Fausto, Grande e Longa É A Viagem
2018-10-26, Centro Cultural de Belém, LisboaFausto Bordalo Dias subiu ao palco do grande auditório do CCB para nos levar pela mão, na sua longa longa jornada musical pela diáspora que os portugueses efectuaram pelo mundo a partir do séc. XX.
Construindo o concerto com base na trilogia de discos em que musicou os descobrimentos, o mítico “Por este Rio Acima”, “Crónicas da Terra Ardente” e “Em Busca das Montanhas Azuis”, Fausto traz ao palco uma narrativa que é, simultaneamente, a de um certo grupo de portugueses que encontrou a fortuna e a tragédia ao longo dos séculos e a nossa história enquanto nação, conquanto ela é, até hoje, inseparável do facto de um dia este pequeno reino encravado à beira mar ter decidido navegar, comerciar, namorar, guerrear e evangelizar-se com outros povos e gentes.
É O MAR QUE NOS CHAMA
A narrativa é também a narrativa do próprio Fausto, já que estes três discos foram lançados ao longo das nossas três décadas de democracia, as três décadas do pós império e do pós colonialismo, a década da ressaca das grandes aventuras, dos grandes crimes e das grandes vidas. Após séculos de deriva e errância, de uma expansão que sempre foi uma bolha frágil pronta a explodir ou a contrair-se a qualquer momento, Portugal voltou a ser o pequeno torrão da costa atlântica da Europa. Reaprendermos a ser, outra vez, parte desta matriz geográfica sem nunca nos termos esquecido do perfume do exótico que ganhamos em outras terras.
Fausto melhor que ninguém saberá disto pois ele é próprio é um daqueles portugueses de matriz africana, nascido de forma quase profética a bordo da Pátria, a meio caminho entra a metrópole e os territórios ultramarinos. Sem navegar não há império e sem império não há Fausto. E no escurecer dos dias do mundo, temos no CCB o sítio mais apropriado para onde desaguam todas as águas deste devir histórico, nesse grande bunker do “cavaquistão”, símbolo do novo renascer europeu a que a nação se deu no desejo de ser, talvez primeira vez, um membro de pleno direito do Velho Continente, um espaço mais bonito e quente por dentro do que por fora, no seu grande auditório de muito espaço, e muita madeira, como o convés de uma nau.
Ao lado da grande praça sonhada e idealizada por quem viu a diáspora como um grande épico de grandeza, pleno de fé, bravura e destino marcado, ingénua na sua fonte de luzes cravejada de brasões e na sua nau padrão, povoada de gente estatutária de pedra e mito, muito pouco semelhantes aos navegadores e exploradores profundamente humanos e de carne e osso e luxúria e sexo e fome que Fausto retrata nas suas canções. Ao lado dos Jerónimos e da Torre de Belém, símbolo máximo da nossa partida e do nosso eterno retorno.
O cantor vem igual a si próprio, mas nota-se já a passagem dos anos: a voz tem já uma certa secura, não vem com o mesmo mel que antes deslizava das sílabas.
POR ESTE RIO ACIMA
Tendo como fundo “É O Mar Que Nos Chama”, Fausto vem acompanhado dos seus músicos de eleição e banda está bem rodada. Fausto é o tipo de músico que pode (e se calhar deve) optar entre espectáculos só de guitarra e voz, em que o lado mais intimista e poético das suas composições sobressaia, e estes manjares auditivos, em que as percussões e os coros são fundamentais. Qualquer um dos três álbuns da trilogia tem como matriz musical de fundo os ritmos tradicionais portugueses, os viras e as chulas, acordeões e braguesas e adufes, polvilhados de temperos africanos ou brasileiros. Tem de haver bom músculo musical para segurar isto em palco e o septeto que acompanha Fausto não desilude. O próprio vem igual a si próprio, mas nota-se já a passagem dos anos: a voz tem já uma certa secura, não vem com o mesmo mel que antes deslizava das sílabas. E uma vez que o concerto faz uma progressão cronológica, é nas primeiras músicas que se calhar se torna mais inevitável fazer-se uma comparação mental entre este Fausto que ouvimos e aquele que escutamos, tanta e tanta vez, em disco.
Começa-se assim com as músicas de “Por este Rio Acima”. E se do ponto de vista conceptual do concerto isto faz todo o sentido, pois este é o álbum baseado na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e retrata o início das nossas andanças pelos mares e pela Índia, em termos de fluência musical há aqui algo de anti-climático, uma vez que estas músicas são os grandes êxitos do autor. Um cantor mais preocupado com estas coisas de popularidade e de dar ao público o que ele quer teria provavelmente encaixado “O Barco Vai de Saída” ou “A Voar Por Cima das Águas” no final, mas a preocupação de Fausto é com a coerência temática e a construção da sua trilogia reflecte o próprio percurso anti-climático que viagem lusa sofreu, da euforia da pimenta ao travo amargo de malas e caixotes na Rocha de Conde de Óbidos.
As duas primeiras músicas cumprem quase nota por nota os originais, “A Guerra É A Guerra” surge mais despojada e, como tal, perde algo da sua força. Talvez só funcione realmente com um grande coro de vozes para emular aquele efeito de chamada e resposta. “Porque Não Me Vês” baixa a tonalidade e traz a primeira dimensão intimista ao concerto. Curiosamente, é neste registo que a coisa melhor funciona, o palco parece tornar-se maior e puxar mais a sala para si quando a músicas são mais íntimas. “Lembra-me um Sonho Lindo” é o grande trunfo de “Por Este Rio Acima”, o drone hipnótico e psicadélico que dá o mote para a segunda parte.
A interpretação com a força coral de “Na Ponta Do Cabo” foi o melhor momento da noite, soando mais bruta em relação à açucarada produção original do álbum.
VIEMOS NASCIDOS DO MAR
“Ao Som do Vento e do Mar” ainda é a navegação aventureira e esperançosa, no seu Carnaval da vida que acompanha a nau de regresso à casa amada. “À Deriva em Porto Rico”, que é um gozo de letra repleta de segundo e terceiro sentidos de intoxicação caribenha, perde-se um pouco num som que faz perder as nuances da dicção em função do ritmo do acordeão. “Todo Este Céu” torna novamente o espaço mais íntimo, e volta a reforçar a impressão que é o Fausto despojado aquele que mais fará sentido daqui para a frente.
O melhor momento do concerto vem com os músicos todos à boca de cena, um único microfone, baquetas e bombos e vozes. “Na Ponta do Cabo”, na ponta do palco, aqui eles que poderiam ser os marinheiros que evocam nas canções. Tudo surge mais rude, mais primevo, menos teatral do em álbum; marinheiros a cantar no convés da nau para se aquecerem no frio da noite e do mar sem fim. Pede-se todo um musical assim.
Na recta final entra-se em África, no interior de África, quando após vários séculos se começa a deixar os mares e as costas e se penetra na imensidão do continente da origem. O contraste da surpresa entre os nativos que vem vêem surgir estranhas criaturas flutuantes e os marinheiros que vêem estranha fauna e flora. “Velas e Navios Sobre as Águas” e “Viemos Nascidos do Mar”, uma mais tradicional e portuguesa, a outra mais africana, mais gingada, com uma guitarra quase Vampire Weekend. “Nos Palmares das Baías” e “À Luz da Mais Frágil das Auroras” vem a estranha infusão de erotismo e subjugação, a peculiar relação portuguesa com as populações nativas, com as quais a história colonialista relata que nos “misturamos”, eufemismo simpático para escravatura e violação.
A obra de Fausto nunca foge ao grande custo que a nossa “epopeia” trouxe ao negro. E aqui o negro é sempre o outro não branco e não cristão. E é na toada quase rocker de “Por Altas Serras e Montanhas” que se encerra a diáspora e o corpo da trilogia do concerto. Depois disto já não haveria exploração e epopeia, apenas a construção das futuras nações retalhadas no manto de África, e o lento pôr-do-sol do Império, que é bonito enquanto se contempla, mas que cedo dá lugar à noite e à incerteza.
LUSITANA
No encore temos a nação que no fim de tanta viagem regressa, nas palavras do próprio Fausto, à matriz greco-romana. “Europa, Querida Europa” é de “Para lá das Cordilheiras”, álbum de ’87, um ano a seguir ao da nossa integração na CEE. Os portugueses regressam a casa trazendo as sardinhas e os tambores, mas voltam transformados pois nunca serão os mesmos que em tempos partiram da finisterra da querida Europa. Mais palmas e mais encores e temos “Foi por Ela” uma quase bossa nova, choradinho de nação que se mudou para viver com a nova amada, mas que ainda sente o restinho do calor que deixou para trás. Último encore e “Lusitana”. Na última etapa da viagem, a barca dos navegantes e dos poetas, olha para si própria. Na soma de todas as suas múltiplas identidades e na originalidade que isso proporciona.
Fausto Bordalo Dias sempre sobre olhar para a história, para a nação, para os portugueses, e para si próprio sem lentes cor-de-rosa ou complacências, mas também sem o criticismo masoquista no qual tantas vezes as vozes da Lusitana se perdem. E nesta viagem em palco o reencontro é, sem surpresa, connosco próprios.