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Maria Bethânia no Porto: «Hoje eu canto muito mais»

Maria Bethânia no Porto: «Hoje eu canto muito mais»

2023-06-28, Super Bock Arena
Carlos Garcia
Felipe Garcia (Música do Coração)
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Maria Bethânia esteve em Portugal para dois concertos, um no Porto e outro nos Jardins do Marquês – Oeiras Valley. Arte Sonora assistiu ao concerto dado na Super Bock Arena no passado dia 28 de Junho.

Foto de entrada: Felipe Garcia – Música no Coração

Dizer que Maria Bethânia é um ícone da música popular Brasileira só não se torna um cliché abusado até à exaustão porque se pegarmos na definição de ícone do dicionário Priberam da língua portuguesa: «Signo que tem uma relação de semelhança com aquilo que está a representar», constatamos que Bethânia ao longo do seu percurso de seis décadas adquiriu um corpo simbólico para o qual convergem toda a disparidade de elementos que compõem a imagética simbólica do seu país. Os traços mestiços (e a mestiçagem é talvez o elemento que mais define a essência do Brasil, mestiçagem étnica mas também linguística, religiosa, culinária e obviamente musical); a silhueta de longos cabelos crespos agora cinzentos, saia comprida, pés descalços (evocando as muitas nossas senhoras que de caravela aportaram à Bahia, sincretizando-se com Orixás de Angola e Rainhas das matas), o gosto pela língua e pela clara enunciação das sílabas; a origem Nordestina; a caminhada pelas várias décadas de picos e vales que compõem a história recente do Brasil. Tudo isto unido e fundido num corpo e numa voz que chegam a parecer meta humanos, não porque sejam sobrenaturais, mas porque uma entidade maior que o bilhete de identidade baixou naquela figura.

É, portanto esta a Bethânia que aportou mais uma vez a Portugal (quiçá a última), consolidada entre o Rio e a Bahia. Subiu ao palco de uma Arena que carrega agora apelido de marca de cerveja, onde antes havia pavilhão de maratonista e ainda antes palácio de cristal. Veio acompanhada de uma trupe de músicos onde a percussão e o acústico tomam destaque. E desaguou nestas costas na ressaca de um dos períodos mais conturbados da história brasileira. Bethânia iniciou a sua carreira na canção de protesto e, como acontece hoje em dia a tantos que lutaram na sua juventude pela liberdade, tem a responsabilidade de no seu ocaso ainda ter de pegar na mesma tocha, e continuar a iluminar o mesmo trilho.

Subiu ao palco com “Gema”, que apesar de estar terceira pessoa poderia ser sobre ela própria, e seguiu com “Um Índio”, a sua versão mais declamada e teatral da música sci-fi indígena do irmão Caetano, intercalando o tom de esperança profética da letra original, com os números frios e brutos da escalada de destruição da Amazónia sob o governo do capitãozinho truculento cujo nome não será aqui mencionado. “Salve as Folhas” é então apropriado para dar a seguimento à voz da selva e de quem nela vive e de quem dela depende e por isso a protege.

“Galos, Noites e Quintais” é uma composição do falecido Belchior, onde Bethânia entoa que “hoje eu canto muito mais“, e ouvindo o clássico “Fera Ferida” não posso deixar de concordar: com 77 anos a voz não perdeu a potência, mas ganhou um corpo que antes não possuía

“Sangrando”, “Onde estará o meu Amor”, e “Gostoso Demais” aparecem como uma espécie de trilogia da Bethânia romântica, mudando a toada para o mundo dos relacionamentos. Aqui a cantora e os músicos baixam o tom para um fraseado mais intimista e subtil. “Galos, Noites e Quintais” é uma composição do falecido Belchior, onde Bethânia entoa que “hoje eu canto muito mais“, e ouvindo o clássico “Fera Ferida” não posso deixar de concordar: com 77 anos a voz não perdeu a potência, mas ganhou um corpo que antes não possuía (acobreou-se diria Caetano) e é em composições mais antigas que a comparação pode ser feita. E falando em clássicos, vindo diretamente do rock brasileiro dos anos sessenta “Vem Quente que eu estou Fervendo” mostra a Bethânia mais gingona e provocante. Ao fundo a sua foto ao colo de Erasmos Carlos (já antes Gal Costa tinha surgido in memoriam).

Com “Feita na Bahia” voltamos à casa mãe, mais concretamente ao terreiro de Oxum: Bethânia é uma devota do Candomblé, celebrando frequentemente essa devoção nas suas músicas. As religiões de matriz africana são, como o seu nome indica, o conjunto de cultos que foram desterrados de África e trazidos nos corpos e mentes dos povos escravizados nos porões dos navios. “Yáyá Massemba” relata essas longas e terriveis travessias em jeito de celebração: o negro renasce nesse útero de porão transatlântico e é parido na Bahia de todos os santos e orixás. “Mulheres do Brasil” é um samba de celebração de toda a gama de rostos femininos que compõem a paisagem do país, aquelas que capitães, coronéis, e pastores insistem em rematar para serem belas, recatadas e do lar, mas que insistem teimosamente em serem atletas, engenheiras e professoras. Às vezes até mesmo chegar a Chefe de Estado, pasme-se a ousadia.

“Balada de Gisberta”, composição do portuense Pedro Abrunhosa, tem aqui mais peso uma vez que foi a apenas alguns quarteirões que foi assassinada uma mulher pelo crime de não querer viver na pele que o mundo lhe quis colar.

A “Cálice” de Chico Buarque (que também por cá passou recentemente), a metáfora de Cristo em Getsêmani para disfarçar a crítica à ditadura militar, e “Negue” (ambos do álbum Álibi), juntou-se “Volta por Cima” numa espécie de trilogia da Bethânia dos anos setenta. Este crescendo de canções mais acarinhadas pelo tempo com o aumento de ritmo começou a arrancar o público das cadeiras, primeiro mais timidamente nas filas da frente, e depois da porta escancarada, porque onde mija um português ou brasileiro mijam dois ou três e os rabos já deviam doer de estar sentados, o povo convergiu para a boca de cena.

“Purificar o Subaé” é mais um pérola do mano Caetano e abriu caminho para os dois medleys finais: “Santo Amaro Ê Ê/Quixabeira/ Reconvexo/ Minha Senhora/Viola, Meu Bem” e “A-la-la-ô/Chiquita Bacana/Chuva Suor e Cerveja”. Muita dança ao ritmo do samba e impressiona como todos estes temas se fundem num único arranjo formando uma unidade que não perde a especificidade das suas partes. A percussionista Lan Lanh pôde brilhar plenamente neste crescendo rítmico. Pelo meio tivemos “Meu Amor é Marinheiro” na poesia de Manuel Alegre.

O final em grande veio do grande mestre Gonzaguinha e aquela que facilmente poderia ser o hino do Brasil “O que é, o que é” para levantar de vez a sala. Estas digressões podem ser a última vez que vamos ver os grandes nomes da MBP ao vivo e a cores: foi uma geração que marcou um período irrepetível, e no caso de alguém como Bethânia, em que força e a voz continuam lá, o descerrar da cortina é tão potente, irreverente e criativo como foi a abertura.