim com ele tocar em Faro, no Conservatório Regional, eu sendo um dos seus guitarristas. Pois o que aconteceu foi que depois do concerto conheci minha mulher, a Maria, e agora na semana do festival comemoramos o primeiro ano do nosso filho, Heleno.

Então, o amigo leitor já percebeu como estive, em primeiro lugar com grande orgulho de ver seu espetáculo completo, com muitas emoções na plateia, cercada de amigos e parentes, e todos nós. Para mim foi uma catarse de encantamento Pedro começar o concerto com “A Idade do Céu”, e ainda nos brindar com “O Mundo é um Moinho”, duas canções do cancioneiro brasileiro que ganharam novos contornos em sua voz. Pedro do Vale é uma das raras vozes que surgem de tempos em tempos e há nele um percurso traçado que frutificará com uma enorme contribuição para a música nacional.

 

Outra impressão que sempre tive desde que cheguei aqui é desta cor e tons da lusofonia, principalmente daquela produzida nas grandes cidades do país, onde o encontro de várias nações falantes em português se encontram. Para quem nasceu no Brasil não temos nem um pouco a dimensão do que é esta sonoridade que junta as nações em língua portuguesa. Há tantos artistas que levam esse caldeirão europeu africano sul-americano a todo volume, criando assim um “aspecto”, uma “forma de ser” da cultura produzida a partir destes encontros. Uma das bandas que representam este sabor é o Fogo Fogo que juntou todos os ritmos e géneros desta fusão num único espetáculo.

Só em não deixar ninguém ficar parado já é por si só um espetáculo à parte, mas a qualidade dos músicos também dá este componente de contemplação, uma aula para instrumentistas que adoram os ritmos dançantes. Os Fogo Fogo, que inclusive é um nome sensacional, já é uma banda conhecida e firmada como uma das pontes lusófonas que eclodem a todo tempo em Lisboa, a saber, na região do Intendente. Momentos depois do concerto, lá atrás das cortinas, perguntei para o baterista Edu Mundo, quantos quilos perdia por apresentação. “Depende muito de como me preparei antes, mas perco de um a três quilos. Certa vez terminei um concerto doente, de tanto esforço, e se eu não me preparar para esse momento simplesmente não funciona, tenho de estar presente, intenso, eu todo“. É mesmo intenso.

 

O espaço do Festival, que é a baixa da cidade, faz com que o público se sinta como numa festival-cidade, com ruas, paragens, restaurantes e uma infinidade de ofertas aos que estão no recinto. Quando saí do concerto do Valter Lobo vi uma senhora com um papelzinho com uma lista de locais e horários dos artistas que queria ver naquela noite. Acho que isso representa o que é o Festival F – um caminho que cada pessoa faz sozinho por dentro da programação proposta. Há quem queira ver os artistas rock, há quem prefira o eletrónico, também há os que querem os rappers e ainda uma lista só dos super famosos da edição.

E ainda há quem fique apenas surpreso com aquilo que nunca viu, o exemplo mesmo em mim foi o do próprio Valter Lobo, que defendeu suas canções e ideias com a cara e uma guitarra de som forte.

 

Quem viu, viu uma força, uma voz que se expande entre canções da própria vida e de todos nós. «Obrigado a todos que vieram e não estiveram no concerto da Mariza», brincou. A fadista Mariza, no mesmo momento, no palco Ria, fazia o seu concerto. Uma das maiores dualidades que vi foi protagonizada por duas grandes personagens da música lusófona, de um lado o fado reconhecido de Mariza, que mencionei agora pouco, e o super pop de Bárbara Tinoco.

Bárbara que traz esse universo do pop-rapzado que hoje se tem muitas notícias, uma estética trap com os verdadeiros refrões pop que estamos acostumados. Fiquei impressionado com o poder da sua banda, que levanta a força desta artista que está criando seus parâmetros.

 

O outro contraponto, a Mariza, já não aposta tanto na banda, na maquiagem, mas na sua voz, por si só, como o fado o é, é o espetáculo em sua essência. Nascida em Moçambique, Mariza é um dos símbolos da música portuguesa ao redor do mundo.


Mariza
e Pedro Abrunhosa, foram um dos poucos artistas portugueses que sempre tive vontade de ver, desde há muito tempo, quando ainda nem imaginava que um dia moraria por estas terras. Assistir ambos foi também uma realização pra mim. Foi mesmo um caldeirão, artistas de todo o país, muitas interfaces, muitas estéticas, muito sabor português nestes sons e intervalos que poderia falar sobre isso mais dez páginas, mas não posso.

 

Como última impressão do festival, gostaria de falar sobre o maior ponto do festival: as famílias. Sim, o Festival F pode ser F de Faro, ou de Festa, de Farra, de ria Formosa ou simplesmente, de Famílias.

As famílias, sim, elas lotam o festival. Talvez esse seja o diferente dos outros festivais de verão porque o Festival F não é só um festival de verão, é na verdade o orgulho da cidade, o evento esperado por toda gente da região, do barlavento ao sotavento, de uma ponta a outra do Algarve. É mais que isso, é habitar por entre as vielas históricas de uma das regiões mais lindas e dinâmicas do país, que a cada ano se transforma numa revolução cultural que logo será percebida por todo o país. A edição do ano que vem já está confirmada e segundo a organização, a Câmara Municipal de Faro, o Teatro Municipal de Faro, a Ambifaro e a produtora Sons em Trânsito, todas as expectativas foram superadas com cerca de 40 mil pessoas visitando os três dias de festival. Foi uma grande festa!