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alt-J, Os Sonhadores de Maurice Sendak

alt-J, Os Sonhadores de Maurice Sendak

2022-11-17, Campo Pequeno, Lisboa
Nero
Teresa Mesquita
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Com os alt-J a celebrarem o 10º aniversário de “An Awesome Wave”, o seu álbum de estreia, e a promoverem o mais recente “The Dreamer”, o Campo pequeno viveu uma noite de intensa e colorida magia sónica.

Foi há uns 10 anos que os alt-J passaram em Portugal pela primeira vez. Foi no Milhões de Festa. Tinha assumido recentemente a pasta de editor da AS (papel que orgulhosamente desempenhei durante mais de uma década, antes de me tornar freelancer) e a banda impressionou-nos de tal forma que rapidamente foram capa, com entrevista, nos tempos da revista impressa. Diga-se a verdade, essa revista vendeu pouco. Por isso, é sempre surpreendente constatar que, desde aí, a presença da banda tornou-se recorrente no nosso país, sempre com uma enorme aderência de público. Aliás, ainda no Verão passado, na 14.ª edição do NOS Alive, os alt-J estiveram em Lisboa e cá regressaram no dia 17 de Novembro, no Campo Pequeno.

Os britânicos trouxeram consigo o recente álbum “The Dream”, um projecto onde histórias e contos inspirados em crimes reais de Hollywood e de Chateau Marmont convivem com alguns dos momentos mais pessoais da banda até hoje. E, por falar em momentos pessoais, poucos serão mais significativos que o álbum “An Awesome Wave” que, junto do seu sucessor “Is All Yours”, soma em vendas mais de dois milhões de cópias e os streamings das suas músicas ascendem aos dois bilhões. Editado originalmente no dia 25 de Maio de 2012, o seu 10º aniversário foi pomposa e alegremente celebrado nesta mais recente passagem pelo nosso país. Afinal foi tocado quase integralmente.

Mas primeiro foi o blues. Tudo se iniciou com “Bane”, o seu ambiente e dedilhados western, os imponentes coros harmonizados, como uma work song, antes de sentir a tradicional fusão trip-hop com a entrada da bateria e percussões de Thomas Green. Para este que vos escreve, que não os via há um bom par de anos, surgiu aqui a primeira surpresa…

Sempre vi Green tocar sem pratos, exceção a um pequeno modelo Chopper para uma ou duas canções. Desta feita o seu kit incluiu um hi-hat que foi abundantemente utilizado e integrado com o cowbell e a pequena tarola que dispara os sons electrónicos. Isto trouxe ainda mais riqueza às frenéticas semicolcheias rítmicas que pontuam as canções. Algumas falhas nesse frenesim percussivo sentiram-se mínimas e sem comprometer o desenvolvimento instrumental, sendo apenas notórias devido à excelência do desempenho global.

Aliás, em palco e por muito que algumas vozes que passam por “entendidas da poda” digam o contrário, os alt-J expressam calma, profissionalismo e uma atitude serena na execução musical. Cada um dos três músicos desempenha as suas funções sem muita comoção. Muita concentração na música e pouca conversa (a interação com o público limita-se às cortesias mínimas). Ainda nesse particular, com a sucessão de “Every Other Freckle” e “The Actor”, entre tapping, slides, harmónicos naturais e artificiais e enorme articulação nos dedilhados, é uma evidência que Joe Newman está, basicamente a “shreddar”. E fá-lo enquanto mantém um impecável controlo vocal.

Nessa enorme fábrica de produção em série que é a música popular, onde a qualidade tanta vez se perde por entre a quantidade, a diferença entre ser sui generis ou ser apenas mais um é muito curta. E, nesse sentido, os alt-J sempre tentaram e se pautaram por um estilo e comportamento fora do comum. E nos três temas de “Relaxer” que vão soar no alinhamento é onde se vai sentir a banda a soar de forma mais triunfal na destreza como uniram riffsbeats e um luxurioso sentido orquestral nas sintetizações. Primeiro com “In Cold Blood”, logo seguida de “Deadcrush” – onde a Telecaster (uma Fender American Deluxe em Cherryburst) deu lugar a um Precision Bass – e mais para a frente com “3WW” (um dos malhões da noite). E então, entrou-se no Sítio das Coisas Selvagens…

UMA ESPANTOSA VAGA

Maurice Sendak escreveu sobre um sítio onde somos habitados por “coisas selvagens”. Tal como milhares de crianças, os alt-J absorveram a imprevisibilidade latente do mundo exposto por Sendak, cresceram e tornaram-no um mundo onde 4 rapazes fazem brincadeiras com as formas de percussão. Jogando com o “aquilo que é esperado” de uma estrutura rítmica e levando a coisa para campos fora do habitual!

Recorrem à voz peculiar do vocalista para criar um efeito de estranheza viciante, que em disco nos faz voltar para trás por causa de algum pormenor inesperado. E há aqui uma história engraçada, já que estamos a andar para trás no tempo. A ideia original de Joe Newman era que a voz principal da banda fosse feminina. Ele não fala assim, não fala como canta. No início nunca se sentiu exactamente confortável com a sua habilidade para cantar e com o passar do tempo…

Recebeu elogios (não os recebes se não fores bom, é por isso que se chamam elogios). Acabou por manter-se e ia sua voz e desenvolver a estética da banda em torno dela. Os alt-J usam as melodias vocais, que poderiam muito bem funcionar unicamente a capella, como suporte do seu tecido sonoro. Músicas como “FitzPleasure” mostram como o jogo de harmonias, quase à maneira de Brian Wilson, são umas das componentes fortes desta banda. E se falamos de oldies como Beach Boys, vale a pena mencionar que nos fraseados de Joe Newman há qualquer coisa do lendário Hank Marvin e dos Shadows. Isso será mais notório no som de guitarra dos temas de “The Dreamer”, mas alastrou para os arranjos com que a banda toca actualmente as malhas de “An Awesome Wave”.

O concerto foi um crescendo de intensidade, de electricidade e felicidade, proporcionado por este portal para esse mundo mágico que os alt-J construíram uma década atrás.

Nada nisto é exactamente fácil de absorver. Mas é extremamente contagiante. E alastrou exponencialmente pela plateia do Campo Pequeno. O ponto de partida foi “❦ (Ripe & Ruin)”, colado com “Tessellate”, tal como sucede no álbum que, a partir daqui tornou-se o centro do concerto, intercalado pontualmente por momentos da restante discografia. O público respondeu com entusiástico coro a “Matilda” e “Something Good”.

Entre outros temas de “The Dreamer”, destacando-se “Delta”, a plateia tornou-se uma gigante pista de dança com “Taro” e “Dissolve Me”. O crescendo de intensidade, de electricidade e felicidade, proporcionado por este portal para esse mundo mágico que os alt-J construíram uma década atrás, atingiu o clímax com os arrasadores buzzsaws da sintetização de “Fitzpleasure”, a redimensionarem a canção ao vivo.

O encore avanço para o segundo álbum, com “Left Hand Free”. Depois mais uma visita a “The Dreamer”, com Augustus Unger-Hamilton a dividir os teclados com um Hofner na execução de “Hard Drive Gold”, faz sentido que o tenha feito, afinal esta é a malha mais Beatles dos alt-J. “Breezeblocks” fechou com chave de ouro.

SETLIST

  • Bane
    Every Other Freckle
    The Actor
    In Cold Blood
    Deadcrush
    ❦ (Ripe & Ruin)
    Tessellate
    U&ME
    Matilda
    Chicago
    Something Good
    3WW
    Montreal
    Bloodflood
    Delta
    Philadelphia
    Taro
    Dissolve Me
    Fitzpleasure
    Left Hand Free
    Hard Drive Gold
    Breezeblocks