Nas trincheiras da pandemia ou quando a união faz a força!
A música não se faz apenas de músicos. A entourage por detrás de alguns concertos é imensa e grande parte das vezes desconhecida do grande público. Com a crise da Covid-19, muitos ficaram meses (e continuam e continuarão) sem trabalhar. Fundamentais para o sector, mas precários e sem protecção social, como estarão a sobreviver, em Portugal, técnicos de som, técnicos de luz, roadies, runners, agentes, produtores, artistas, entre outros? Esta é uma história de luta e sobrevivência. Sem vergonha.
Como será o mundo depois desta pandemia? Como nos iremos sentir quando olharmos para trás? Estas são perguntas pertinentes, mas há muitas outras. Na indústria da música, a pergunta que importa, neste momento, é: como é que alguns profissionais do mundo do espectáculo estarão a sobreviver a esta crise global e sem precedentes? Uma classe sem contratos, sem estatuto profissional – também conhecido por estatuto da cultura ou do intermitente -, sem protecção, sem rede.
Esta é sem dúvida uma história que não deixou ninguém de fora. Ainda assim, e como sempre, e como em tudo, uns ficaram mais do lado de fora do que outros; uns perderam (muito) mais do que outros – a uma escala planetária. Mas centremo-nos no nosso país.
Com a Covid-19 veio o desemprego e o layoff, que atiraram muitos portugueses para uma situação de risco de pobreza. O número 392 323 é o dos desempregados registados em Abril, bastante superior ao verificado no mesmo mês de 2019 (+71 083; +22,1%), sendo que perto de 1 milhão de trabalhadores passaram a um regime de layoff. Se olharmos, por exemplo, para os números de sectores como alojamento ou restauração, estamos a falar de 60,6% quando falamos da percentagem de subida do desemprego, valores que escalam para alarmantes 98% quando falamos dos trabalhadores dos espectáculos que tiveram trabalhos cancelados, isto, segundo dados do CENA-STE, o Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos, que promoveu um inquérito, em Abril, junto de 1 300 profissionais do ramo. [Um segundo inquérito está a ser agora realizado e publicaremos os resultados quando forem conhecidos].
Em termos financeiros, para as 1.300 pessoas que responderam ao questionário, as perdas por trabalhos cancelados representam ainda dois milhões de euros, apenas para o período de Março a Maio deste ano, o que indica a perda de um valor médio de receita, por trabalhador, de cerca de 1.500 €.
Na mesma linha está o questionário promovido pela Fundação GDA (Gestão dos Direitos dos Artistas): por cada espectáculo cancelado em Portugal ficaram sem rendimento, em média, 18 artistas, 1,3 profissionais de produção e 2,5 técnicos. Ao inquérito responderam, até 31 de Março, 992 profissionais, que deram conta do cancelamento de 4.287 espectáculos.
São muitos profissionais em suspenso, muitas carreiras em risco, muitas vidas na corda bamba. Gente que ficou sem trabalho e, em grande parte dos casos, sem qualquer resposta do Estado. Para tentar fazer face a esta situação, a GDA, juntamente com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), a Audiogest (Entidade de Gestão de Direitos dos Produtores Fonográficos em Portugal) e a GEDIPE (Associação para a Gestão Colectiva de Direitos de Autor e de Produtores Cinematográficos e Audiovisuais) criaram o Fundo de Solidariedade com a Cultura, destinado a apoiar profissionais dos espectáculos e das actividades culturais que tenham sido afectados.
Este fundo arrancou com 1,35 milhões €. A SCML, que gere o fundo e o faz chegar aos seus destinatários, contribuiu com 150 mil €, a GDA e a Audiogest com 500 mil € cada uma e a GEDIPE disponibilizou 200 mil €.
A GDA criou ainda o Apoio Cartão de Compras, que vai já na sua quarta e derradeira fase (inscrições já terminadas). Inicialmente previsto para se realizar em apenas três fases, durante as quais foram analisados 2 374 pedidos, este fundo, com um montante global de 500 mil €, já atribuiu 1 853 apoios directos repartidos por artistas cooperadores de 21 diferentes nacionalidades e residentes em 324 localidades distintas. Todos os apoios foram concedidos através da entrega de um cartão de compras de bens essenciais, de valor a determinar tendo em conta o número de pedidos de apoio apresentados, com um limite máximo de 200€ por artista cooperador.
Ainda que muito importantes, estas ajudas não têm sido suficientes, até porque, segundo o sector, o Estado não tem cumprido o seu papel. Como exemplo, a Linha de Apoio de Emergência ao Sector das Artes, lançada em Março pelo Ministério da Cultura, com uma dotação de 1,7 milhões de euros, tem sido altamente criticada. Das 1 025 candidaturas, 636 projectos foram considerados elegíveis mas apenas 311 foram apoiados. Sendo um concurso de apoio à criação, muitas pessoas do sector, como é o caso dos técnicos, ficaram de fora.
NÃO PODEMOS PERDER TÉCNICOS PARA OUTROS EMPREGOS
Com a falta de trabalho chegaram as dificuldades; dificuldade em pagar a renda e todas as demais contas, incluindo a do supermercado. É aqui que entra em campo a União Audiovisual (UA), um grupo solidário e informal do sector artístico, saído das cabeças e da vontade dos técnicos de audiovisual Hugo Carriço e Sérgio Pereira – juntaram outros colegas do sector que, em regime de voluntariado, começaram a ajudar outros trabalhadores dos audiovisuais: técnicos de espectáculos, artistas, maquilhadores, cabeleireiros, catering, produtores, encenadores, etc.
O colectivo, criado para o efeito a 11 de Abril e dirigido desde Lisboa, junta já 7500 pessoas num grupo fechado do Facebook, mas ao qual basta pedir para aderir. Com células activas em Lisboa, Porto, Coimbra, Peniche, Setúbal, Alentejo, Algarve e Açores, num total de 30 pontos de recolha, a UA tem acudido com ajuda alimentar a cerca de 150 pessoas por semana, assim como aos respectivos animais de companhia. «Este processo é completamente sigiloso, que ninguém tenha vergonha de nos pedir ajuda, o que não queremos mesmo é perder os técnicos para outros empregos só porque têm de alimentar as suas famílias. Queremos que saibam que estamos cá, que não estão sozinhos», explica a produtora e voluntária da UA Inês Sales à AS, sublinhando a perda que seria para todas as artes performativas se, de um momento para o outro, todo o pessoal técnico se visse obrigado a migrar para outros sectores. Seria o regresso à idade da pedra.
Inês Sales, de 39 anos e com contrato de trabalho, não consegue precisar a quantidade de bens alimentares distribuídos desde o início da operação, em Maio, mas diz que «são muitos, muitos cabazes por semana», toneladas de bens essenciais entregues em cada uma das cidades ou regiões onde é feita a distribuição.
«No início ainda se pensou ajudar as famílias a pagar as contas, mas depois preferimos não mexer com dinheiro, optando pela ajuda alimentar e de primeira necessidade», explica a produtora, que confessa que no início a estrutura pensou que esta ajuda iria ser necessária apenas durante um ou dois meses, mas que, infelizmente, acredita que «a UA irá continuar a fazer o seu trabalho até ao final de Março de 2021», altura em que deverão voltar os festivais e a época mais intensiva de concertos pelo país. Assim se espera.
Mais a norte, no Porto, conversámos com o atarefado Hugo Costa, que por estes dias não tem tido mãos a medir. O road manager de Pedro Abrunhosa é o braço da UA na Invicta e conta à AS que «as pessoas que pediram ajuda no início da pandemia continuam a recolher alimentos, além de que o número de novos pedidos de ajuda tem aumentado», o que significa que a situação está «cada vez pior», insustentável mesmo.
«A recolha e distribuição de alimentos tem sido feita sem dramas nem choros, mas é uma situação preocupante. A música e a arte nunca vão morrer, mas as empresas que trabalham neste sector, a continuarem assim, acabarão por fechar. Alguma coisa vai ter de mudar neste mercado», sublinha Hugo Costa, que lança o apelo: «Qualquer pessoa pode e deve ajudar, sendo ou não do meio”. Hugo, também líder da In Rock We Trust (serviços de técnicos de backline, técnicos de som, stage e tour management), vive da estrada «há mais de 20 anos» e não vê a hora de à estrada voltar. «Já não dá para ficar mais em casa a ver o tempo passar».
Vontade de chorar só de lembrar o que estou a passar
Quem também sente «muitas saudades da estrada e do trabalho de formiguinha» é João, nome fictício de um roadie de 46 anos com 24 de profissão e que, de um dia para outro, viu mais de 20 datas serem canceladas. «Quero voltar aos palcos, tenho muitas saudades de trabalhar… estou quase a chorar só de me lembrar da situação por que estou a passar. Mas, se tiver de fazer outra coisa, vou, porque preciso de comer», explica João à AS. Este roadie, que em mais de duas décadas já trabalhou com a maior parte dos principais artistas nacionais, lembra que a ajuda da UA tem sido «crucial, a salvação mesmo», já que nem dinheiro para a renda da casa onde vive sozinho tem tido para pagar. «Por acaso, tenho um senhorio bacano e que compreende a minha profissão. Não pago a renda há 3 meses. Mas depois vou ter de acertar contas, vai custar mais, mas espero que esse dia venha, pois é sinal de que voltei à minha vida», frisa, com a voz embargada.
João também colabora como voluntário na recolha e organização dos cabazes que a UA distribui na sua cidade, até porque «toda a ajuda conta», e tem levado para sua casa um cabaz a cada 15 dias. «Às vezes chego a casa com o cabaz e fico a olhar para ele e a pensar nisto tudo… Raios… Fomos os primeiros a parar e seremos os últimos a regressar».
Do mesmo lado da barricada encontram-se as agências de artistas, que procuram, a todo o custo, materializar soluções para os desafios trazidos pelas restrições do mercado. O manager Paulo Salgado, da Vachier & Associados (V&A) – que normalmente dava trabalho a cerca de 90 pessoas, entre artistas e técnicos -, fala à AS, na primeira pessoa: «As limitações que esta crise impôs trazem-nos novos desafios, a nós e aos criadores, aos artistas. Estamos a viver uma fase de limbo, a tentar perceber se isto vai mesmo ter de dar um ou dois passos atrás. As restrições e a quebra da procura por parte do público vão trazer vários problemas e desafios: concorrência desmedida, menos pessoal técnico e menos qualificado, em virtude de terem de encontrar outras ocupações, redução drástica das equipas e, necessariamente, redução orçamental. Mas a solução para tudo isto passa muito por decisões políticas».
Paulo Salgado, que gere a empresa criada em 1993, viu, desde Março, 28 espectáculos serem adiados, um cancelado e neste momento aguarda que o telefone toque, para saber se os concertos que ainda estão assinalados na agenda serão confirmados, «saber se se adiam ou se se cancelam». Desde o dia do desconfinamento, a agência lisboeta que representa artistas como Sérgio Godinho, David Fonseca, Samuel Úria, Joana Espadinha ou Best Youth, entre outros, já fez cinco espectáculos, apesar de ser um número «bastante reduzido» se comparado com outros tempos.
No futuro próximo, a agenda da V&A «passa muito por produções próprias», em salas com a capacidade obviamente reduzida, sendo que os eventos ou transmissões online são um formato no qual a agência não se revê totalmente. «É apenas um complemento, não pode ser a ideia principal de espectáculo», refere Paulo Salgado, concluindo que «mesmo os espectáculos drive-in podem ser uma alternativa, mas levantam questões artísticas, de relacionamento entre artistas e audiência, por exemplo».
MEDIDAS URGENTES PARA UM FUTURO IMEDIATO
Para concluir, é importante referir que o tema precariedade neste sector já é antigo, mas a crise da pandemia trouxe-o de novo para a actualidade. E visto que estes trabalhadores raramente têm protecção social, algumas entidades do sector, como é o caso do CENA-STE, exigem agora uma resposta urgente e eficaz do Ministério da Cultura.
A saber:
– Um verdadeiro fundo de emergência social que envolva os ministérios e entidades responsáveis pelas diversas áreas sócio-profissionais que garanta a protecção imediata destes trabalhadores até retomarem de facto a sua actividade;
– Garantia de melhores condições laborais, permitindo uma carreira contributiva regular e permanente;
– Combate aos vínculos ilegais e instituição do contrato de trabalho, começando pela responsabilização das entidades empregadoras públicas e com financiamento público;
– Promoção de medidas de saúde e higiene em locais de concentração de público (salas de espectáculos, concertos, cinemas, etc) e respectivos meios para o fazer;
– Campanha de retoma da fruição cultural feita pelo Ministério da Cultura e dirigida ao público em geral;
– Reforço do financiamento ao sector através do Orçamento do Estado num mínimo de 1%;
– Levantamento exaustivo do tecido cultural existente, como forma de compreender os intervenientes no sector e qual a protecção laboral e social existentes;
– Rastreio e classificação das actividades profissionais ligadas ao sector e uma utilização mais eficaz e melhorada do Registo Nacional de Profissionais do Sector das Actividades Artísticas, Culturais e de Espectáculo (RNPSAACE);
– Definição formal e (re)enquadramento das actividades profissionais ligadas ao sector, nomeadamente na Classificação Portuguesa de Profissões (CPP), no Código das Actividades Económicas (CAE) e nos parâmetros do Instituto Nacional de Estatística.
A ministra da Cultura, Graça Fonseca, comprometeu-se, até ao final do ano, a finalizar o estatuto profissional da cultura e a rever estas exigências. É esperar para ver. Mas entretanto, e até lá, o cenário que muitos profissionais estão a viver é arrasador. Sem presente, nem perspectivas de futuro. Será que vão mesmo ficar todos bem?
Enfrentamos tempos de incerteza e a imprensa não é excepção. Ainda mais a imprensa musical que, como tantos outros, vê o seu sector sofrer com a paralisação imposta pelas medidas de combate à pandemia. Uns são filhos e outros enteados. A AS não vai ter direito a um tostão dos infames 15 milhões de publicidade institucional. Também não nos sentimos confortáveis em pedir doações a quem nos lê. A forma de nos ajudarem é considerarem desbloquear os inibidores de publicidade no nosso website e, se gostam dos nossos conteúdos, comprarem um dos nossos exemplares impressos, através da nossa LOJA.