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ENTREVISTA | Luís Varatojo, a Luta Saiu à Rua num Ano Assim

ENTREVISTA | Luís Varatojo, a Luta Saiu à Rua num Ano Assim

Nuno Sarafa

Em entrevista à AS, Luís Varatojo desmonta o seu novo disco, um autêntico manual repleto de “Técnicas de Combate” para a espécie de Luta Livre em que o cidadão comum está mergulhado nos conturbados e polarizados dias que correm.

É um dos nomes incontornáveis da música popular portuguesa. Começou por ganhar visibilidade nos (longínquos) anos 1980, quando co-fundou uma das maiores bandeiras do punk português, os Peste & Sida, que ressurgiriam anos mais tarde como Despe & Siga – uma versão mais light do formato original.

Em 1999, integrou o projecto Linha da Frente, que aliava a electrónica à poesia portuguesa, ao lado de João Aguardela, com quem formaria, em 2004, juntamente com Maria Antónia Mendes [Mitó] e Vasco Vaz, A Naifa, o colectivo que contribuiu de forma indelével para a reinvenção do fado.

Munido da guitarra portuguesa com que inovara em A Naifa, fez ainda parte do projecto Fandango, com o acordeonista Gabriel Gomes, antes de, em 2019, começar a recolher artigos de opinião, notícias e textos de diversos órgãos de comunicação social. Em simultâneo, começou a construir beats e instrumentais a partir de samples de discos de jazz. Assim começava a desenhar o seu mais recente projecto, Luta Livre, e respectivo disco, “Técnicas de Combate”, publicado em Fevereiro numa edição de autor em formato CD, LP/Vinil e digital.

«Associações, sindicatos e partidos, as classes dominantes têm horror aos colectivos». Assim canta Varatojo no refrão de “Política”, o tema que inaugura o disco talvez mais politizado e directo da sua profícua carreira. Luís Varatojo, qual Herberto Hélder, decidiu pegar em termos de campos lexicais que não costumam habitar as letras das canções – «queima de carvão, petróleo e gás, desflorestação, actividade pecuária, uso intensivo de fertilizantes, negligência dos nossos governantes» – e, uma vez mais, inovou.

Temos sido manipulados ao longo das últimas décadas. Se quisermos saber vamos organizar-nos, votar, fazer manifestações, tomar partidos

“Técnicas de Combate” é uma seta afiada apontada ao abstencionismo, à desinformação das fake news, ao horror e catástrofe das alterações climáticas, aos que matam activistas, à gentrificação das grandes urbes ou à precariedade de quem entrega comida nas nossas casas.

Com letras e músicas de Luís Varatojo, o álbum conta com a participação de vários convidados, como o Coro Gospel Collective, Ricardo Toscano, Kika Santos, Edgar Caramelo, João Pedro Almendra, Nelson Cabral, Ivo Palitos, Diogo Santos, Pedro Mourato e o Coro Os Amigos do Vicente. A ilustração da capa é da autoria de João Pombeiro e o artwork é de Luís Carlos Amaro. Os vídeos – imperdíveis – são da autoria de Andreia Reisinho Costa e Cristina Viana.

“Técnicas de Combate” é spoken word, é hip-hop, rock, pop e tropicália. É política em forma de música. É a Luta Livre de Luís Varatojo. E se Zeca Afonso cantava que «a morte saiu à rua num dia assim», já Varatojo acerta em cheio quando arrisca sair à rua com a sua Luta… num ano assim.

Pegando nos dois primeiros temas deste disco – “Política” e “Ninguém Quer Saber” – neste mundo polarizado de hoje em dia, serão as classes dominantes que têm horror às associações, sindicatos e partidos ou serão os cidadãos que estão cada vez mais afastados dessas organizações e é cada vez mais cada um por si?
Há certas forças que dominam o mundo e os media e com isso dominam o pensamento das pessoas. O facto de nos darem determinados produtos de entretenimento ou de ajudarem a disseminar notícias falsas acaba por nos pôr a não pensar em certos assuntos que devíamos tirar tempo para pensar. Tiram-nos qualquer vontade de pensar em assuntos sérios, de participarmos ao nível da cidadania e é isso que aponto nesses temas. Temos sido manipulados ao longo das últimas décadas, porque se quisermos saber vamos organizar-nos, vamos votar, fazer manifestações, tomar partidos… e, cada vez que fazemos isso, conseguimos sempre qualquer coisa. Obviamente que isso não interessa ao outro lado. Por isso, há gente que faz isto de forma planeada e com intenção. Somos simplesmente manipulados. Se nos interessarmos e nos juntarmos, e dou alguns exemplos no tema “Política”, como os das associações de estudantes, nas escolas secundárias e nas universidades, melhoramos sempre alguma coisa. Se formos apenas uma voz a falar não temos direito a nada. É uma questão de olharmos para o lado, de nos juntarmos às pessoas que têm os mesmos interesses que nós e fazermos valer esses interesses. Neste momento, estamos muito adormecidos e os prejudicados somos sempre nós.

Falas muito das redes sociais. Se por um lado disseminam informação, por outro, transmitem desinformação. Achas que as redes sociais ajudam ou prejudicam estes fenómenos que apontas?
Acho que faz as duas coisas. Conseguimos transmitir a nossa opinião ao utilizar as redes sociais, por vezes até em demasia, porque muitas vezes não pensamos no que dizemos. E estar a falar com um amigo na tasca é uma coisa, mas partilhar uma mensagem numa rede social, que chega a milhares de pessoas, é outra. De qualquer forma, dão-nos essa liberdade, mas por outro lado também sabemos que essa liberdade está controlada. As nossas informações servem para vender dados a empresas e organizações. Também sabemos que determinados assuntos são controlados pelos algoritmos. Portanto, há aqui uma duplicidade. Neste momento, aproveito-as o mais possível. Mas obviamente que também já senti o algoritmo a controlar aquilo que vou dizendo. Ainda estamos num ponto em que conseguimos dizer algumas coisas, mas há muita coisa controlada e manipulada e acho que no futuro vai ser ainda mais. As redes sociais não serão um espaço minimamente livre a breve trecho.

Construíste os textos a partir de fragmentos de notícias. Como é que te surgiu esta ideia?
De manhã, ao pequeno-almoço, leio sempre as notícias de vários órgãos de comunicação nacionais e internacionais, porque me interesso sobre o que se está a passar e gosto de ler vários ângulos de abordagem e de opinião. E, a determinada altura, comecei a reunir alguns apontamentos, a retirar uns tópicos, a juntar frases que me interessavam ou por vezes artigos inteiros. Comecei a juntar essas notas sem nenhum plano. Podia dar para fazer vídeos, textos para um blogue, frases para fazer t-shirts, não tinha a mínima ideia do que poderia fazer com aquilo, mas o que é certo é que achei que eram assuntos, frases ou parágrafos que me interessavam. Fui juntando e a determinada altura abandonei. Depois, passado algum tempo, comecei a rever e reparei em coisas que já nem me lembrava que tinha guardado e comecei a achar ainda mais interessante do que na primeira abordagem. E, então, comecei a brincar com esses textos e a reorganizá-los, a manipular as ideias que estavam nos textos e a pôr o meu ponto de vista. Mas ainda sem a perspectiva de fazer músicas, tanto que não me importava se rimavam, se tinham métrica, etc. O texto de “Política” vem daí. Aquilo pouco rima, a não ser no refrão. Depois de ter começado a trabalhar nos textos com outra perspectiva comecei a pensar que os podia pensar a pôr em música. Como já andava a trabalhar em alguns elementos, em alguns beats, andava a samplar discos de jazz e a fazer música como faço sempre, comecei a confrontar uma coisa com a outra para ver se resultava. E é a partir daí que esses textos começam a ter cabimento no contexto de música.

Vens do punk e sempre foste um músico interventivo, mas esta tua Luta Livre e estas Técnicas de Combate são o teu trabalho mais politizado de sempre. O que aconteceu ao teu mindset para te atirares a estas temáticas de forma tão directa?
As coisas acontecem como têm de acontecer. É, de facto, o meu trabalho com uma linguagem mais directa. A partir de uma determinada altura, foi intenção minha não usar muitas metáforas, tratar as coisas pelos nomes. A linguagem na música anda demasiado poética. Em termos artísticos, interessou-me usar termos como classes dominantes, os colectivos, associações, queima de carvão, petróleo e gás. São termos que não se usam em música e a partir de determinada altura comecei a achar engraçado usá-los como proposta artística. Quis ver como é que essas palavras funcionavam no meio de uma música cool, cheia de groove. Gostei muito do resultado e a partir daí apostei mais nessa linguagem directa. Juntei esses textos porque são assuntos que me interessam, sou um cidadão activo, voto, participo em manifestações, dou a minha opinião desde os tempos da escola primária. Quando isso começou a resultar no contexto da música, achei que era uma boa ideia pôr isto cá fora. Não tenho grandes problemas em relação ao que ponho cá fora, aliás, o que tenho feito ao longo do tempo mostra isso. Faço o que me apetece em determinada altura, não trabalho minimamente para o gosto do mercado, faço aquilo que me dá prazer, que sinto que devo fazer e que deve ser mostrado. Faço o que é útil para mim e que pode ser útil mais alguém. Agora saiu isto!

Como é que foi o processo de construção destas canções?
Reuni os textos e escrevi as letras, e depois gravei a maior parte dos instrumentos. Convidei dois saxofonistas, o Edgar Caramelo e o Ricardo Toscano – do qual já tenho idade para ser quase avô [risos]. Dou-me bem com eles, cruzei-me com eles nos últimos anos e são dois músicos com os quais gostei muito de trabalhar e também sei qual é a posição deles em relação a uma série de assuntos que são abordados nas letras – e isso era importante, que quem estivesse aqui estivesse de acordo com o que estava a passar. Precisava de um pouco de performance de improviso em cima dos temas e por isso chamei esses dois saxofonistas. Também convidei a Kika Santos, que é minha vizinha e que costumo encontrar aqui na rua. Sabia que andava a fazer locuções e tinha a canção “Ninguém Quer Saber” que precisava de uma locução, porque eu não estava a dar conta desse recado. Precisava de outra voz para fazer isso e chamei a Kika, que gravou no estúdio dela. Depois, trocámos ficheiros à distância e acho que resultou bem. De resto, as baterias foram todas programadas por mim, não houve necessidade de ir a estúdio gravar. Os baixos e as guitarras também foram todos gravados por mim aqui em casa. O coro Gospel Collective fomos gravar ao Namouche, porque eles são muitos e tinha de ser um espaço maior. Foi tudo feito assim, um bocadinho aqui, outro ali, num misto de teletrabalho e presencial. Fui juntando as peças à medida que as ia recolhendo. A maior parte do trabalho foi feito durante o confinamento, algumas coisas aqui no meu estúdio, como foi o caso dos saxofones, pois já não estávamos naquele período árduo de confinamento. Fomos contornado as regras da forma possível e o que é certo é que o disco se fez no espaço de um ano.

Se quisermos usar uma expressão bastante actual, pode dizer-se que este é o verdadeiro disco da diversidade de género

E há também a colaboração do João Pedro Almendra, que presumo ter sido especial para ambos…
Gosto muito do João Pedro, é um grande performer, é meu vizinho, frequentávamos o Popular de Alvalade e encontrávamo-nos lá muitas vezes e obviamente que falamos muito. Fizemos umas músicas e letras e durante este processo ele foi aparecendo para ir experimentando umas frases. O que ficou no disco ficou porque tinha que ver com o assunto do disco, inseria-se bem no contexto e foi a primeira música que terminei com ele. Nos últimos dois, três anos temos feito algumas coisas juntos. Identificamo-nos muito um com outro. Ele nunca desgosta das músicas que faço, eu nunca desgosto da forma de ele pôr a voz. Temos muitos pontos em comum que facilitam o andamento das coisas. Espero conseguir continuar a fazer mais coisas com ele.

Estes vídeos que tens lançado são fortes e determinantes para ilustrar os temas das canções. Tens alguma ideia para os catapultar ou vão ficar-se apenas pelo teu canal do YouTube?
Esse facto foi notado por alguns jornalistas. Alguns pedaços passaram até nos telejornais. A RTP, por exemplo, fez uma reportagem para o Telejornal e incluiu alguns pedaços de vários vídeos. E talvez essa tenha sido a altura em que os vídeos alcançaram mais gente. Alguns vídeos são remontados para serem usados nos espectáculos e começam agora a chegar a mais gente. Uso-os como cenário, têm as letras e dão um power enorme ao fundo palco. Mas não estou a ver outras formas de os divulgar. Passa muito pela partilha das pessoas. Por acaso, houve um vídeo, do tema “Escravo do Patrão”, que foi seleccionado para a categoria de videoclips do Festival de Curtas de Vila do Conde. Portanto, eles descobriram os vídeos e vão ajudar a dar outra exposição a esse trabalho, o que é bom. Os vídeos estão aí para quem os quiser partilhar.

Em termos de géneros musicais, neste disco saltas de estilo em estilo, da pop ao jazz, passando pelo hip-hop, rock e muito spoken word. Não tiveste preocupação em criar um conceito sonoro para o disco ou o conceito é precisamente esse?
Se quisermos usar uma expressão bastante actual, pode dizer-se que este é o verdadeiro disco da diversidade de género [risos]. Mas a sério, não dou grande importância aos géneros musicais, para já, porque não me vejo a fazer música de um determinado género a vida toda, acho que se assim fosse já tinha falecido. Não me vejo a vida inteira a tentar aprimorar determinado género… não é o meu género! [risos]. Estou na música sobretudo para ter liberdade. Há outros trabalhos que se podem fazer a ganhar muito mais dinheiro, mas onde temos de entregar a liberdade. Aqui tenho toda a liberdade para fazer o que quero e isso é o mais importante. Quando venho para o estúdio e começo a experimentar, o que interessa realmente é o que vai saindo da bobine das colunas e o que gosto de ouvir. O que não é fácil, muitas vezes ando às voltas e voltas até chegar a um contexto que me agrade, mas ainda assim isso é que importa. Oiço o tema “Pedrigree”, por exemplo, e aquilo é rock, não há volta a dar, é uma canção rock, e gosto. Oiço “Política”, que é meio hip-hop, e gosto. Oiço a “Terra”, que anda ali num registo tropical, e também gosto. Isso também tem que ver com a música que gosto. Não acredito que os músicos que fazem um só estilo de música só gostem desse estilo. Tudo o que ouves reflecte-se no trabalho, ou então estás a falsear alguma coisa. E depois quem gosta das coisas que faço já espera sempre que venha algo diferente e não mais do mesmo. Na minha opinião, é por aí que as coisas mantêm o interesse, por isso, é a trabalhar assim que me sinto bem.

Como é que o público recebeu a tua Luta Livre ao vivo e quando é que estas Técnicas de Combate voltam à estrada?
Tenho algumas datas marcadas. Duas em Agosto, um concerto em Évora e outro em Olhão, mas que ainda não sabemos se vamos fazer por causa das novas regras. Em Setembro há mais uma série de propostas. Os de sala vão acontecer, mas os que são ao ar livre estão dependentes das regras da pandemia. Mas acho que até ao final do ano ainda devo fazer mais uns 10 concertos. A ideia é mostrar o trabalho um pouco por todo o país e não ficar apenas confortavelmente na zona de Lisboa! Os concertos têm sido muito participativos, o pessoal envolve-se bastante, também embalado pelo groove, mas depois a conversa vai avançando e as pessoas vão entrando nos temas. Como há muitos refrões fortes, com palavras de ordem, o pessoal acaba por cantar aqui e ali. Não diria que são comícios, mas andará lá perto. É uma situação em que vale a pena participar, porque acontece sempre alguma coisa. Não é ver seis ou sete virtuosos executarem os seus instrumentos. Há um envolvimento do público no espectáculo. A noite é sempre mexida. A banda é composta por uma série de excelentes músicos com grande capacidade de improviso, o que faz com que haja momentos puramente musicais. É um misto de comício, de palavras de ordem com momentos de pura música. Até agora, as noites têm sido muito fortes.

Já pensaste em arranjar patrocínios para meter a luta numa carrinha e andar pelas ruas do país a espalhar a mensagem?
[risos] Isso era o formato ideal, mas ou tinha de ter uma camioneta ou então ter os tais patrocínios. Gostava muito de poder descer, por exemplo, a Avenida da Liberdade, ir para as ruas e fazer isso. Aliás, houve muito disso durante o confinamento, sobretudo câmaras municipais e estações de televisão que optaram por esse meio que, no fundo, era o que se fazia logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, em que não havia palcos e artistas como o Zeca Afonso, Sérgio Godinho, etc, iam para cima da camioneta e debitavam as canções para o povo. Tirar a música dos salões e dos festivais continua a ser uma proposta válida, só que neste momento é preciso haver investimento… ou a camioneta… [risos].