EODM, Anjos & Demónios
O voo dos Eagles Of Death Metal, desde as distantes origens sabbathianas do stoner rock ao destilar de energia sexual através de guitarras eléctricas. A irascibilidade de Jesse Hughes, a sua fúria de viver como antagonista do seu cristianismo, e sua descida à toxicodependência, de onde Josh Homme o resgatou.
Conhecem a Epopeia de Gilgamesh? Resumidamente, conta os feitos lendários de Gilgamesh (os académicos admitem que tenha sido uma figura histórica), o quinto rei da primeira dinastia de Uruk, que governou a Suméria num período situado entre 2800-2500 a.C. No poema, o rei é descrito como um semi-deus irascível ao qual, para poupar o povo da opressão, os deuses criam um amigo, um homem selvagem com um poder similar ao de Gilgamesh. Ou seja, o tema central da obra é, fazendo uso de terminologia moderna, um mega bromance entre Gilgamesh e Enkidu. De como ambos os homens, sendo iguais, podem discutir e lutar um com o outro ou aventurarem-se em demandas hercúleas sem a preocupação de que possa suceder mal a nenhum deles.
Se são músicos, certamente que sonharam, a dada altura, em fazer uma banda com o vosso melhor amigo. Dominar o mundo e cavalgar uma tempestade de deboche e devastação eléctrica. Esse é aquele amigo com quem são capazes de ir ao inferno e voltar e com quem fariam uma banda capaz de abalar as fundações da decência social. Josh Homme e Jesse Hughes são dois amigos desses, como Gilgamesh e Enkidu. Os Eagles Of Death Metal não dominam, propriamente, o mundo, mas levam a sério esse fenómeno tão primitivo que é a amizade entre dois “gajos”.
Há dois tipos de bandas de rock n’ roll: aquele tipo de banda que surge para bater umas p*veas e todos verem e aquele tipo de banda que surge para f*der todos os que estão no concerto. É brega, mas eu tento f*der todos os que estão no concerto
O SOM DO DESERTO
Como acontece na maioria destas coisas, tudo começou com Black Sabbath. Em 1971, Tony Iommi decidiu baixar a afinação em tom e meio. O som de “Master Of Reality” tornou-se mais cheio e mais pesado. Com a tensão das cordas reduzidas, a viagem vibratória das frequências tornava-se maior, logo mais lenta, e a secção rítmica, com os bpm reduzidos, tornou-se mais demarcada. O arrastamento sonoro criava uma ilusão lisérgica. O som, pouco processado, diz Mick Wall, na biografia “Black Sabbath: Symptom Of The Universe”, «desprovido até de reverb (…) era como ossadas secas desenterradas de uma qualquer sepultura no deserto». O deserto. O local do xamanismo, de coiotes e do sumo fermentado do agave. “Master Of Reality” abria com o loop de Iommi a tossir a baforada num charro, seguido pelo riff com aquela progressão descendente árida e pesada, e “Sweet Leaf”, monolítica e psicotrópica, tornou-se uma ilustração perfeita do stoner (pedra/moca/pedrada) rock.
Vinte anos depois, bandas como Cathedral ou Sleep começavam a extremar o peso e pedrada de “Master Of Reality” (e essa é outra história), enquanto Josh Homme e os colegas John Garcia e Brant Bjork eram putos danados que ouviam discos de Sabbath e Black Flag, formaram os três uma banda, eram os Sons Of Kyuss. Numa carrinha apinhada de amps e geradores, viajavam para o interior do deserto californiano para dar concertos a quem os seguisse. As generator partiestornaram-se lenda. O deserto foi um agente de osmobiose no som da banda. Os Sons Of Kyuss começaram a diluir a sua velocidade metaleira e hardcore punk, reduziram o seu nome e mais e mais promotores procuravam marcar concertos, em Los Angeles, com eles. A recorrente pancadaria com outros músicos, promovida pelos próprios Homme, Garcia e Bjork, nos bastidores dos concertos tornou-se lenda. Os Kyuss eram rudes, com atitude punk, o som era californiano e bastardo de Sabbath, a banda era uma “pedrada”. Stephen Powers que, na ressaca dos danos que a “Black Friday” de 13 de Outubro, de 1989, provocara na indústria musical, deixara a Capitol Records para criar a Chameleon, tratou de assinar a banda. Josh Homme era um rufia, imagine-se, ainda menor de idade à altura – foram os seus pais a assinar por ele. Aproveitando o balanço da banda, “Wretch” foi gravado, aproveitando demos e temas do EP da encarnação anterior. Mas quando Powers juntou os Kyuss ao produtor Chris Goss, um devoto de Sabbath, cuja carreira musical é dedicada, exclusivamente, a uma única banda, os (vejam bem) Masters Of Reality, o resultado foi a redefinição do cânone stoner, com os álbuns “Blues For The Red Sun”, “Welcome To Sky Valley” e “…And The Circus Leaves Town”.
«TOO WEIRD TO LIVE AND TOO RARE TO DIE»
Com o percurso dos Kyuss esgotado, Josh Homme exilou-se no Rancho De La Luna. A velha casa em Joshua Tree, carregada de hardware de gravação raro e instrumentos únicos, tornou-se um santuário criativo para músicos audazes. Gente de guitarras, fora-da-lei, desajustados numa década que, na sua segunda metade, viu o mainstream da indústria musical entrar num período de extrema esterilidade. Músicos ligados a Monster Magnet, Goatsnake, Sonic Youth ou aos próprios Kyuss vinham colaborar, espontaneamente, nas “Desert Sessions”, cuja primeira compilação surgiu em ’97, com o título “Instrumental Driving Music For Felons”. Josh Homme ia trabalhando, paralelamente, no seu grande triunfo: o primeiro e homónimo álbum dos Queens Of The Stone Age.
Acredito em Deus e acredito no diabo. E sabe-se que o rock n’ roll não é catequese, portanto, quem é o deus de Hollywood? É seguro como a bosta cheirar mal que não é o Senhor.
Foi nesta altura e local que surgiu um velho amigo de Homme, um malandro dos tempos de liceu, um rufia pintas e “lingrinhas” a quem o “calmeirão” Josh acudia em momentos de sarilho. Jesse Hughes traz à memória as palavras de Hunter Thompson sobre o samoano Oscar “Zeta” Acosta: «Lá vai ele. Um dos protótipos do próprio Deus. Um tipo de mutante carregado de alta potência, nunca pensado sequer para produção em massa. Demasiado estranho para viver e demasiado raro para morrer». Aquele ar de “poema de rock n’ roll”: propenso a excessos e vícios, fã de strippers e antagonismo com a autoridade. Ambos os amigos confessam ser «socialmente liberais, mas politicamente conservadores» e Hughes acrescenta que «desejava ter sido um deputado Republicano. Sou um tipo conservador». Hughes já professou, inclusivamente, um profundo cristianismo. Um cristão que abusa dos prazeres terrenos e cujo rosto está, agora, a servir de mamilo na capa de “Zipper Down”. É o próprio que o afirma: «Sei o que estão a pensar – a minha vida é uma contradição. A forma como penso é que o inferno vai ser bastante mais difícil para mim que para vocês todos. Simplesmente, não vou ser o tolo que não sabe porque lá está».
Homme meteu-lhe uma guitarra nas mãos e os primeiros sons dos Eagles Of Death Metal surgiram no quarto volume das “Desert Sessions», em 1998. Prenunciava-se um vendaval de electricidade garage rock, blues com esteróides, e antítese a uma certa pose rocker, usando como recurso para isso uma espécie de “hiper-pose”. Como Hughes diz, «há dois tipos de bandas de rock n’ roll: aquele tipo de banda que surge para bater umas p*veas e todos verem e aquele tipo de banda que surge para f*der todos os que estão no concerto. É brega, mas eu tento f*der todos os que estão no concerto». Mas foi então que os Queens Of The Stone Age “explodiram”…
REDENÇÃO
O álbum homónimo dos QOTSA, com a reputação de ser uma reencarnação dos Kyuss, o seu rock simples e despretensioso, cheio de groove e cadência, ganhou depressa seguidores e “obrigou” Josh Homme a concentrar-se na banda. Com o seu foco total, Homme começou a desenvolver uma das grandes bandas da história do rock. “Rated R” aumentou a atenção mediática e consolidou o projecto para o passo seguinte, a aclamação mediática que conquistada em “Songs For The Deaf”. O álbum levava o ouvinte a viajar de carro, pelo deserto californiano, até Joshua Tree, enquanto “sintonizava” diferentes estações de rádio ao longo da estrada. Uma estrada que levava Homme, novamente, para junto de Hughes , o que terá acabado por ser salvífico para este.
No período de ascensão dos QOTSA, Jesse Hughes, o “J. Devil”, viu-se isolado em Palm Desert com os seus próprios demónios. Com os Eagles Of Death Metal em suspenso, no início do milénio Hughes enfrentou ainda um divórcio tumultuoso. «Sou um cristão devoto, portanto, o divórcio não é algo que consiga conceber», confessou Hughes ao Consequence Of Sound. No divórcio, o músico admite ter cedido «a uma típica raiva, ao cliché “dediquei-te toda a minha vida e é isto que recebo em troca”. Ganhei peso, tinha uns 115 kg – era um absoluto redneck». Então, Hughes começou a consumir speed e ficou viciado no narcótico, o que conduziu a uma severa perda de peso e a uma depressão. Foi quando a mãe de Hughes decidiu contactar Josh Homme: «A minha mãe ligou ao Joshua, ela achava que ele era um dos únicos gajos a quem eu daria ouvidos. Ela temia que eu cometesse suicídio – tenho um monte de armas». O amigo acedeu ao pedido da mãe de Hughes, numa altura em que «o Joshua tinha acabado de regressar da Austrália, onde o “Songs For The Deaf” havia atingido a platina. Bateu à minha porta. Afastou-me, começou a enfiar todas as minhas armas na fronha de uma almofada e disse: O que é que se passa, meu?»Homme convenceu o amigo a fazer uma cura de desintoxicação e pagou os respectivos tratamentos.
Fosse a necessidade de um intervalo em QOTSA ou um sentido de protecção para com o amigo. Josh Homme sentou-se com Jesse Hughes a gravar o que este descreve da seguinte forma: «Faço música para sacudir a pila, balançar mamas, vamos ao que interessa e passar um bom bocado. No liceu as miúdas não faziam sexo comigo propositadamente, então quando a minha vida começou a mudar foi altura de aproveitar. Quando estou “lá em cima”, a sensação é a de um relógio com diamantes embrulhado numa nota de um milhão de dólares». Em 2004, foi editado “Peace, Love, Death Metal”. Dois anos depois chegou “Death By Sexy” e “Heart On”, após outros dois anos. Entre os álbuns houve “Lullabies To Paralyze”, que parecia indicar uma complexificação da estética dos QOTSA, e “Era Vulgaris”, que confirmou a ideia anterior. O rock “a direito” passava a ser um exclusivo dos Eagles Of Death Metal, aos quais Homme confirmava total dedicação, apesar de não ser um membro assíduo em concertos e digressões: «Isto não é um side project que tenho. Estou em duas bandas. Sofro de esquizofrenia musical e esta é uma dessas personalidades. Em suma, são ambas fabulosas». Depois de “Heart On”, era uma vez mais a vez de trabalhar num álbum de Queens. no entanto, não seria tarefa para 12 meses apenas. “…Like Clockwork” foi o maior esforço de produção da banda, e o resultado reflecte essa minúcia, colocando a banda, de vez, no trono do rock actual.
BRAGUILHA ABERTA
Enquanto o seu melhor amigo se dedicava a fazer o seu álbum mais ambicioso, Jesse Hughes começou por trabalhar num disco solo, sob o pseudónimo Boots Electric. O álbum, “Honkey Kong”, sofreu com alguma displicência do próprio Hughesque se aventurou, ao seu estilo, numa espécie de descoberta interior, documentada no filme “The Redemption of the Devil”. Hughes embrenhou-se mais em activismo político, como Republicano, decidiu disputar a custódia do seu filho, foi ordenado Reverendo e prepara-se para casar com Tuesday Cross, actriz pornográfica (reformada). “Zipper Down”, no entanto, não revela grandes indícios do aparente soul searching do seu frontman. Tal como os três álbuns anteriores, este disco versa abundantemente sobre a anatomia feminia. «Vou casar. Estou noivo, mas isso não significa que o meu “equipamento” deixe de funcionar. Isto não é catequese, é rock n’ roll. Antes de ser minha noiva, ela (Tuesday Cross) era a pêga da semana. Estou, literalmente, a viver o cliché do rock n’ roll dream – a minha miúda é uma estrela porno e é um anjo também», afirma o guitarrista.
Tendo partido do álbum solo de Hughes, “Zipper Down” apresenta três originais desse registo (o single “Complexity”, “Oh Girl” e “I Love You All The Time”), aqui com novos arranjos, sónica e estruturalmente são mantidos os pressupostos de sempre. Na verdade, não há muito a mudar no som dos Eagles Of Death Metal. Jesse Hughes não esconde o quanto é influenciado por Ted Nugent e por essa interacção tão simples dos instrumentos numa canção rock. Com Homme atrás da do kit de bateria e aos comandos da produção, as guitarras ficam a cargo de Jesse Hughes que, também aqui, não é adepto de grandes mudanças e se mantém fiel às Maton (as eléctricas MS500 e BB1200 e a acústica EAJ85), à hollow body Yamaha AES 1500 e à Gretsch Duo Jet Custom Shop.
Actualmente, o guitarrista é endorser Orange. Em estúdio, até considerando que Homme é um ávido coleccionador de equipamento pouco comum, não é provável que os modelos Rockerverb que são usados ao vivo tenham um papel de protagonistas. Infelizmente, Homme é, também, extremamente zeloso sobre tais assuntos. Resumindo, o rig de estúdio de “Zipper Down” é um mistério. Entre os pedais Hughes que usa, os consensuais são os seguintes: Ernie Ball Wah Pedal ou Vox V8474 Wah; Boss DD-6 Delay; TC Electronic Nova Drive Overdrive/Distortion; EHX Mini Q Tron; EHX Deluxe Memory Man Classic Chassis; MOOG MF-102 Moogerfooger Ring Modulator; MXR Phase 100; Boss BF-3 Flanger e Ibanez TS808 Tube Screamer.