Björk, A Radiância de Cornucópia em Lisboa
2023-09-01, Altice ArenaBjörk arrancou em Lisboa a rota europeia de “cornucopia”, um arrebatador e onírico espectáculo de luz e som planeado ao milímetro e com uma coreografia a raiar a perfeição, em que os espartilhos cénicos são rebentados pelo poder visceral da voz da islandesa.
Björk apresentou a digressão “cornucopia”, um périplo europeu que teve início no passado dia 1 de Setembro de 2023, em Lisboa, na Altice Arena, da seguinte forma: «Cornucopia foi pensada desde o início com a intenção de se tornar um mundo tanto para a utopia como para o álbum que viria depois, editado como fossora. Portanto, estou deliciada para estrear a colisão destes dois mundos, este Outono no sul da Europa», pode ler-se nas redes sociais da islandesa.
Concebido com base no álbum “Utopia” (2019), “Cornucopia” estreou-se como um espectáculo de residência no The Shed, em Nova Iorque, altamente aclamado pela crítica, com a Rolling Stone a dizer que é um «espetáculo de som e imagem inovador». Nele, Björk apresenta o seu catálogo de músicas originais, reajustado para incluir as canções mais icónicas da sua discografia e integrá-las com aquelas dos seus dois mais recentes trabalhos.
Micologista apaixonada, Björk apelidou “Fossora” como o seu «álbum de cogumelos» – terrestre, orgânico e reminiscente do círculo da vida. Os músicos por detrás de “Fossora” incluem um sexteto de clarinetes-baixo, batidas criadas pela dupla de dança indonésia Gabber Modus Operandi e vocais do seu filho Sindri, da sua filha Ísadóra, e do músico Serpentwithfeet. A falecida mãe de Björk tem dois créditos de composição de canções, tornando as referências do álbum à vida e à morte ainda mais pungentes.
“Cornucopia” inclui visuais digitais únicos e vanguardistas criados pelos artistas Tobias Gremmler, Andy Huang, Nick Knight, M/M. Com cenografia de Chiara Stephenson, o septeto de flauta Viibra, clarinetistas, harpista, percurssão, electrónica e vários instrumentos personalizados implementados no design de palco de som surround inovador, existe ainda a inclusão de uma câmara de reverberação personalizada, tornando esta uma das produções mais inovadoras da artista.
A dimensão dessa câmara de reverberação é magnificamente demonstrada no final de “Ovule”, já depois “The Gate, “Utopia” e “Arisen My Senses”. Nesse momento, Björk aí se deslocou para o acapella de “Show Me Forgiveness”. A tradução das suas singulares dinâmicas vocais, da sua interpretação intensamente física, usando musicalmente a própria respiração, foi deslumbrante. Aliás, desde as primeiras notas de “The Gate”, a primeira canção da noite, que o som está deslumbrante. E se quisermos recuar ao segmento de abertura do Hamrahlid Choir e, antes disso, aos sons naturais que suavemente nos circundavam, a sensação de imersão no espectáculo é ainda mais ampla. Mais que um concerto, estivemos dentro de uma instalação audiovisual. Num sonho lisérgico, conduzidos pela visceralidade xamânica da voz de Björk.
RENAISSANCE
Em “Isobel”, transvestida nos arranjos, a cantora sobe finalmente à boca de palco. Foi a canção mais vetusta do cancioneiro da islandesa a ser interpretada em Lisboa. As suas melodias vocais praticamente intactas soaram com o calor familiar de sempre, mesmo dentro de outra estrutura harmónica e rítmica. E talvez tenha soado como nunca, a estes ouvidos, pelo menos, tão de Björk, como se tivesse renascido a meio dos híbridos fúngicos desta utopia sónica. E no final, sabe sempre bem, ouviu-se o primeiro “obrigado” daquela cândida voz de elfo.
A fusão de sons sintéticos e naturais torna-se mais evidente em “Blissing Me”, com a digitalização da percussão rudimentar e as cascatas de harpa. Desde “Vespertine” que Björk vem descurando o sentido pop dos seus trabalhos, optando por explorar a origem da matéria e dos sistemas astrofísicos. Para enfatizar estes temas de uma forma fresca, as novas harmonias corais pretendem espelhar o milagre da vida inteligente que emerge dos compostos orgânicos. É o que se ouve e vê e sente espelhado em duas estreias ao vivo, “Victimhood” e “Fossora”: a profusão de cores audiovisuais numa explosão de fantasia onírica.
É difícil determinar se os sopros são disparados ou executados (como tantos outros elementos instrumentais), mas a importância dessa questão é muito relativa diante do elemento central deste espectáculo: a voz de Björk! Esta criança velha, um bocado feral, ser dos bosques islandeses que decidiu descer à cidade, atraída pelas luzes e pelo pulsar, mas também decidida a vir partilhar de sabedoria antiga, de lições da terra e do fogo cujo segundo capítulo é encerrado com “Atopos”.
O AMOR
O segmento dedicado à tremenda força do amor inicia com “Body Memory”. Esta arrebaradora reflexão de como o corpo, a matéria, tem resiliência ao trauma que a mente e o coração não possuem. Que o amor é um dínamo físico, além de poético. Pragmático, além de nefelibata. A vontade férrea de existir, de respirar, copular, estar e ser.
Depois do seu preâmbulo ao concerto, o Hamrahlid Choir juntou-se à interpretação de Björk. O coro é composto maioritariamente por alunos do Hamrahlid College, instituição de ensino secundário que foi frequentada por Björk, tendo sido fundado em 1982 por Þorgerður Ingólfsdóttir, que permanece como o seu maestro, ainda que não tenha estado presente nessa noite de Lisboa. O Hamrahlid Choir faz eco e harmonia da cantora principal na versão acapella de “Hidden Place”, assumindo as melodias da sintetização do tema de “Vespertine”, e de “Mouth’s Cradle”, que retoma as raízes da música com uma percussão visceral e culturalmente transversal.
Sucedem-se “Features Creatures” e “Courtship” e acaba por ser redundante referir o contínuo deslumbramento ao longo do alinhamento do concerto, mas é necessário destacar aquele que foi o pináculo emocional do espectáculo. Ecoa o xilofone (ou semelhante), harmonizado com a harpa pejada de delay e “Pagan Poetry” é executada quase na sua forma original, ainda que muito reduzida. Talvez permaneça como a mais pungente das composições de Björk, excepto por um, com o qual é, precisamente entrançado, e a sua fusão com “Losss” cria uma radiância sónica arrasadora.
No núcleo de “cornucopia” somos colocados diante do poder primitivo do amor. Através da dor, da raiva, os contrastes de paixão, a energia do sexo e a liberdade da escolha pessoal.
O tema-chave de “Utopia” ressoa com maior poder neste concerto do que na sua versão de estúdio. Tal como em “Pagan Poetry” e “Body Memory”, somos colocados diante do poder primitivo do amor. Através da dor, da raiva, os contrastes de paixão, a energia do sexo e a liberdade da escolha pessoal. Segue-se “Sue Me”, afinal é por amar e por aquilo que amamos que se luta e se faz “Tabula Rasa”, tema que enquadra a mensagem da jovem activista ambiental Greta Thunberg:
«Estamos prestes a sacrificar a nossa civilização pela oportunidade de um número muito reduzido de pessoas continuar a ganhar quantias inimagináveis de dinheiro. A biosfera está a ser sacrificada para que os ricos de países como o meu possam viver no luxo. Mas é o sofrimento de muitos que paga os luxos de alguns. No ano de 2078, festejarei o meu 75º aniversário. Se tiver filhos, talvez eles passem o dia comigo. Talvez eles perguntem porque é que não fiz nada enquanto ainda havia tempo para agir. Dizes que amas os teus filhos acima de tudo e, no entanto, estás a roubar-lhes o futuro à frente dos seus olhos. Enquanto não começarmos a concentrar-nos no que é preciso fazer e não no que é politicamente possível, não há esperança. Não podemos resolver uma crise sem a tratarmos como uma crise…
E se as soluções dentro deste sistema são tão impossíveis de encontrar, então talvez devêssemos mudar o próprio sistema. Ignoraram-nos no passado e vão voltar a ignorar-nos. Esgotaram as desculpas e nós estamos a ficar sem tempo. Mas estou aqui para vos dizer que a mudança está a chegar, quer eles gostem ou não. O verdadeiro poder pertence ao povo».
ENCORE
O segmento final do concerto abre com “Notget”, de “Vulnicura”, a única viagem ao álbum do inferno pessoal de Björk. Um lamento ao que tanto queríamos e não conseguimos. A encerrar a noite vislumbramos “Future Forever”. Um par de temas onde se encapsula aquilo que foi a hora e meia anterior, uma profusão de crescendos emocionais e rítmicos, linhas melódicas hipnotizantes e explosões electrónicas; além duma das maiores características das composições da islandesa: o uso de estruturas rítmicas fora da usual chave em 4/4, sem prejudicar o sentido imediato de absorção das canções.
SETLIST
- The Gate
Utopia
Arisen My Senses
Ovule
Show Me Forgiveness
Isobel
Blissing Me
Victimhood
Fossora
Atopos
(Arpegggio)
Body Memory
Hidden Place
Mouth’s Cradle
Features Creatures
Courtship
Pagan Poetry
Losss
Sue Me
Tabula Rasa
Notget
Future Forever