Gravar Um Bom Disco (E Preparar Tudo o Resto): Ensaiar Bem
Fernando Matias, um dos mais entusiasmantes produtores no underground nacional, residente nos Pentagon Audio Manufacturers, criou uma série de artigos com os principais conceitos que devem dominar para criarem e gravarem o melhor disco possível.
Cada vez mais me convenço que um disco ganha-se ou perde-se nos preparativos e que a qualidade do trabalho que um artista é capaz de produzir está intimamente ligada à qualidade dos ensaios que faz e à forma como se prepara. Ou seja, “Ensaiar Bem”.
A primeira regra a ter em consideração, se queremos gravar um bom disco, é que os preparativos não devem, em circunstância alguma, ser subvalorizados, porque são eles que vão garantir consistência nas composições e solidez na interpretação no momento de começar a gravar. Há obviamente excepções à regra, há obras incontornáveis na história que foram trabalhadas de forma intensiva e cerebral já no estúdio, em conjunto com um produtor, mas as horas de estúdio são caras e nem todos os artistas têm possibilidade e orçamento para o fazer.
Nos casos em que há tempo e dinheiro para terminar um disco a qualquer preço, o que acaba por ser feito é uma espécie de pré-produção já dentro do estúdio, seguida das sessões de gravação, ou, nos casos mais desesperados, uma mescla de pós-produção com engenharia Lego-musical em que se pega numa manta de retalhos e se tenta dar-lhe vida. Em qualquer dos casos, isto nada mais é do que compensar a falta de preparativos ou insuficiências no método de ensaios.
Mas os preparativos não começam no momento em que se ligam os instrumentos para ensaiar as malhas no dia em que se decide que se vai fazer uma gravação. Antes disso há que levar em conta a preparação da sala de ensaios, do sistema de ensaios, dos instrumentos e, o mais importante, dos músicos.
O MÚSICO
O que se segue é uma brilhante constatação do óbvio, merecedora do Nobel da Lucidez, por isso prestem atenção porque o que aí vem é importante e provavelmente nunca antes foi dito: o músico tem de perceber alguma coisa de música e tem de ter uma boa relação com o instrumento musical que escolheu. Não precisa de ser virtuoso, não precisa de ter escola, tem apenas de saber fazer com segurança e convicção aquilo que se propõe fazer, ter consciência das suas limitações e compor/interpretar de acordo com elas. Nada estraga mais uma performance do que um músico hesitante a tentar tocar acima das suas possibilidades e a espalhar-se ao comprido. É mau para as artes e terrível para a autoestima.
É verdade que no estúdio é possível fazer muita batota, mas essa batota é apenas um truque de ilusionismo, demora tempo, custa dinheiro, sem contar com o facto de que o público costuma ser perspicaz no momento de reconhecer os embustes – nunca se esqueçam que, em última instância, os erros vêm sempre à tona ao vivo e que é em cima do palco que um artista ou se afirma, ou se afunda.
O melhor músico não tem necessariamente de ser um escravo da teoria e da técnica. Mais importante do que saber mais ou ser mais rápido é “descobrir a cena” e saber fazê-la bem. Jimmi Hendrix nunca aprendeu a ler pautas nem nunca foi extraordinariamente tecnicista, Tony Iommi perdeu parte dos dedos e viu-se obrigado a aprender a tocar de forma diferente, David Gilmour nunca conseguiu tocar rápido, por isso dedicou-se a outro tipo de explorações, mas qualquer um destes três rapazes fez o que não está ao alcance de todos: adaptou-se, descobriu uma forma de tocar e, por acidente, inventou um estilo musical.
Aprender a tocar com fluidez e sem enganos, especialmente aquilo que se compõe, não ter preguiça nem preconceito de praticar com um metrónomo, treinar o ouvido e ser rigoroso com a afinação, compreender que o silêncio e o ruído também são “notas musicais”, apurar o sentido de auto-crítica, alargar, tanto quanto possível, a cultura musical e ter algum conhecimento teórico é fundamental. Se me perguntarem por onde começar, diria que um músico deveria, pelo menos, ser capaz de distinguir uma colcheia de uma semínima, um compasso ternário de um quaternário, saber o que é uma tercina, saber como se formam os acordes e ser capaz de entoar a nota que está a tocar.
Isto é apenas o “bê-á-bá” da música e, para que saibam, não ocupa mais de meia dúzia de páginas num livro de iniciação, por isso larguem o Facebook durante um fim-de-semana e agarrem-se ao Google. A principal utilidade disto é facilitar a comunicacão entre músicos – músicos que comunicam bem são músicos que tocam melhor e compõem melhor. Procurem mais informação e aprendam mais se sentirem necessidade ou interesse, mas tentem não saber menos do que isto. Praticar em casa, tocar por cima de discos, ou tocar espontaneamente apenas por gozo, com frequência, é também fundamental. É nesses momentos que se ganha confiança e familiaridade com o instrumento, que se criam rotinas e automatizam mecanismos, que se ganha fluidez no discurso e se define o próprio estilo.
Há quem não goste de praticar por sentir que a música deve ser espontânea e transmitir o feeling do momento. Acreditem ou não, mesmo as prestações mais fluídas e espontâneas são resultado de treino, rotinas e preparação. A fluidez e a espontaneidade surgem naturalmente quando a linguagem musical se torna óbvia e intuitiva para o músico. Um bom improvisador, por exemplo, é um músico com rotinas extraordinariamente bem estudadas, isso proporciona-lhe maior rapidez de raciocínio e capacidade de antecipação durante a execução – e, consequentemente, maior capacidade para se expressar de forma emotiva sem racionalizar em demasia sobre a parte técnica e teórica.
Um músico mais ou menos talentoso será aquele com maior ou menor facilidade em estudar e desenvolver as suas próprias rotinas (também poderíamos chamar-lhe voz, léxico musical ou estilo). Uns chegam lá mais facilmente do que outros, mas a ideia principal a reter aqui é que sem essas rotinas, sem esse estudo, sem essa descoberta individual, sem esse trabalho de casa, tudo se torna muito mais complicado, desde a capacidade de execução do instrumento à própria criatividade na composição e interpretação. Dave Grohl, na sua palestra no SXSW, há uns meses atrás, insistiu no mote: «find your own voice» e é absolutamente impossível eu concordar mais com ele nesta matéria.
O COLECTIVO
Toda esta lógica individual tem, obrigatoriamente, de ser transportada para o colectivo. Uma boa banda é aquela cujos elementos se fundem a ponto de funcionarem em bloco, até mesmo durante as desconstruções mais caóticas. Isto é uma forma rebuscada de dizer “é aquela cujos elementos não estão a tocar cada um para o seu lado”. Tem de ser auto-consciente, saber ouvir-se, compreender o espaço de cada elemento, ter noção das suas limitações e capacidades e compor/interpretar de acordo com elas.
Todas as bandas que não fazem isto têm imediatamente tendência para ser piores, as que fazem são o exemplo a seguir: Nick Mason sempre foi um baterista de recursos limitados, mas a sua forma simplista de interpretar os temas de Waters, Gilmour e Wright fez com que estes se transformassem nas canções que hoje conhecemos, com o espaço e ambiente que lhes são característicos, e ajudou a definir o som dos Pink Floyd. Meg White e a sua abordagem rítmica, minimal e predominantemente binária, completou na perfeição a performance de Jack White e ajudou a definir não só o som dos The White Stripes como o do garage rock contemporâneo. Isto serve para demonstrar que, numa lógica de conjunto, mais importante que ter valores individuais especialmente dotados, é saber trabalhar com a equipa que se tem. É isso que gera coesão, é isso que gera cumplicidade, é isso que gera música.
TRETAS
Antes de avançar muito mais, queria salientar que toda e qualquer discussão sobre o que é boa ou má música, ou sobre o que é perceber alguma sobre ela, é, na sua essência, uma treta. Toda a expressão musical, do folclore ao glitch, é válida e toda a discussão em seu torno é um mero confronto de opiniões. A arte é o que é, não oferece garantias e não tem livro de reclamações. E estes artigos nada mais são que as minhas opiniões e experiências sobre o assunto. Há outras.