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50 anos de Chico Buarque de Hollanda

50 anos de Chico Buarque de Hollanda

Pedro Miranda

Em 1966, um jovem compositor carioca lançou um homónimo álbum de estreia que pegou nas raízes do samba e as elevou a um novo patamar.

Quando se fala dos melhores álbuns de sempre, esse eterno tema que não se refreia a incitar intensas discussões, uma parte considerável da conversa tem por hábito centrar-se nos anos 60. E justificadamente, diga-se, sendo essa década o berço de nomes tão inovadores e influentes para a história da música quanto Velvet Underground, Led Zeppelin, King Crimson ou aqueles Pink Floyd ainda encabeçados por Syd Barrett. Mas a opinião pública que, como sabemos, tende sempre muito para o anglocentrismo, acaba por deixar passar nomes que não devia e, no mesmo ano em que os Beatles e os Beach Boys lançavam os seus respectivos magnum opus ou em que Frank Zappa se apresentava ao mundo com o début de Mothers of Invention, um jovem compositor carioca pegava nas já estabelecidas raízes do samba e elevava-as a um novo patamar com o seu disco de estreia. 2016 marca o quinquagésimo aniversário desse disco e, porventura mais que aos seus contemporâneos, impõe-se que se lhe dirija a merecida homenagem.

Chico Buarque aparece aqui como quase patologicamente incapaz de escrever uma música que não se torne num clássico instantâneo.

Afinal, as composições de Chico Buarque de Hollanda não são como relíquias do passado, enterrados pelo tempo e esquecidos em função de novidades que entretanto as suplantaram; permanecem tão vibrantes quanto o seu compositor as fez e, pela voz de incontáveis intérpretes, ao longo destes 50 anos, encontram-se tão vivas no subconsciente colectivo do Brasil que assumem hoje o estatuto efectivo de preciosa herança cultural. De tal forma que é seguro assumir que qualquer brasileiro que esteja minimamente familiarizado com o género do samba conhece de cor os tão belos refrões de “A Banda”, “Madalena Foi Pro Mar” ou “Você Não Ouviu”, saiba que os versos são de Chico ou não.

Infelizmente, pelos óbvios constrangimentos linguísticos e inerente regionalismo do género musical, a influência de Chico Buarque de Hollanda não ecoou pelo mundo da mesma forma que aquela dos mencionados no início deste artigo, mas que isso não se atribua à falta de mérito da música aqui presente. Numa altura em que o conceito de álbum coeso e unificado em tema e estética ainda estava a ser inventado, o que Chico nos apresentou foi nada menos que doze das mais belas e melhor compostas canções que por cá passaram e cuja qualidade parece só aumentar com o decorrer dos anos. Continua maravilhosa a forma como o compositor monta as suas barras, gentilmente conduzindo-nos pelas histórias de vida que tem a contar (um feito notável para um jovem de, na altura, 22 anos), ou o modo como, com um ou dois acordes, é capaz de levar um tema até aí alegre por repentinos acessos de inconsolável tristeza – “Ela e Sua Janela” e “Olê Olá” são verdadeiras montanhas russas dessas divagações. Seja em que disposição for, Chico Buarque aparece aqui como quase patologicamente incapaz de escrever uma música que não se torne num clássico instantâneo.

Uma produção simples e discreta, mas farta em sabedoria nas escolhas mais importantes.

Algo que por si só não chegaria, não se revolvessem as canções de Chico dos mais belos (ainda que minimalistas) arranjos. Os dedos melindrosos do cantor sobre a guitarra estão sempre lá, tal como a característica batida de samba que denuncia o toque de anca com que caracteristicamente munia os seus temas à altura. A isso, a conspícua produção adiciona o contrabaixo, que circula sem grande alarido por entre os acordes de Buarque, o ocasional coro que encorpa os seus refrões mais sonantes, algum piano encontrado disperso cá e lá e um belíssimo trabalho da mais vasta gama de sopros – flautas, trompetes, trombones – que, graciosamente, vão colorindo as faixas, diversificando os seus timbres ou conferindo-lhes uma dinâmica instrumental revolucionária para o género na altura (veja-se os sublimes crescendos de “Olê Olá”). Tudo isto sempre sob a inconfundivelmente doce voz de Chico, que nunca se afasta das luzes da ribalta – uma produção simples e discreta, mas farta em sabedoria nas escolhas mais importantes.

Tudo isto serve de suporte, é claro, às letras do compositor, que desde tenra idade mostrava a sua capacidade de trazer versos memoráveis à mesa. Ainda não havíamos entrado na fase mais confrontacional do activismo político de Chico, mas o cantor fez notar já no primeiro longa-duração a aversão pelo óbvio e pelo literal, escondendo os temas das suas canções em histórias do quotidiano que nos chegam não raro com duplos ou triplos significados. É neste meio termo entre intelectual e citadino que Buarque faz observações (sempre interessantes, acrescente-se) acerca do ambiente social e do status quo da época (“Tem Mais Samba”, “Pedro Pedreiro”, “Juca”) do amor nos seus piores momentos (“A Banda”, “Ela e Sua Janela”, “A Rita”) ou dos mais eloquentemente expressos sentimentos de alegria ou tristeza (“Amanhã Ninguém Sabe”, “Você Não Ouviu”, “Sonho de Um Carnaval”). Tudo filtrado pela calmaria e tom impecável da voz de Chico, que vai descrevendo coisas que não conhecíamos de formas que não achávamos possível.

Talvez a melhor característica de Chico Buarque de Hollanda seja a sua simplicidade.

Mas talvez a melhor característica de Chico Buarque de Hollanda seja a sua simplicidade – será com certeza aquela com que o ouvinte deparar-se-á mais vezes. Por mais recompensador que seja ouvir o disco, estará sempre presente a sua pureza, o seu total desapego a quaisquer ambições de grandeza ou distinção. Desde 1966 essa componente não mudou, e é possível que seja por ela que o álbum se tenha tornado num dos maiores marcos da história da MPB. Um conjunto de canções que simultaneamente celebrava o passado (os mais afectos ao género reconhecerão facilmente os trejeitos em Noel Rosa ou Cartola) e abria caminho para uma das mais proliferas e aclamadas carreiras da sua geração.

Agora, no cinquentenário do que será certamente um dos maiores trabalhos de Chico Buarque, que se recorde em Portugal o músico estrangeiro que tanto fez pelos seus – quem não se lembra da belíssima homenagem à Revolução dos Cravos de “Tanto Mar?” – para que, também em terras lusas, a sua memória nunca se desvaneça.