The Kills, Cigarros & Algodão Doce

7 Novembro, 2016

Concerto de rodagem do último álbum “Ash&Ice”, mas também concerto de comunhão em nome próprio, depois de várias passagens em festivais. Os The Kills foram assim por uma vez os anfitriões, e o público atendeu à convocatória enchendo a sala.

O Coliseu dos Recreios terá, por esta altura, incorporado nas suas paredes e nos seus estuques, tamanha quantidade de reverberação que temo o dia em que algum presidente da câmara, devotado ao camartelo, decidisse deitá-lo abaixo: o potencial de acção libertado detonaria a região de Lisboa e vale do Tejo com tal potência que faria 1755 parecer uma pedra num charco. Dias antes das eleições presidenciais que em grande parte vão determinar a possibilidade de vivermos, ou não, num mundo minimamente sano, Alison Mosshart e Jamie Hince, os The Kills, vieram adicionar alguma da sua própria potência musical ao substrato das portas de Sto Antão.

Alison parece a miúda da máquina de algodão doce, que fez um desvio pela porta dos fundos e decidiu que os bastidores da feira popular são mais atractivos que a fachada.

A abertura foi feita com “Heart of a Dog”, um dos singles de “Ash&Ice”. Nervosa e pulsante, com um a batida metronómica a dar o tempo, é a introdução lógica para conduzir este ou qualquer outro público, de bulício dos corredores e das ruas e das vidas, para o espaço dos corpos e das luzes. A figura de Alison desenha-se no palco como uma silhueta frenética de cabelo, cabedal e entrega. Ela é leal a um público que há muito esperava o seu concerto com esta banda. “U.R.A. Fever” regressa ao passado de “Midnight Boom”, mas mantém a toada compassada de quem não quer já seguir para um ponto de explosão. “Kissy Kissy” é do primeiro álbum, blues pós modernos, de quem rasteja lenta mas afincadamente em direcção a um ponto fixo do horizonte. O som quente envolve o veludo e o palco barroco do Coliseu em tons de deserto morno.

“Hard Habit to Break” é o regresso ao novo álbum e vem com um ritmo que seria quase pop e dançável não fosse pelo riff stalker e obsessivo que vem da guitarra de Hince. “Impossible Tracks” tem o refrão irresistível e a consciência que o som dos The Kills vive nesta tensão entre o duro e o delicado. “Doing to Death” abaixa o ritmo, e leva o coliseu a cantar o «oh oh oh». Mais uma vez, o flirt musical com o doce e “cantarolável”: Alison parece a miúda da máquina de algodão doce que fez um desvio pela porta dos fundos e decidiu que os bastidores da feira popular são mais atractivos que a fachada. “Black Ballon” seria a banda sonora perfeita para essa transição de mundos.

Há concertos tão bons que deviam ser como o vinil: ao chegar ao fim, vira-se e toca-se o lado B!

“DNA” e “Baby Says” são a primeira incursão da noite em “Blood Pressures”, sinuosa e desafiante a primeira, fuzzy e esperançosa a segunda, ambas músicas de embalar adultos “insomníacos” em noites de angústia existencial. Esta não é uma dessas noites. “Tape Song” tem, ao vivo, mais impacto na descarga do refrão e “Echo Home” é uma emissão “bluesiana” a ser enviada na calada da noite, em direcção a um posto de recepção inexistente. O pulso volta a acelerar com o riff imediatamente reconhecível de “Future starts Slow”, e assim se mantém com “Whirling Eye”. “Pots and Pans” ecoa e reverbera pela sala do Coliseu como o aviso subentendido que é, e termina-se com o mantra simiesco de “Monkey 23”.

O público do Coliseu não deixa a banda apartar-se do palco por muito tempo. O encore começa com “That Love”. Seria uma balada se este duo escrevesse baladas. Assim é só música de desapontamento, de cortar as cordas umbilicais de nados mortos. E “Siberian Nights” é disco negativo, de gelo e acidez, música de discotecas no, cada vez mais, não existente circulo polar árctico, música tão cool que causa frieiras no ouvinte. “Love is a Deserter” e ” Sour Cherry” são as últimas da noite. Este concerto voou como todas as coisas boas da vida. E há concertos tão bons que deviam ser como o vinil: ao chegar ao fim, vira-se e toca-se o lado B!

Foto: Eduardo Ventura

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