MONTE VERDE’17: Chuva de guitarras em Ribeira Grande
2017-08-13, Festival Monte Verde, Ribeira GrandeE no dia de encerramento, o Monte Verde presenteou-nos com um clima mais, por assim dizer…..insular. As nuvens que se formaram no horizonte ao fim da tarde prenunciavam uma borrasca daquelas apocalípticas, mas no final teve-se apenas direito a um chuvisco. Chuvisco e muitas guitarras, já que este foi dia em que o rock ganhou mais preponderância. Aliás foi notório ao longo da noite que, em relação ao dia anterior, as indumentárias haviam-se tornado mais escuras e a faixa etária mais avançada.
Completando a trilogia de artistas locais com a ingrata tarefa de tocar para um recinto ainda praticamente vazio, os Tio tiveram como primeira missão criar a harmonia vibratória para dissipar a chuva do recinto. Projecto pessoal de Nuno Mendes, mas que o próprio define como flutuante e aberto, apresentou-se aqui em versão trio de guitarra, baixo e bateria. Citando o grunge como influência, a banda Açoriana partilhará com Seattle, para além do tempo chuvoso, uma certa característica de som roufenha, com predominância dos graves e de um eco low fi nos instrumentos. Música que tem tanto de explosiva como de experimental, como se o som estivesse sempre na eminência de resvalar para o noise, mas no último momento conseguisse manter o pé do lado da harmonia. Como se a qualquer momento viesse uma aí uma explosão de energia agressiva, um momento musical mais visceral, mas a banda elástica invisível que parece controlar a pulsão dos instrumentos repõe a homeostase e mantém o som na mesma toada tensa. Neste aspecto pode-se dizer que a banda pratica uma espécie de hardcore contido, introspectivo. Os Tio estiveram assim em perfeita consonância com a meteorologia. Nuvens negras que não chegam realmente a dar lugar à tempestade. Há aqui ecos dos primeiros Nirvana, de Sebadoh, de Morphine. Num concerto em que praticamente todo o repertório foi cantado em Inglês, a última música “Sopa de Agrião” soou imediatamente a single. Mais que não seja porque raramente esse elemento tão vital da nossa gastronomia aparece representado em canções, especialmente neste espectro musical. Ainda não é tudo o que pode ser, mas está aqui um projecto que vale a pena ficar de olho.
“The Hills Have Eyes” é um clássico do cinema de terror dos anos 70, no qual um bando de canibais mutantes persegue uma família de turistas. Os setubalenses com o mesmo nome não inspiram propriamente terror canibalístico. Navegado nas águas do MetalCore já puxam uma década de estrada e isso nota-se: banda sólida, já não são caloiros no seu género, e entraram com a força toda, prontos para aquecer a noite e o público. Provavelmente foi a banda que, não tendo nome sonante ou músicas de rádio, mais conseguiu, pela pura força de vontade, “puxar” o público para o seu lado. Isso e muitos riffs abrasivos. O vocalista, Fábio Baptista, navega bem entre o fraseado mais melódico à la Nu Metal, a aceleração Core e a pura guturalidade do metal. Aliás o movimento pendular entre o power e o Nu metal parece marcar o estilo do HHE. E resulta tanto melhor quanto o pêndulo pende para o metal puro e duro. De qualquer forma é hibridização de estilos que mais lhes confere uma identidade própria, e aqui nas ilhas souberam bem detonar as suas mudanças de velocidade.
Rinôçérôse provém da nova vaga de música de música electrónica francesa que tomou de assalto o mundo nos anos noventa. Daft Punk, St. Germain, Mirwais, Etienne de Crécy são alguns dos nomes que mais contribuíram para que a palavra dançável deixasse as fronteiras dos clubes e das festas especializadas, e se tornasse parte do domínio público. É curioso ver como até certa altura a electrónica era olhada com muita desconfiança, senão mesmo desdém, por parte dos puristas das guitarras. Para alguns a electrónica dançável nem sequer era propriamente música. O toque francês veio a estilhaçar esta barreira invisível, e de forma sub-reptícia a samplagem, os vocoders, os beats de 4/4 tornaram-se de tal forma parte do cenário mainstream que é como se sempre lá estivessem estado. Dançar já não era um pecado. No caso dos Rinôçérôse a conversão dos hereges era mais fácil uma vez que estes empregam as guitarras como elemento condutor. Foi assim natural que a banda se tenha apresentado no palco do Monte Verde em perfeita consonância tanto com as bandas de Rock que os rodearam, como com os Djs que preencheram o resto da noite.
Passados vintes sobre o lançamento de “Retrospective” ainda se pode fazer a pergunta: isto é uma banda de rock dançável, ou é música de dança com guitarras? A resposta será provavelmente ambas e nenhuma, pois os Rinôçérôse esquivam-se às catalogações demasiado estritas. Coexistem em várias gavetas ao mesmo tempo, e fazem tanto sentido a tocar numa galeria de arte como num festival de Verão. Com a banda imaculadamente vestida de branco a noite foi alternando entre os clássicos indiscutíveis da banda, praticamente todos em registo instrumental, e as músicas mais recentes às quais Brennan Green dos The Infadels deu o corpo e a voz. E a dicotomia fez-se sentir: apesar de mais antigas, músicas como “La Guitaristic House Organization”, “Cubicle” ou “Fucky Funky Music” soam mais originais e contemporâneas do que registos como o recente “Angels & Demons” ou “Fighting the Machines”. A incursão pela acústica de “323 secondes de silence répétitif sans guitare espagnole” é exactamente o tipo de bizarria que os Rinôçérôse fazem na perfeição. No todo a banda soube “cozer” os estilos e as músicas de períodos diferentes num todo relativamente homogéneo. A vitalidade já não é mesma de quando explodiram em cena. Mas a capacidade de criarem esta forma muito particular de house roqueiro dá aos Rinôçérôse uma identidade única no panorama musical. E ao vivo são mesmo muito dançáveis.
Os Wolfmother são um daqueles portais temporais de ligação aos anos setenta que existem espalhados pelo globo. O som do australiano Andrew Stockdale tem o condão de transportar quem o ouve para aquela época de ouro do psicadelismo sonoro. Se calhar esta não é a melhor banda para se falar de originalidade e inovação. De certa forma é como assistir a melhor banda tributo dos Led Zeppelin e Black Sabbath de todos os tempos. Porque sim, há aqui um mimetismo de um determinado som e de uma determinada época. Mas a verdade é que os Wolfmother não soaram a anacrónicos. Pelo contrário estiveram presentes e vitais. Se calhar porque aquela energia musical específica provém de um poço que ainda tem qualquer coisa para dar. Há sons que só num certo contexto fazem sentido e que muito rapidamente se tornam datados. E outros, que embora padeçam de associações a contextos igualmente específicos, tem qualquer coisa de mais eterno. Mais dissociado de modas e hypes. E esses não só podem como devem ser recuperados periodicamente. Há uma determinada alquimia de alma, mente e corpo que só se processa com este tipo de riffs, sujos e elaborados, e com o vibrato das vocalizações Plantianas. Talvez porque aqui os elementos mais rudes e puros das tradições branca e negra encontrem uma das suas melhores conjugações.
Seja como for, a verdade é que Os Wolfmother debitaram poder e energia a rodos. E foram o que se quis de uma grande máquina de rock e rolar: serem um enorme rolo compressor decibélico que arrasa tudo no seu caminho. Rock épico e sujo. A voz de Stockdale não desmerece nada ao vivo daquilo que soa no registo gravado. Do lado direito a energia maníaca de Ian Peres no baixo e no Korg. Atrás Hamish Rosser manteve uma toada poderosa na bateria ao longo de todo o concerto. “Apple Tree” é imensa, na sua alternância entre o punk quase rockabilly, e a desaceleração à Sabbath. “Gypsy Caravan” dá um cheirinho de psicadélica estrada fora, “California Queen” também mas com o conta rotações nos 240. “Joker and Thief” é daquelas em que todas as influências estão escarrapachadas mas isso pouco importa: o riff principal vale tudo. Os Wolfmother meteram pedal a fundo, e catapultaram a astronave túnel fora. A reacção do público cá em baixo deixou poucas dúvidas de que todos os botões correctos estavam a ser pressionados. Era exactamente este tipo de riffs que se pedia para soltar os corpos e as energias e as tensões. Rock cigano épico a várias velocidades. Um dos melhores concertos, senão o melhor, do festival. Nem sempre é possível deixar o melhor para o fim. Mas quando tal acontece, isso afecta retroactivamente tudo o que ficou para trás. Diz-se que as primeiras impressões são as mais importantes, mas as últimas são o que se guarda na memória. Como uma boa sobremesa.
Fotos: Cão de Fila Produções/ Monte Verde Festival