Born To Run, O Épico da Classe Operária
Quando mais perto esteve do fracasso, Bruce Springsteen escreveu um dos melhores álbuns de sempre! Olhamos as canções, os amps, a lendária Esquire e a “Wall Of Sound”.
Já olharam a um momento superlativo na vossa vida e pensaram que foram heróis ou vilões não cantados? Que a vossa alegria ou dor se tornou parte da reserva anónima de alegria ou dor do mundo, que a justiça que praticaram ou a injustiça que sofreram, por enorme e arrasadora ou diminuta e íntima, ficou invisível e dobrada num Muro das Lamentações metafísico. «You can hide ‘neath your covers / And study your pain / Make crosses from your lovers / Throw roses in the rain / Waste your summer praying in vain / For a saviour to rise from these streets / Well now I’m no hero / That’s understood / All the redemption I can offer girl / Is beneath this dirty hood».
Há 40 anos atrás, Bruce Springsteen tinha aquela que podia ter sido a sua última oportunidade. “Greetings from Asbury Park, N.J.” e “The Wild, the Innocent & the E Street Shuffle” foram louvados pela crítica, mas um fracasso junto do público. Springsteen estava pressionado Columbia Records. O próximo álbum tinha que quebrar a barreira entre a música e as pessoas. Springsteen sentou-se em casa, a um piano, e decidiu-se cantar a vossa história, celebrar a vossa alegria e lamentar a vossa dor. “Born To Run” são histórias de vidas anónimas, de ninguém, de todos, daqueles “nascidos para correr”. Um Muro das Lamentações sónico, criado com a “Wall Of Sound”.
ESCREVER UM ÉPICO
Os dois primeiros álbuns de Springsteen são bons discos mas, a somar ao insucesso comercial, as mudanças de direcção na editora deixaram o músico na corda bamba. Sem o amparo de quem o tinha assinado, de quem acreditava em si. O novo corpo gerente da Columbia ponderou mesmo gravar o segundo álbum, “The Wild, the Innocent & the E Street Shuffle”, com músicos de estúdio. Quando Springsteen recusou, foi-lhe dito que dessa forma não haveria, sequer, um esforço razoável de promoção. A Columbia procurava forçar Springsteen e a E Street Band a sair. «Eles podem pensar que vamos embora, mas nós não temos para onde ir. Vamos continuar», Springsteen relembra o que disse aos seus músicos.
Mas o “Boss” fez mudanças. Abandonou a forma clássica de escrever rock. Colocou a guitarra de lado e sentou-se a um piano. A espinha dorsal dos Estados Unidos, as classes média e baixa americanas, uma década antes, havia sido violentamente despertada do flower power e as feridas do Vietnam continuavam por sarar.
Um sentimento de medo e incerteza quanto ao futuro e quem tu és, para onde te dirigias, para onde se dirigia o país inteiro, acabou por ficar no álbum
A classe operária perdera o “sonho americano”, como Springsteen relembrou à Rolling Stone: «As canções foram escritas imediatamente a seguir à Guerra do Vietnam que querias esquecer, toda a gente se sentia assim na altura. Não importava que idade tinhas, todos sofreram uma mudança radical na imagem que tinham do seu país e de si mesmos. Ias ser um tipo diferente de americano da geração imediatamente anterior a ti. um tipo radicalmente diferente, reconhecer isso foi o mote. Muitos dos meus heróis influenciaram o álbum. Mas descobri que não era nenhum deles. Era outro qualquer; não era nenhum deles. Agarrei no que nos tornava singulares, indivíduos. Não foi se tratou de uma mistura de estilos anteriores. Há muita coisa da música que adorávamos, mas há também algo mais – esse algo é um sentimento de medo e incerteza quanto ao futuro e quem tu és, para onde te dirigias, para onde se dirigia o país inteiro. Isso acabou por ficar no álbum».
Sentado na sua sala, num piano Æolian Company, Springsteen acabou por determinar a carga emocional do álbum, com introduções e preenchimento melódico, tornando-o impactante e grandioso. Seguindo algo da forma de escrita de Roy Orbison – as intros e outros a darem um sentido de continuidade de um tema para o outro e um amplo dramatismo a cada um.
No documentário do 30º Aniversário do álbum, o “Boss” refere a intenção de fazer sentir ao ouvinte que algo auspicioso estava para acontecer: «Há algo na melodia de “Thunder Road” que sugere um novo dia, uma manhã, algo a abrir-se. Enquanto o disco prossegue, as canções a surgir em sequência fazem muito sentido – mas não pensámos nisso na altura; estivemos a agir instintivamente o tempo todo».
Springsteen e a E Street Band transformaram a pressão editorial num catalisador, num momento definidor da sua carreira. Tudo ou nada! A banda obrigou-se a um esforço extremo na criação das canções, no seu detalhe, aproximando-se dos seu limites mentais. Springsteen “despiu-se” totalmente, entregando tudo de si. O resultado é um álbum dono de uma vibrante e enorme solidez e que, 40 anos depois, se mantém honesto, jovem e capaz de tocar qualquer um que o oiça.
WALL OF SOUND
Em Maio de ’74, “Born To Run” iniciou uma cruzada de mais de um ano, entre os estúdios nova-iorquinos Record Plant e 914 Sound Studios, por um som cuja força traduzisse a das canções. As primeiras gravações do álbum e pré-misturas falharam nesse propósito. Springsteen, na sua mente, «ouvia sons que não conseguia explicar a outros» e decidiu juntar Jon Landau ao seu trabalho de produção, em conjunto com Mike Appel. Este foi o início do fim da relação entre Springsteen e Appel, até aí seu produtor e manager, com Landau a assumir o lugar do último.
As mudanças prosseguiram com as sessões. O pianista David Sancious e o baterista Ernest Carter gravaram o single “Born To Run”, editado vários meses antes do disco, mas Roy Bittan e Max Weinberg viriam ocupar o seu lugar no álbum e na E Street Band. E, durante as extenuantes sessões, Steve Van Zandt foi, progressivamente, ganhando um papel de protagonista. Primeiro, como amigo de longa data, ajudando Springsteen nos arranjos da secção de metais, especificamente no tema “Tenth Avenue Freeze-Out”. Depois, com uma crescente influência na tradução das ideias sonoras de Springsteen para o álbum, acabando por se integrar também na E Street Band. Novo produtor, banda reformulada e a uma nova capacidade de comunicação. Algo continuava a faltar.
Em 1975, a rádio AM (Modulação em Amplitude) ainda era o principal método de transmissão radiofónica. Bruce Springsteen sabia que o seu álbum tinha que ser um sucesso comercial, ou teria que pensar em arranjar um daytime job, e que, também pelo bem das canções, tinha que soar grande.
O “Wall Of Sound” era o elemento que faltava a “Born To Run”. O rude 914 Sound Studios não tinha meios de o conseguir. Jon Landau fez a banda mudar-se para o luxuoso Record Plant, com as suas três salas, o primeiro estúdio do mundo que, reformulando a sua Sala A, se tornou capaz de misturar em som quadrofónico, os primórdios do 4.0 ou Surround. Se o sistema, no início, foi um fracasso devido aos seus custos, problemas técnicos e dificuldades de aplicação (até nos sistemas sonoros do consumidor, que apenas reproduziam stereo), a verdade é que ofereceu à E Street Band a amplitude ambiental que os vários elementos e arranjos musicais necessitavam.
Já com toda a crew instalada no novo local de trabalho, todas as canções foram primeiro gravadas com um núcleo rítmico. No centro, as baterias de Weinberg, a sua batida poderosa e precisa, evocando aquele offbeat vertical de Ringo Starr ou groove roots rock de Levon Helm. O baterista usou a particularidade de cobrir a tarola com folhas densas de papel, para emular o som soul sulista, de Memphis. Roy Bittan ao piano, Springsteen em guitarras acústicas e Garry Tallent no baixo, constituem a restante base sonora transversal do álbum. Os restantes elementos foram resultado de extensivos overdubs, aumentado a densidade harmónica dos disco, criando a “Wall Of Sound”.
THE BIG MAN
A história de como Clarence Clemons (11 de Janeiro de 1942 – 18 de Junho de 2011) entrou na E Street Band está imortalizada em “Tenth Avenue Freeze Out”. No final de ’71, Clemons já tinha uma reputação sólida e estava a tocar uma temporada com Norman Seldin & the Joyful Noyze, no The Wonder Bar, em New Jersey, uma banda com uma dinâmica muito similar à do Boss com a E Street.
Clemons decidiu ir ver Springsteen num bar próximo e é o saudoso saxofonista que recorda: «O Bruce já contou várias versões, mas eu sou baptista (Convenção Baptista do Sul), portanto esta é a verdade. (…) A banda estava em palco, mas a ver-me à ombreira da porta quando entrei. Talvez o Bruce tenha ficado nervoso porque disse ‘Quero tocar com a tua banda’ e ele respondeu ‘Claro, tu fazes qualquer coisa que queiras fazer’. A primeira canção que tocámos foi uma versão do que seria “Spirit In The Night”. Eu e o Bruce olhámo-nos e não dissemos qualquer palavra, simplesmente sabíamos. Sabíamos ser o elo perdido na vida do outro. Ele era aquilo que eu procurava. De certa forma, ele era apenas um miúdo enfezado. Mas era um visionário. Queria seguir o seu sonho. O resto é história».
Clemons juntou-se à E Street Band em 1972. Também “Born To Run” é fulcral, com solos de saxofone tão memoráveis e vigorosos como os da title track, de “Thunder Road ou “Jungleland”. Esses solos tornaram mais distinto o rock ‘n’ roll da E Street, ocupando a predominância habitual da guitarra no rock clássico e vincando uma dinâmica melódica mais intensa que o piano podia conseguir sozinho. O Big Man, alcunha que ganhou no circuito, tornou-se fulcral no som de Springsteen e um dos músicos mais icónicos na cultura popular…
AMPS & GUITARRAS
Se há coisa em que Bruce Springsteen é severamente reservado, é no seu som de guitarra. A tarefa de desvendar o seu rig de concerto é dantesca. Descobrir o seu rig de estúdio e, particularmente, das sessões de “Born To Run” só seria possível através de bruxaria. Mesmo o documentário “Wings For Wheels”, que acompanha a edição de 30º Aniversário do álbum, é muito pouco revelador a este respeito.
Na digressão de “Darkness On The Edge Of Town”, o álbum seguinte, Springsteen usava amps Fender Bassman ’59. Mas aí “Born To Run já se tinha tornado no sucesso que, actualmente e apenas na América, chegou aos 6 milhões de exemplares vendidos. Ou seja, em “Born To Run” Springsteen não teria carteira para os Bassman. Contudo, o estúdio podia tê-los ou podiam ter sido alugados. Há quem afirme conseguir identificar um par de amplificadores que, na altura, procuravam aproximar-se desses clássicos da Fender: os Peavey 4-10.
Pelas imagens da altura, presentes no documentário, é impossível afirmar categoricamente qualquer das possibilidades. No entanto, sem qualquer desconsideração pela Peavey e tendo em conta o historial de rigs do “Boss”, o recurso aos 4-10 é pouco provável. Há imagens de concertos, nessa altura, que reforçam a teoria dos Bassman e outros Tweed, pois é possível vislumbrar um Fender Tweed Pro 50’s (com um speaker de 15”) e um Fender Bandmaster 3×10”. Springsteen não usa muito processamento na guitarra. Sempre usou, aqui e ali, reverb e slapback. Na altura de “Born To Run”, diz-se que, para o slapback, recorria a um Echoplex, mas também não é possível confirmá-lo. Os pedais que são possíveis de verificar são dois fuzz, o Maestro Fuzz e o Sola Bender. Um MXR D+ surgiu por esta altura no seu rig e, de facto, manteve-se uma escolha regular até hoje.
A icónica Tele que surge na capa é outro dos cismas. Uma Esquire pura ou uma Telecaster com o braço, em maple, de uma Esquire, a pré-história da icónica guitarra. Não se sabe exactamente o ano de construção do corpo nem do braço. Parece ser, efectivamente, uma Esquire. Mas… Vamos por partes, começando pelo que se sabe.
Apesar de Springsteen usar , em todas as suas outras Teles, pickups Joe Barden, sabe-se que os pickups desta são custom made, da autoria de Phil Petillo – o lendário luthier que trabalhou com nomes como Tom Petty, Keith Richards, Johnny Cash ou Paul McCartney. De facto, devido a uma amizade e vizinhança de vários anos, foi mesmo Petillo a vender a dita guitarra a Springsteen. Foi o próprio músico a referi-lo.
A guitarra possui ainda um pré-amp integrado no circuito, que servia de condutor aos jacks bastante longos que Bruce usava na altura. A guitarra, na altura da foto, já não possui os afinadores originais de uma Esquire, ainda que mantenha uma ponte de três saddles dos anos 50 ou início dos 60. E, posteriormente, Petillo instalou-lhe uma ponte de titânio com seis saddles, em conjunto com trastes patenteados por si, os Petillo Precision Frets. A partir daqui, entramos num dos grandes mistérios do rock n’ roll!
Os guitar techs que trabalham com Springsteen apontam para uma guitarra de ’53 ou ’54. Petillo, diz-se, comprou a guitarra em liquidação a um estúdio. A guitarra terá ido parar-lhe às mãos já com algumas modificações, particularmente o corpo algo escavado por baixo do pickguard, de modo a acomodar pickups extra. Aliás, o acréscimo do pickup do braço é um dos motivos de grande debate sobre o modelo ser uma Esquire ou Telecaster, pois as Esquire tinham apenas um pickup.
O pickguard apresenta também imenso debate. Os primeiros pickguards da marca eram apertados por 5 parafusos, até ’53. Os modelos de ’54 possuíam 7. A guitarra de Bruce tem 8! O número de parafusos pode ter sido, simplesmente, aumentado para maior eficácia a impedir o pickguard de torcer. E depois, a possibilidade de Petillo já ter adquirido a guitarra modificada, olhando de perto a foto da capa de “Born To Run”, ganha força. O corpo e o pickguard são tudo menos o esquema de fábrica. Há um decalque impossível de identificar entre o pickup da ponte e o do braço, decalque que, em fotos posteriores, desapareceu. Foi removido ou foi trocado o pickguard?
A guitarra, que foi o modelo principal do músico desde 1972, é agora muito pouco usada, subindo a palco apenas em ocasiões especiais.
Mas o mais estranho tem lugar no braço e headstock… O headstock possui a presilha “butterfly” para as cordas B e E colocada, mais ou menos, em linha com a cabeça de afinação da corda A. Este foi um ajuste feito pelo ano ’56, até aí a presilha estava mais distante do nut. E o braço, que se afirma ter um perfil soft-V foi adoptado pela Fender no final de ’55, permanecendo até ’57. Todavia, este tipo de perfil também foi o padrão entre ’50 e ’51. Ora, se a guitarra é apontada ao ano ’53 ou 54, é certo que o braço não é original, mas será mais antigo ou mais tardio? A presilha das cordas, pode ter sido uma das muitas modificações da guitarra, mas também aponta para que a Esquire seja um modelo da altura indicada com o braço de um ano mais avançado.
A guitarra, que foi o modelo principal do músico desde 1972, é agora muito pouco usada, subindo a palco apenas em ocasiões especiais. Segundo Springsteen, já não consegue manter a afinação por mais que uma ou duas canções. Já “Born To Run” parece estar para durar mais 45 anos.