Primavera Sound Porto: A liberdade para se ser o que se quiser, com Mannequin Pussy, The Last Dinner Party e Amyl and the Sniffers
Para lá das grandes bandas e das guitarradas mais imediatas, o Primavera Sound Porto este ano apostou ainda mais na música feita no feminino.
Já assim tinha sido com headliners – Lana Del Rey, PJ Harvey, SZA ou Mitski – mas tal também se refletiu em nomes menores. Mas nem por isso deixaram de ser menos importantes: Mannequin Pussy pela liberdade comum, The Last Dinner Party pela ambição da juventude e Amyl and the Sniffers na voz da revolta, assim se recordam mais três concertos do festival.
Mannequin Pussy
A chuva ainda era grossa e o concerto de Gel mal havia terminado, mas um pequeno compasso de espera em zona coberta mostrou-se insuficiente. Já de pés molhados e com um peso frio sobre os ombros, recebemos os Mannequin Pussy no Palco Porto no terceiro e último dia. O que inicialmente parecia uma demonstração de shoegaze com slacker rock dos 90’s depressa se transformou noutra coisa.
«Eu quero todos os rapazes a gritar pussy», sugeriu a vocalista Marisa “Missy” Dabice quando ditou que o concerto iria mudar de direção. «Quero que gritem pussy a partir das profundezas da vossa alma», como quem expurga palavras proibidas por entidades que teimam em condicionar a autonomia. Já depois das guitarras terem conquistado pelo seu fuzz e o baixista Colins “Bear” Regisford ter agitado as suas dreadlocks com um assumido headbang, as suas raízes do hardcore de Filadélfia vieram ao de cima.
Jarda atrás de jarda, com farpas lançadas à brutalidade policial imposta sobre a cor de pele nos Estados Unidos, gritou-se «Fuck America» e um «AHHHH!» extenso, proferidos por Missy em conjunto com o público que foi hóspede de uma conferência em prol do livre-arbítrio. «Eu não respeito nenhuma religião que não nos permita viver», frase prontamente aplaudida e que Missy utilizou para apelar ao cessar-fogo. Mas esta guerra não é apenas aquela que se vê no Médio Oriente. É sobre a independência individual, sobre o consentimento, direitos, faculdades e contra o abuso e a audácia de decisões e dogmas sócio-patriarcais que desaprovam a emancipação. Pois ninguém é verdadeiramente livre e digno desse nome se até o pensamento está formatado para não o ser.
Sobre as ações opressoras dos próprios pais, Missy disparou que «é vergonha deles, não nossa». A atitude punk catalisou temas sacados de “I Got Heaven”, disco editado este ano, e somou-lhes tantos outros de “Romantic”, “Patience” e “Perfect” para combater tudo e todos. Os Mannequin Pussy comandam o seu próprio céu: a fúria sobrepôs-se, a chuva fracassou e quem ganhou bateu palmas no fim.
The Last Dinner Party
Desde sempre que a imprensa britânica especializada gosta de criar as suas próprias estrelas de forma antecipada. Este ano o Primavera Sound Porto contava com dois nomes particularmente elogiados pela crítica. Os irlandeses Lankum, que cancelaram na véspera do festival por motivos familiares, iriam mostrar porque são tão eficazes em potenciar a música tradicional do seu país para campos do drone: ofício complexo que lhes atribui justos reconhecimentos. No lado oposto estavam as The Last Dinner Party, com a sua pop barroca (pouco) reciclada.
O álbum de estreia do quinteto, “Prelude to Ecstasy”, atingiu o top britânico de vendas aquando do seu lançamento em Fevereiro passado. Na verdade, não existia uma estreia tão fulminante nas terras de sua majestade desde “Communion” de Years & Years. Mas tal não aconteceu por acaso. Tendo sido o álbum produzido por James Ford, membro de Simian Mobile Disco e The Last Shadow Puppets, para além de já ter trabalhado com Arctic Monkeys, Blur, Depeche Mode, Foals, Florence + The Machine, Gorillaz, Kylie Minogue ou Pet Shop Boys, uma coisa era certa: ambicionavam serem grandes instantaneamente, nem que fosse em bicos de pé.
Abigail Morris assumiu a maioria das vozes e também a comunicação com o público presente no Palco Porto. Este, maioritariamente a queimar tempo para o concerto de Lana Del Rey poucas horas depois, ficou cedo a saber que seria pouco mais do que isso: «Somos o vosso entretenimento antes de Lana», confessou Morris. Se em estúdio ambição não faltou, em palco não se pode dizer o mesmo.
Existem alguns laivos mais entusiasmantes e que vão além de versos sacados a ABBA, Queen, Siouxsie ou Warpaint. Um dos raros momentos em que a banda não se parece ter apropriado gratuitamente das suas influências coube na voz da teclista Aurora Nishevci para “Gjuha”, em albanês. De resto uma amálgama de glam rock dos anos 70 e vestimentas associadas ao movimento goth da década seguinte. Mas como os tempos são outros, as Last Dinner Party tentam a controvérsia de costas largas.
Em entrevista ao The Times, a banda contou que é «divertido ser-se pretensioso», com o jornalista Jonathan Dean a garantir que «algumas pessoas nascem para serem famosas». O veículo de falatório não acontece nos seus concertos, no seu merchandise ou sequer na sua atitude. Ainda assim, em pouco tempo, toda a gente parecia saber da sua existência. Existe uma máquina de relações públicas por trás? É bem possível. «No nosso quarto concerto fomos filmadas e esse vídeo atravessou a indústria e depressa estávamos em conversas com advogados da música. Eu nem sabia que isso era um emprego», citando Lizzie Mayland, guitarrista, tentando disfarçar eventual suporte nos bastidores.
As londrinas deram o seu primeiro concerto em Novembro de 2021, abrindo para os Rolling Stones em pleno Hyde Park oito meses depois. Antes do lançamento do álbum de estreia, já “Nothing Matters” figurava na banda sonora de um videojogo de futebol e foram recebidas nos programas de Jools Holland e Graham Norton na BBC.
No Porto, “Prelude to Ecstasy” foi percorrido de alto a baixo à excepção de duas faixas, substituídas pelas novas “Godzilla” e “Second Best”. Boa execução para se angariar mais um punhado de fãs entre os milhares que só olhavam para o relógio. Pouco mais a acrescentar para lá de uma versão de “Wicked Game”, de Chris Isaak, mas é mais fácil sair-se ileso dos clichés quando se nasce em berço de ouro e a partir dele se tenta chorar, como em “Portrait of a Dead Girl”. Mas para elas nada importa, traduzindo-se o nome do single guardado para o fim do concerto.
Amyl and the Sniffers
Se os Mannequin Pussy apregoaram à liberdade no último dia do festival, Amyl and the Sniffers juntaram-lhe a importância da juventude no dia inaugural. O Palco Vodafone nunca seria grande demais para a dimensão do pub punk de Melbourne, já que a primavera floresce sempre mais na adversidade.
Os australianos, cujo nome caçaram num jogo de palavras com nitrito de amila (leia-se, o composto de poppers), instrumentam essa euforia momentânea. Ao vivo esse júbilo é transmitido por Amy Taylor, efusiva vocalista, à frente do guitarrista Declan Martens, do baixista Gus Romer e do baterista Bryce Wilson, e com o Sol a surgir de um nublado céu sobre a colina, fomos de 2024 para o final da década de 70 para recordar a energia de uns The Damned ou Iggy Pop e os seus The Stooges. Mas se não é pela novidade sonora, que nos agarrem pela conduta física e pela falta de pimenta na língua. Dito e feito.
Um arranque com “Facts”, “Starfire 500”, “Freaks to the Front” e “Got You” deu para os primeiros sinais de crowdsurfing e mosh. Enquanto isso, o perigo de uma mulher sem pudor foi respondido com sorrisos espalhados pelas grades. Troncos nus, peles a descoberto e punk rock cru e duro durante uma hora conquistaram o público, brindado também com “Hertz”, “Guided By Angels”, “Security”, “Shake Ya” ou “U Should Not Be Doing That”.
Enquanto o horizonte não se decidia de que tom se vestia, a plateia resolveu assumir que todas as cores eram válidas. As bandeiras da Palestina foram emergidas durante um discurso anti-governo e outras LGBT, trans ou não-binárias tomaram os ombros e os braços. As gerações mais jovens sentem a liberdade de se afirmar. Infelizmente, manifestar-se pelos direitos ainda passa por se ser punk.