Bob Dylan, Nashville no Campo Pequeno
2023-06-04, Campo Pequeno, LisboaPoucos clássicos e escondidos em arranjos tão diferentes quanto arrojados. Octogenário, Bob Dylan continua a ser tão intransigentemente fiel aos seus princípios e humores como quando chocou o Newport Folk Festival, em 1965. A passagem da Rough and Rowdy Ways World Wide Tour em Lisboa pode não ter sido exactamente triunfal, mas foi absolutamente visceral.
N.R:Não foi permitido fotografar o concerto.
Ao fim 82 anos, cumpridos em Maio passado, e bem mais de meio século de carreira, Bob Dylan tornou-se um dos mais prolíficos e aclamados contribuidores do cancioneiro popular norte-americano e, por inerência da influência desse cancioneiro em todas as latitudes, um dos maiores nomes na história da música. Tão valioso é o seu espólio musical que, há cerca de um ano, os masters do seu catálogo foram vendidos num negócio multi-milionário. Tão culturalmente elevada é a sua obra que foi receptáculo do Nobel da Literatura.
Tudo isto foi deixado de fora das portas do Campo Pequeno, num concerto em que Dylan (como já se esperava) abdicou dos seus maiores marcos no folk rock e, num ambiente que procurava transmitir intimidade e reproduzir uma qualquer pequena sala de Nashville, se focou naquele que foi o seu primeiro álbum de canções originais em oito anos, “Rough And Rowdy Ways” (2020). Tenha um artista o estatuto que tiver, essa nunca é uma opção popular. Mas se a multidão que encheu a Praça lisboeta se sentiu melindrada, não o mostrou.
A isso não será alheio que “Rough And Rowdy Ways” seja o álbum mais aclamado pelos media e pelos fãs em muitos, muitos anos. Que se trate de um álbum que ressoe a evolução artística do bardo eléctrico e ainda muitos dos períodos da sua extensa discografia, como o bom disco de ’97, “Time Out Of Mind”, ou o eclético clássico de ’75, “Blood On The Tracks”. Depois, a contextualização ambiental da produção de palco assentou como uma luva na toada contemplativa de “Rough And Rowdy Ways”, na exploração de temas existencialistas como a finitude humana e a passagem do tempo.
E, como o tempo não espera por ninguém, tudo sucedeu de asinha. A subtileza com que a banda surgiu em palco e iniciou prontamente “Watching The River Flow” – numa abordagem muito menos espartana que a versão original e o mesmo poderia dizer-se de “Most Likely You’ll Go Your Way And I’ll Go Mine”, quase irreconhecível para os têm gravada a versão registada em “Blonde On Blonde”. Isto sucederia ao longo de todo o concerto e há sempre dois lados da navalha: por um lado, muita coisa passa ao lado, por outro, houve muito espaço para o improviso e para a exploração de novas dinâmicas; saberia bem ter-se celebrado um pouco mais o tremendo legado de Dylan, ao mesmo tempo é louvável que um titã desta dimensão não se remeta ao conforto de repisar o passado.
Jerry Pentecoust (bateria) e Tony Garnier (veterano baixista de Dylan) foram sumptuosos. Mother of Muses foi arrebatadora!
Infelizmente (e esta perspectiva é determinada pelo lugar de onde vimos o concerto), o som demorou muito a sentir-se equilibrado. Assim, a primeira meia-hora do espectáculo foi bastante prejudicada por algum descontrolo nos médios e por desequilíbrios na mistura. Por exemplo, as pianadas de Dylan – ao centro do palco, ora sentado, ora em pé – abafavam completamente os pratos e ouviam-se em conflito com as guitarras. Quanto ao lendário músico, revelou uma mão direita bastante interessante, com bom ataque nas notas e pertinência na sua colocação, e refugiou-se mais no uso da mão esquerda, usando de acordes simples (de oitavas ou tónica e quinta, assim nos pareceu). De qualquer forma, com a sumptuosa exibição de Jerry Pentecoust, atrás de um drum kit Sonor, e de Tony Garnier, o baixista que o acompanha desde ’89, Dylan quase nem necessitava de usar a mão rítmica, por assim dizer…
As guitarras de Bob Britt (que performance!), Doug Lancio e de Donnie Herron (principalmente na lap steel e indo ainda ao bandolim ou ao violino) soaram viscerais. Com poucos efeitos e o intenso twang e brilho de amps Tweed da Fender que, à distância, não podemos discernir se modelos Blues Junior ou Twin, e ainda um Blackface atrás de Herron, um Deluxe ou Twin Reverb. Andaríamos já por meio do concerto, em “Crossing The Rubicon” quando a harmonização da mistura chegou, criando espaço a que toda a banda respirasse e emergissem as extraordinárias dinâmicas entre os músicos. E valeu bem a pena a espera, caramba!
Pujante noutras ocasiões, a acústica do Campo Pequeno não esteve à altura do que o concerto exigia…
É certo que a pouca ortodoxia nos arranjos descaracteriza muitas das canções, mas a voz de Dylan esteve à altura do desafio que esta estética bastante crua impõe. O inevitável envelhecimento das suas cordas vocais até acaba por emprestar um carácter de sabedoria venerável a malhas como “Key West (Philosopher Pirate)” ou “Mother Of Muses” (a melhor malha da noite). Pouco dado a manifestações de efusivo espalhafato, ouviram-se uns ocasionais «obrigado» de Bob Dylan e, já perto do final, foi quase expansivo a apresentar a banda. Os aplausos foram imensos, tal como em “Not Fade Away”, malha que Buddy Holly escreveu para os Crickets em ’57 e, por momentos, recordou-nos que, por mais que a toada tenha sido country/blues, o pilar era o rock ‘n’ roll.
Bom, temos dito que os clássicos não se sentiram no máximo da sua força, mas “Every Grain Of Sand” encerrou a noite com chave de ouro. Rearranjado de forma sublime, com maior densidade textural, fazendo ecoar com maior potência a sua reflexão sobre os paradoxos da sociedade que, desde 1981, se tornaram ainda mais acentuados: «To see a world in a grain of sand / And a heaven in a wild flower / Hold infinity in the palm of your hand / And eternity in an hour».
[Nota: Houve alguma agitação nas redes sociais a respeito da obstrução ao uso de telefones durante o evento. Da nossa parte, foi uma benção apreciar um concerto sem levar com os ecrãs de Samsungs, Apples e Xiomis na tromba]
SETLIST
- Watching the River Flow
Most Likely You Go Your Way and I’ll Go Mine
I Contain Multitudes
False Prophet
When I Paint My Masterpiece
Black Rider
My Own Version of You
I’ll Be Your Baby Tonight
Crossing the Rubicon
To Be Alone With You
Key West (Philosopher Pirate)
Gotta Serve Somebody
I’ve Made Up My Mind to Give Myself to You
Not Fade Away
Mother of Muses
Goodbye Jimmy Reed
Every Grain of Sand