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Jethro Tull no Coliseu dos Recreios, A Flauta é a Lei

Jethro Tull no Coliseu dos Recreios, A Flauta é a Lei

2024-03-06, Coliseu dos Recreios, Lisboa
Rodrigo Baptista
Inês Barrau
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Sem o fulgor vocal de outros tempos, mas com uma prestação irrepreensível na flauta transversal, Ian Anderson e os seus Jethro Tull regressaram a Portugal para mais uma noite de exaltação do rock progressivo. “RökFlöte”, o mais recente álbum da banda, editado em 2023, foi o mote, mas não se sobrepôs a um alinhamento que percorreu todas as décadas de uma carreira que se aproxima dos 60 anos.

Com 76 anos, Ian Anderson podia muito bem estar refastelado na sua casa de campo em Inglaterra a escrever um livro de memórias, a tocar a sua flauta nos pastos verdejantes e a gerir as várias efemérides da extensa discografia dos Jethro Tull com lançamentos comemorativos. Porém, muitos dirão que isso é coisa de “velho”, e se há algo que Anderson não demonstra em palco é sinal de tamanha velhice. Fisicamente, e tirando alguma debilidade na sua voz, o músico ainda se mostra extramente ágil, e sempre que se sente inspirado ainda faz o seu número característico de alçar, e baloiçar, a perna esquerda. Por sua vez, em termos cognitivos, Anderson apresenta-se como um excelente contador de histórias, algo que ficou comprovado através do discurso elaborado e descritivo que utilizou para apresentar as diferentes músicas do alinhamento.

O pretexto deste regresso a Portugal dos Jethro Tull, passados apenas dois anos desde a sua última passagem por terras nacionais, foi o seu mais recente álbum de estúdio “RökFlöte”, um trabalho cuja temática principal gira à volta da mitologia e do paganismo nórdico, e que surge como o 23º LP de uma discografia que começou em 1968 com “This Was”. Porém, “RökFlöte” não foi o protagonista da noite. Com um catálogo deveras extenso, Ian Anderson optou por dar primazia a um alinhamento que percorreu todas as décadas de carreira dos Jethro Tull. É certo que num concerto de cerca de 1h e 45m muitos clássicos vão ficar de fora, mas também é certo que esta é a forma mais democrática de escolher um alinhamento e de dar aos fãs um pouco de todas as fases da carreira da banda.

É certo que num espectáculo de cerca de 1h e 45m muitos clássicos vão ficar de fora, mas também é certo que esta é a forma mais democrática de escolher um alinhamento e de dar aos fãs um pouco de todas as fases da carreira da banda.

Com as luzes já em meia intensidade, eis que surgiu um aviso de que o público não poderia tirar fotografias, nem captar vídeos durante o concerto, pois estes poderiam perturbar a performance de Ian Anderson. A chamada de atenção terminou com o levantamento da “proibição” no encore do espectáculo.

Terminado o aviso, apagaram-se as luzes e, um a um, o baixista David Goodier, o teclista John O’Hara, o baterista Scott Hammond e o guitarrista Jack Clark, ocuparam as suas posições até que Ian Aderson surgiu a esvoaçar com a sua flauta em punho perante um coro de aplausos efusivo.

“Cross-Eyed Mary” a primeira passagem pelo clássico “Aqualung” (1971), foi a escolhida para abrir a noite. O som estava impecável, as dinâmicas totalmente perceptíveis, a execução instrumental também ela perfeita, todavia, as primeiras notas entoadas por Ian Anderson mostraram que é na voz que o músico já demonstra alguns sinais do tempo, com o músico a demonstrar uma certa dificuldade em manter a afinação e a coerência melódica. Ainda assim, Anderson não se deixa vencer e adapta o seu registo a uma técnica que articula o canto com o spoken word, algo que combina na perfeição com a sua postura de contador de histórias. Seguiu-se “We Used to Know”, do álbum “Stand Up” (1969), um tema que Anderson dedicou, em jeito de brincadeira, aos Eagles, pois faz uso dos mesmos acordes do clássico “Hotel California”. «A música deles é melhor que a nossa», disse Ian num tom jocoso. Mais à frente, no solo da música, o guitarrista Jack Clark juntou-se à brincadeira ao incorporar a melodia harmonizada por Don Felder e Joe Walsh no solo da faixa lançada em 1977.

“Heavy Horses” e “Weathercock” de “Heavy Horses” (1978) trouxeram-nos os ares campestres de Inglaterra, a primeira com a sua melodia pastoril e a segunda com uma melodia com contornos medievais. Projeções de cavalos a correr pelos campos e um cata-vento com um galo no topo, que Anderson afirma ter no telhado na sua casa, foram as imagens escolhidas para dar ainda mais cor a duas malhas que remetem para o período em que os Jethro Tull privilegiaram a sonoridade folk rock.

“Roots to Branches” editada em 1995 no álbum com o mesmo nome demonstrou a qualidade do material presente nos álbuns que não foram lançados na “época dourada” dos Tull. As suas melodias arabescas e riffs possantes resultam numa moldura sonora de proporções épica e ao vivo a malha ainda transmite uma maior imponência sónica. Seguiu-se o tema instrumental “Holly Herald” do “The Jethro Tull Christmas Album” soando algo deslocado e despropositado. Não é a sua qualidade que está em causa, mas afinal de contas quem é que quer ouvir músicas de natal em Março?

“Wolf Unchained” foi a primeira visita a “RökFlöte”. Com uma sonoridade mais agressiva e sombria, a faixa, que se encontra estruturada em torno de um leitmotiv que se desdobra em várias secções solísticas, demonstrou que tem estofo para se manter nos alinhamentos da banda.

“Wolf Unchained” foi a primeira visita a “RökFlöte”. Com uma sonoridade mais agressiva e sombria, a faixa, que se encontra estruturada em torno de um leitmotiv que se desdobra em várias secções solísticas, demonstrou que tem estofo para se manter nos alinhamentos da banda. “Mine Is The Mountain” de “The Zealot Gene” (2022) manteve o concerto nos dois últimos álbuns de Tull. Com alguns elementos a puxar para o gótico, Ian Anderson faz uso da sua técnica de spoken word e de falseto para dar um carácter assustador ao tema. A tradicional versão do “Bourrée in E minor” de Johan Sebastian Bach deu destaque à capacidade técnica do baixista David Goodier e foi a escolhida para terminar a primeira parte do concerto.

Após um breve intervalo de 15 minutos, para os fãs, segundo sugestão de Ian Anderson, irem comprar merchandise, a banda regressou a palco para arrancar a segunda parte com “Farm on the Freeway”, a única visita ao repertório dos anos 80 dos Jethro Tull. Seguiu-se “The Navigators”, a segunda e última passagem pela novidade “RökFlöte”, cuja progressão rítmica ilustra as tormentas que os navegadores enfrentam quando entram pelo mar adentro. Por sua vez, o ritmo algo “afunkalhado” em articulação com as melodias escocesas de “Warm Sporran” colocaram vários dos presentes a dar ao pezinho e a balançar na cadeira.

A capacidade que os Jethro Tull têm para produzir músicas com uma sonoridade alegre a partir de temáticas trágicas e inquietantes é deveras interessante, mas também algo mórbido. “Mrs Tibbets”, um tema que faz referência à mãe de Paul Tibbets, o piloto do Enola Gay que lançou a bomba atómica sobre Hiroshima em 1945 e “Dark Ages” que, segundo Ian Anderson, aborda o fim do mundo, foram tocadas de rajada e ilustraram na perfeição essa dicotomia.

O fim estava à vista, mas ainda faltava o tema que apresentou os Jethro Tull a muitos fãs. “Aquadiddley” fez a ponte para “Aqualung”, esse malhão com um riff tão sabbathiano quanto proggy que se desenrolou em várias secções solísticas que colocaram Jack Clark à prova. Podemos sim dizer que o lugar, que durante várias décadas pertenceu a Martin Barre, está muito bem entregue a Clark, um guitarrista que, apesar de ser proveniente da escola metal, respeita a tradição como mandam as regras. Já com as luzes apagadas a banda saiu do palco para o encore. Na tela gigante, onde durante todo o concerto foram projectadas as imagens que acompanharam os temas do alinhamento, eis que surgiu a tão esperada indicação de que aquele era momento para os fãs tirarem os telemóveis para poderem levar para a posteridade uma pequena recordação daquela noite mágica. E assim foi com “Locomotive Breath”, que encerrou o concerto da mesma forma como este tinha começado, com “Aqualung” a ser levado em braços e celebrado como a grande obra-prima dos Jethro Tull

SETLIST

  • Cross-Eyed Mary
  • We Used to Know
  • Heavy Horses
  • Weathercock
  • Roots to Branches
  • Holly Herald
  • Wolf Unchained
  • Mine Is the Mountain
  • Bourrée in E minor
  • Farm on the Freeway
  • The Navigators
  • Warm Sporran
  • Mrs Tibbets
  • Dark Ages
  • Aquadiddley
  • Aqualung