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Tomatito & José Del Tomate no CCB, A Herança Cigana na Ponta dos Dedos

Tomatito & José Del Tomate no CCB, A Herança Cigana na Ponta dos Dedos

2024-02-22, Centro Cultural de Belém
Rodrigo Baptista
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Numa noite plena de duende, termo utilizado na gíria para enaltecer a expressividade e a transparência emotiva de uma performance de flamenco, Tomatito e José Del Tomate subiram ao palco do CCB para nos levar numa viagem musical até à Andaluzia. Camarón de la Isla e Paco de Lucía, os grandes mentores de Tomatito, não ficaram esquecidos e foram homenageados e ovacionados por um público completamente rendido às “guitarras gitanas” de José Fernández Torres, pai e filho. 

Lenda Viva, Maestro ou Rei da Bulería são algumas das nomenclaturas que expressam o estatuto único de Tomatito no panorama contemporâneo da música e cultura flamenca. Após a morte Paco de Lucía, em 2014, e de Manolo Sanlúcar, em 2022, dois dos maiores vultos da “guitarra gitana”, Tomatito apresenta-se agora como um dos poucos herdeiros de uma geração de virtuosos que levaram a guitarra flamenca aos quatro cantos do mundo.

Nascido José Fernández Torres, em Almeria, no seio de uma família de músicos de flamenco, Tomatito demonstrou desde cedo uma extraordinária vocação para a guitarra. Quando ainda era adolescente, chamou a atenção de vários músicos exímios que assistiam às suas performances nos tablao da Andaluzia. Entre esses músicos estavam Paco de Lucía e Camarón de la Isla, considerados os dois nomes de maior relevo do chamado “Novo Flamenco”, que, impressionados com o talento de Tomatito, o recrutaram em 1973, com apenas 16 anos, para os acompanhar. Com os seus mestres, como respeitosamente e carinhosamente os apelida, Tomatito gravou dez álbuns, seis a acompanhar Camarón e outros quatro a acompanhar Camarón juntamente com Paco. Ao todo foram 19 anos a acompanhar Camarón de la Isla, até este falecer precocemente em 1992, com apenas 41 anos. Entre diversos álbuns a solo, Tomatito procurou também trazer para o flamenco novas fusões sonoras nomeadamente através da mistura com o jazz, explorada no seu projecto com o pianista caribenho Michel Camilo, e também com a música proveniente da América do Sul. Premiado com seis Grammys Latinos ao longo da sua carreira, Tomatito é assim reconhecido internacionalmente como um dos maiores nomes do flamenco.

Acompanhado pelo seu filho José Del Tomate na guitarra, Morenito de Illora e Kiki Cortiñas nas palmas e na voz e Johny Cortes na percussão, Tomatito subiu ao palco do Grande Auditório do CCB, vestido de fato negro, como manda a tradição, e agarrado à sua guitarra construída pelo histórico luthier andaluz Manuel Reyes. A sua mera entrada em palco exalta logo uma ovação, tal é a aura repleta de história e simbolismo que Tomatito traz consigo sempre que entra numa sala de espectáculos.

O concerto teve início com uma peça tocada a solo por Tomatito, como que ainda em modo de aquecimento e com algumas correções sonoras a serem feitas na munição de palco. O espetáculo depois prosseguiu com a apresentação de peças com base em diferentes palos: bulería, rumbra, bambera, zambra. O palo é o nome que se dá às formas musicais presentes no flamenco. Cada palo tem o seu padrão rítmico, o seu modo, os seus motivos, o seu tipo de estrofe e a sua origem. Todos os palos estão inseridos num determinado estilo de cante consoante a sua abordagem vocal e dimensão emotiva.

Cada palo tem o seu padrão rítmico, o seu modo, os seus motivos, o seu tipo de estrofe e a sua origem. Todos os palos estão inseridos num determinado estilo de cante consoante a sua abordagem vocal e dimensão emotiva.

Com os vários músicos a entrarem e a saírem de palco consoante o número musical, o concerto apresentou uma dinâmica interessante, onde a articulação entre palos mais rápidos e outros mais vagarosos foi pensada ao pormenor. Um exemplo particularmente notório desta articulação deu-se quando Tomatito antecedeu uma bulería frenética com uma interpretação emotiva do tema “Two Much Love Theme”, dedicado ao seu mestre Paco de Lucía. Neste tema, que se encontra presente no álbum “Spain” (2000), o primeiro de uma trilogia de álbuns gravados em conjunto com o pianista de jazz Michel Camilo, Tomatito demonstrou todo o seu duende e toque pastueño, com destaque para os seus vibratos, legatos e pequenos apontamentos de picados.

Contudo, Tomatito não se exibe como uma estrela pretensiosa e em todos os concertos procura dar espaço ao seu filho, José Del Tomate, para que este também possa mostrar as suas capacidades enquanto guitarrista exímio e certificar que o legado está assegurado. Desta vez, a escolha recaiu sobre uma zambra de Niño Miguel, tio de Tomatito, que José Del Tomate interpretou a solo de forma emotiva.

A falseta de “Entre Dos Aguas” de Paco de Lucía e “La leyenda del tiempo” que Tomatito gravou com Camáron em 1979 marcaram o climax do concerto. A chuva de aplausos em pé por parte de uma plateia rendida fez com que Tomatito regressasse para um encore e colocasse um ponto final num concerto que, ao longo de uma hora e meia, nos impregnou com a alma da cultura cigana. Olé!