Rick Allen: Baterias Eletrónicas Simmons, “Hysteria” & um dos maiores regressos da história da música
Em jeito de antevisão ao concerto dos Def Leppard com os Mötley Crüe no Passeio Marítimo de Algés, recordamos o episódio trágico, mas inspirador, que definiu a vida e carreira de Rick Allen e fazemos uma análise da parceria e do equipamento que despontou um dos maiores regressos da história da música.
Estávamos a 31 de Dezembro de 1984, os Def Leppard tinham terminado há sensivelmente onze meses uma extensa tour de promoção ao dez vezes platina “Pyromania”, que viu a banda passar de concertos em clubes e teatros para arenas e estádios. A banda estava assim a viver o sonho de qualquer aspirante a rockstar, algo que se refletia na aquisição de grandes mansões e de carros desportivos. Rick Allen, o baterista, era o caçula do grupo, entrou na banda com apenas 15 anos, e celebrou o seu 16º aniversário a abrir para os AC/DC na mítica Hammersmith Odeon, em Londres – conseguem imaginar melhor forma de celebrar o vosso sweet sixteen? Com apenas 21 anos, Rick Allen já vivia, de forma algo ingénua, os deslumbramentos de um músico de renome internacional que faz tours mundiais e que toca para salas com dezenas de milhares de pessoas. Deslumbramentos esses que se refletiram na aquisição de um potente Corvette C4, um carro de sonho para qualquer amante de velocidade nos anos 80. Contudo, para conduzir carros destes é preciso ter unhas e Allen não as teve quando, no último dia do ano, ao tentar ultrapassar um carro nas estradas sinuosas da zona rural de Sheffield se despistou e capotou várias vezes. O cinto de segurança prendeu o braço esquerdo de Rick e arrancou-o do seu corpo enquanto era projetado para fora do carro. O sentimento imediato de Allen foi de choque, afinal de contas como é que iria voltar a tocar bateria sem um braço?
Passaram-se várias cirurgias, primeiro com os médicos a recolocar o braço em Rick e depois a retirar novamente para evitar uma infeção que lhe pudesse custar outras partes do corpo. Seguiram-se meses de recuperação e durante este período nenhum membro dos Def Leppard exerceu qualquer tipo de pressão para retomar a banda ou substituir Rick, pois todos defendiam que cabia apenas ao baterista tomar essa decisão. Porém, durante os tempos em que esteve em recuperação no hospital e em casa, Allen nunca se conformou e começou logo a congeminar ideias para voltar a tocar bateria. Rapidamente percebeu que muitas das coisas que tocava com o braço esquerdo podiam ser agora replicadas com o direito e com o dois pés, sendo que apenas tinha que arranjar uma bateria que lhe permitisse executar essa sua visão.
A solução passou então por desenvolver uma bateria eletrónica com pedais e pads com a tecnologia de triggers, que, aliados a um sampler permitiriam gerar sons pré programados. Foram várias as hipóteses que Rick estudou para desenvolver a sua ideia, mas esta só foi possível com o auxilio de uma empresa que já se encontrava na altura na vanguarda dessa tecnologia. Falamos da Simmons.
A Simmons Drum Company surge em 1978 pelas mãos de Dave Simmons. Enquanto Simmons trabalhava com sintetizadores da empresa americana ARP Instruments apercebeu-se que não existia naquele momento nenhum nicho de mercado que explorasse as “baterias sintetizadas” tendo decidido então começar a desenvolver os seus próprios modelos. O primeiro modelo, o Simmons SDS-3, surge no final dos anos 70 enquanto ainda colaborava na empresa Musicaid. O SDS-3 é o primeiro modelo de sintetizador de bateria analógica a ser produzido em massa. Com um design e uma configuração tipo drum machine apresenta um total de 4 canais para sons e mais 1 para efeitos. Para cada canal de sons é possível configurar o ataque (impact click), o decaimento (decay time), o bend (bend level), a altura (pitch), o timbre (tone), a sensibilidade do microfone (mic. sensitivity) e ainda a gama de efeitos (effect range), já para o canal de efeitos é possível regular a velocidade da frequência baixa de oscilação (LFO Speed), a altura (overall pitch) e também a duração (run time).
De forma a chegar a todo o tipo de consumidor, foi também lançada uma versão mais acessível, desta vez só com dois canais que foi apelidada de SDS-4 . Rapidamente os SDS (Simmons Drums Synthesizer) começaram a ter sucesso e a despontar curiosidade no meio da comunidade de bateristas, no entanto tanto o SDS-3 como o SDS-4 ainda necessitavam para a modulação sonora de uma bateria acústica, o que levou Dave Simmons a desenvolver o seu primeiro modelo que fosse compatível com um eletronic drum set completo. O SDS-5 chegou ao mercado em 1981. Desenhado em parceria com o baterista Richard Burgess, o modelo SDS-5 apresentava como principal característica os seus pads hexagonais produzidos em policarbonato, permitindo uma disposição semelhante à configuração de uma bateria acústica, sendo também possível adicionar mais pads, nomeadamente pads que simulassem os pratos e ainda um pedal de hi-hat. No mercado o SDS-5 apresentava um formato standard que dispunha de cinco pads equiparados a um bombo, uma tarola e três timbalões. Para cada módulo era possível configurar os presets, um pouco à semelhança dos modelos SDS-3 e SDS-4, com configurações para a altura do ruido (noise pitch), a altura do timbre (tone pitch), o bend (bend), o decaimento (decay), o equilíbrio entre ruido e timbre (noise-tone balance) e o equilibro entre o ataque e o timbre (click-tone balance).
Em 1983 a Simmons apresentou o modelo SDS-7, o primeiro a permitir um armazenamento externo de presets. Esse armazenamento era realizado através do sistema EPROM (Erasable Progammable Read-Only Memory) e permitia ao baterista gravar sons pré-definidos em disquetes EPROM. Apesar da sua capacidade reduzida (cada disquete só ocupava um canal de um determinado módulo) este sistema veio facilitar o trabalho dos músicos no contexto da performance ao vivo. A vantagem do EPROM prendia-se com o facto de permitir ao baterista tocar diferentes sons de bateria em qualquer pad, independentemente da função que possa estar “pré-definida”, e é graças a esta inovação tecnológica que Rick Allen conseguiu renovar a sua carreira enquanto baterista.
Os anos 80 viram também o desenvolvimento da conexão MIDI (Musical Instrument Digital Interface), que veio rivalizar um pouco com o sistema de armazenamento EPROM, pois o MIDI permitia armazenar ficheiros que ocupavam menos memória. Para não perder “terreno” a Simmons desenvolveu em 1985 o modelo SDS-9 com uma entrada MIDI “thru” que permitia ao baterista enviar e receber sinais digitais a partir de qualquer fonte digital. Em 1986 a Simmons apresenta o modelo MTM , com uma interface de oito canais que possibilitava a conversão de sinais de áudio em dados MIDI e consequentemente de MIDI em trigger outputs. Este modelo tornou-se especialmente importante para aqueles que já tinham o SDS-5 ou o SDS-7 cujos modelos não apresentavam a conexão MIDI. Com o MTM os sons, tanto do SDS-5 como do SDS-7, podiam ser acionados através de qualquer dispositivo MIDI, como por exemplo um teclado. Até ao fim dos anos 80 a Simmons continuou a introduzir novos modelos atualizados, no entanto com cada vez menos impacto pois começavam a surgir outras empresas que procuravam também o seu protagonismo na área como foi o caso da Yamaha e da Roland.
Monsters of Rock 1986, Castle Donnington (Fotografia de Ross Halfin)
Em 1985, alguns meses após ter sofrido o acidente que lhe custou o braço esquerdo, Rick Allen começou a desenhar uma bateria que fosse ao encontro das suas necessidades físicas, mas que lhe permitisse também tocar todo o material dos três álbuns que já tinha gravado com os Def Leppard.
A solução mais viável foi desenvolver uma bateria eletrónica compacta assente em vários pads e pedais que lhe permitissem reproduzir não só com a mão direita, mas também com o pé esquerdo aquilo que ele fazia com a mão esquerda. O setup de bateria que Rick Allen utilizou para gravar o álbum “Hysteria” (1987) e na tour que se seguiu de promoção ao disco tinha como base seis pads associados a um Simmons SDS-9 (dois bombos, sendo que um deles era ativado pelo pedal e outro através da baqueta, uma tarola e três timbalões), quatro pedais eletrónicos da empresa Shark, dois que lhe permitiam emular (trigger) o som de duas tarolas, uma delas com efeitos, e os outros dois com a função dos timbalões 2 e 3 (ver imagem em baixo). Em termos de pratos, Rick Allen optou por manter os pratos acústicos da Zildjian, empresa com a qual tinha parceria. O seu setup contava então com um EFX-1, dois K Brilliant Dark Crash, um Z Heavy Power Ride, dois K Brilliant Crash/Ride, um Z-Dyno-Beat Hi-hats e um Brilliant China Soy Low. A disposição dos pratos mais à direita foi pensada para facilitar o trabalho e desempenho de Rick Allen.
Esquema do kit de bateria de Rick Allen (Modern Drummer, 1988)
Em termos de processamento dos pads e dos pedais, o sinal era enviado através de uma interface MIDI Simmons MTM que por sua vez estava ligada a um sampler AKAI S900 onde os sons eram gerados. O AKAI S900 surgiu em 1986, como o primeiro sampler profissional da marca e permitia “samplear” sons em 12-bit stereo, com uma taxa de variação entre 7.5kHz e 40kHz e um máximo de 63 segundos por cada sample a 7.5kHz. No que toca à capacidade de armazenamento o S900 permitia criar e guardar até 32 samples. No que diz respeito à sensibilidade e dinâmicas, tanto os pads como os pedais foram desenhados para responder da forma mais eficaz à intensidade do ataque do baterista, no caso dos pedais Shark o seu funcionamento e mecânica era bastante simples, ao pressionar o pedal existia um mecanismo que avançava e empurrava uma espécie de parafuso que ao tocar num cristal permitia a ativação da corrente elétrica, consoante a intensidade com que Rick tocava o pedal era determinada a força da corrente elétrica que era enviada para o MTM, convertendo assim o sinal elétrico em MIDI, seguindo depois em MIDI até ao sampler que gerava o som programado.
Rick Allen usou as baterias da Simmons mais ou menos até 92, altura em que começou a tocar com baterias DW, uma das empresas que combinava nos seus instrumentos tambores acústicos com pads eletrónicos.
Rick Allen acabaria por voltar a juntar-se aos Def Leppard ainda em 1985, para continuar com as sessões de composição e de gravação do que viria a ser “Hysteria”, o álbum que definiu a carreira da banda ao gerar sete singles , “Animal”, “Women”, “Pour Some Sugar On Me”, ” Hysteria”, “Armageddon It”, “Love Bites” e “Rocket” e que se tornou um dos mais vendidos da história da música ao alcançar a certificação da RIAA de doze vezes disco de platina.
O tão esperado regresso de Rick Allen aos palcos acabaria por acontecer a 5 de Agosto de 1986, com uma mini tour de seis datas por vários clubes na Irlanda. Ainda assim, nestes concertos os Def Leppard contrataram o baterista Jeff Rich para tocar em conjunto com Allen. Por força do destino, numa das datas Rich atrasou-se e Allen tomou conta da situação de forma completamente autónoma. Após esse concerto os Def Leppard perceberam que Rick não precisava mais de qualquer ajuda de terceiros. Ainda assim, foi só no festival Monsters of Rock em Castle Donnington a 16 de Agosto que Rick Allen teve a aclamação merecida. Inicialmente o vocalista Joe Elliot não tinha intenções de anunciar Rick, mas o momento era demasiado importante para Allen não ser apresentado. Elliot assim o fez e quando anunciou o nome do baterista rapidamente se levantou um bruar que arrepiou e emocionou todos os presentes. O “The Thunder God” estava finalmente de volta e protagonizava assim um dos maiores regressos da história da música.
Recordamos que Rick Allen vai estar com os seus Def Leppard em Portugal, juntamente com os Mötley Crüe, para um concerto no dia 23 de junho no Passeio Marítimo de Algés.