MEO Kalorama 2024 | Ana Lua Caiano & Ana Moura: Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Sonoridades
Num cartaz com uma grande aposta em artistas femininas, Ana Lua Caiano e Ana Moura subiram ao Palco MEO do Kalorama 2024 para demonstrarem que o tradicionalismo e os neologismos musicais podem coexistir de forma harmoniosa.
Na língua portuguesa a palavra tradicional apresenta-se como um dos conceitos mais fortes que temos. Muitas vezes associada a algo quase sagrado, o termo costuma ser empregue na descrição de algo com uma identidade bem vincada e com regras formais já estabelecidas há décadas, ou até mesmo séculos. No caso da música esse conceito pode ser aplicado a géneros tão diversos como o cante alentejano, o fado e a música tradicional portuguesa. Para muitos, estes géneros definem a identidade cultural de Portugal não só a nível interno, mas também no panorama internacional, basta por exemplo relembrarmo-nos que tanto o cante como o fado são reconhecidos pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Desta forma, não é de estranhar que para grande parte dos puristas culturais estes géneros se apresentem como muito pouco permeáveis à inovação. Ainda assim, existem vários músicos que não se deixam levar por esta rigidez de pensamento e com horizontes mais abertos procuram expressar a sua criatividade através da quebra das barreiras de géneros musicais. Aqui não se trata de faltar ao respeito à tradição, mas sim mostrar todo o seu potencial e valor quando combinado com novas sonoridades, instrumentações e arranjos mais arrojados.
Ciente das transformações que estão a ocorrer na música portuguesa, o MEO Kalorama 2024 decidiu então dar espaço no Palco MEO para a apresentação de duas das artistas que mais têm contribuído para essa tal quebra dos “tabus musicais”. Falamos de Ana Lua Caiano e de Ana Moura.
Ana Lua Caiano subiu ao palco principal do MEO Kalorama 2024 no primeiro dia para dar ao público um cheirinho da sua folktronica. Com dois trabalhos editados, o EP “Cheguei Tarde a Ontem” (2022) e o álbum “Se Dançar É Só Depois” (2023), Caiano apresentou o seu one woman show totalmente assente em composições criadas com recurso a uma loop station e melodias vocais de cariz tradicional. “Que o sangue circule” foi a música escolhida para abrir a atuação. Segundo Ana Lua o tema aborda a vontade de viver, algo que a artista demonstra particularmente em palco quando está no processo de criação de todas as camadas sonoras que compõem os seus instrumentais.
Seguiu-se “Se dançar é só depois” e uma pequena explicação de tudo o que se estava a passar em palco. À semelhança daquilo que já tínhamos assistido no concerto de Ed Sheeran no Rock in Rio 2024, também Ana Lua Caiano procurou tirar um momento para explicar e demonstrar o funcionamento da sua loop station que, além de produzir beats, cria também loops com os padrões rítmicos que a artista elabora com recurso a instrumentos tradicionais portugueses como é o caso do bombo e do adufe.
Para esclarecer melhor o público, Caiano iniciou uma demonstração antes do tema “Deixem o morto morrer”. Primeiro gerou um beat, depois adicionou um ritmo no bombo, seguiu-se o adufe, algumas vocalizações, palmas e uma linha de sintetizador. Em “Vou ficar neste quadrado” chegou-se à frente do palco para captar um loop dos seus sapatos a baterem no solo. Já “Adormeço sem dizer para onde vou” e “O bicho anda por aí” mantiveram o público cativado e deliciado com a criatividade de Ana Lua Caiano.
Os cerca de 50 minutos de atuação passaram num ápice e para o fim ficou reservado o tema “Mão na mão” onde em mais uma demonstração da seu respeito e consideração pela música tradicional recorreu ao brinquinho, instrumento típico da madeira, para criar uma nova camada instrumental.
Perante um público repleto também de estrangeiros, Ana Lua Caiano foi ovacionada com muito fervor. A artista portuguesa saiu assim de palco com o sentimento de missão cumprida e com a sensação de que o seu folktronica conseguiu cativar novos ouvintes.
Já no terceiro dia do MEO Kalorama 2024 foi a vez de Ana Moura subir ao Palco MEO para apresentar o seu trabalho “Casa Guilherma” (2022), um álbum que rompe com todos os cânones do tradicionalismo. Cansada das amarras impostas pela indústria, Ana Moura decidiu romper com as suas parcerias para embarcar numa descoberta de uma nova identidade musical mais próxima das suas raízes africanas. Com a colaboração do músico Conan Osiris e dos produtores Pedro da Linha e Pedro Mafama, Ana aproximou-se de sonoridades mais quentes como o semba, kizomba e funaná e começou a trabalhar em composições que misturassem os ritmos africanos com uma interpretação vocal que invocasse, ainda que rebuscadamente, o fado. O resultado foi um álbum extremamente dançável, mas ao mesmo tempo profundo, que ajudou a levar Ana Moura dos concertos em auditórios com lugares sentados para salas onde o público está de pé e com espaço para se poder mover de forma livre e despreocupada.
Em tempos seria impensável ver Ana Moura no palco principal de um grande festival de verão, talvez sim no Fado Café do Alive, mas o que é certo é que este “Casa Guilhermina” parece estar mesmo desenhado para grandes palcos e multidões. Ana sabe bem o poder que um beat tem em todos aqueles que nunca recusam um bom movimento de ancas e construiu assim uma setlist bem encadeada num espetáculo que aproxima agora mais de uma produção pop, com várias coreografias e projeções, do que propriamente de um serão de fados.
Foi com “La vai ela” que deu início à sua atuação ainda com muito público a descer a colina do Parque da Bela Vista em direção ao Palco MEO. O uso de algumas camadas de auto-tune para alterar a sua voz mostrou que Ana está mesmo numa nova fase de experimentação. Sem ligar ao escrutínio, a artista apresenta uma total confiança em adotar estas novas ferramentas que são muitas vezes descredibilizadas entre os tais puristas, ainda mais no meio do fado, onde Ana se encontra atualmente completamente à margem.
Seguiu-se o êxito “Andorinhas”. O tema que iniciou esta jornada de reinvenção artística foi cantado e bailado por grande parte do público. A sua letra expõe uma ideia de superação e de libertação, algo que Ana Moura experienciou neste processo de transição estilística. Depois veio “Calunga”, tema que faz referência às origens familiares africanas com ritmos de kizomba e uma letra em crioulo, mas também com um sabor português ao incluir a guitarra portuguesa de Gaspar Varela, músico que a acompanha na estrada, e reconhecido no meio fadístico não só por ser bisneto de Celeste Rodrigues, mas também por ter tocado com Madonna na sua tour de Madame X. O resto da banda que acompanha Ana Moura é composta por André Moreira no baixo e Ariel Rosa na bateria.
Já com o palco em tons púrpura foi a vez de ouvir “Jacarandá”, tema que Ana Moura gravou em homenagem a Prince. «Ainda te vou ouvir a cantar por cima de um beat», disse Prince a Ana Moura num dos seus convívios. E assim foi. Inspirando-se na bonita árvore com flores púrpuras que podemos encontrar em Lisboa, Ana Moura compôs um tema dedicado ao músico que escreveu “Purple Rain” em jeito de agradecimento para com todos os momentos que passaram juntos e ensinamentos que Prince lhe transmitiu.
O hino “Desfado”, numa interpretação com o ritmo a puxar para o reggaeton, foi a única passagem pelo repertório mais antigo de Ana Moura. Seguiu-se “Te Amo”, uma cover dos Calema, que fez a ponte com “Desliza”, um tema que ainda não foi lançado e que foi estreado em palco. Ana descreve-o como a sua composição mais arrojada, sendo que ao vivo é acompanhada de uma coreografia bastante ousada. Segundo a artista a música será lançada em Setembro.
Seguiu-se depois “Arraial Triste”, um dos temas mais singulares que Ana Moura apresenta em “Casa Guilhermina”. O tema é bastante conhecido entre os fãs por ter dado origem a uma tipologia de arraial popular que é organizado pela artista todos os anos e que conta com djs sets de artistas alternativos.
Ainda assim Ana não consegue dissociar-se por completo do fado puro e duro, faz parte da sua identidade como artista e pessoa, e num momento de inspiração interpretou a cappella o fado “Loucura” perante um Parque da Bela Vista em completo silêncio. «E se vocês/ Não estivessem a meu lado/ Então não havia fado/ Nem fadistas como eu sou» é o estribilho que Ana canta e neste contexto da sua carreira parece que ainda faz mais sentido de ser cantado, pois quando muitos questionam e criticam as mudanças de estilo musical de Ana, ela faz questão de relembrar com este fado que continua a ser a fadista mais bem sucedida do séc. XXI.
Já na reta final ouvimos a sensualidade de “Agarra Em Mim”, com a participação do seu companheiro, compositor e produtor Pedro Mafama e, para terminar, “Mázia”, uma homenagem à sua falecida prima.
O público ficou assim rendido ao encanto de Ana Moura e à coragem e determinação de uma mulher que decidiu trilhar o seu novo caminho musical de forma totalmente independente. Se a sua música é fado, kizomba, ou semba, isso já não é mais revelante quando estamos perante uma cantora e compositora com um valor artístico incalculável.
SETLIST
- Ana Lua Caiano:
- Que o sangue circule
- Se dançar é só depois
- De cabeça colada ao chão
- Deixem o morto morrer
- Vou ficar neste quadrado
- Adormeço sem dizer para onde vou
- O bicho anda por aí
- Mão na mão
- Ana Moura: