Diz-me o que Ouves, Digo-te o que Calças
Sapatilhas, ténis, sneakers, vários nomes para algo que, mais do que simples calçado confortável, é parte de uma cultura. E, quando falamos de música, então assumem papel principal.
A glamorosa colecção que Beyoncé criou para a Adidas está bem gravada na memória imediata de muitos. Além da imagem de enorme apelo sensual da artista, a colecção, onde se incluem vários ténis reforça uma aposta mais ou menos recente, a de ter o empowerment feminino como símbolo.
No entanto, este e outros casos recentes, como a colaboração de Travis Scott com a Nike ou a de Kanye West e Pharrell Williams também com a Adidas, estão longe de atingir um estatuto de culto. Numa viagem muito rápida, olhamos as décadas mais icónicas neste aspecto, a de 70, 80 e 90. Até porque as tribos culturais musicais passaram a estar cada vez mais diluídas.
Se nos cingirmos ao hip-hop, há duas colaborações muito mais marcantes e que definiram muito do que seriam as cores dessa tribo cultural. Primeiro, a meio da década de 80, a Nike conseguiu atrair aquele que foi o “Rookie of the Year” na NBA, na época ’84-’85, e criou-lhe uns ténis que, no ano seguinte seriam colocados no mercado.
Embalados pelas proezas daquele que se tornaria no, considerado por muitos, melhor basquetebolista de sempre, os Air Jordan passaram a calçar meio mundo, com enorme predominância na cena hip-hop e R&B. Toda a gente queria ser como o Mike!
Já em 1991, Michael Jackson “defrontou” Michael Jordan, no vídeo de “Jam”, single do álbum “Dangerous”. Os Air Jordans no embate entre os dois MJs, dois dos maiores fenómenos de sempre na cultura popular. A partir daí, os Air Jordans estrelaram videoclips de toda a gente, do underground ao mainstream, de Kanye West, passando por Rihanna, a Jay-Z.
Ainda assim, a mais marcante associação entre ténis e música, no hip-hop ou qualquer outro género musical será a dos Adidas Superstar com os Run DMC, no explosivo crossover que criaram em ’86 com os Aerosmith. “Walk This Way” é um dos maiores fashion statements criados através da música.
Muito mais vezes do que cada um de nós pensa, diferentes expressões culturais possuem muitos paralelismos. A par dos Air Jordan e do hip-hop, outro género musical e os seus fervorosos adeptos adoptaram como regra visual modelos de ténis high-top. Ao longo da década de 80 e início da década de 90, era difícil ver um fã de música extrema (death, thrash, heavy, doom, etc.) que não tivesse calçado o seu “téni-bota”. Preferencialmente branco. Se fosse um par Reebok Royal ou Reebok Freestyle tanto melhor, mas Adidas ou Nike também faziam parte do conjunto que incluía calças justas ao ponto de cortar a circulação sanguínea, um blusão de cabedal e um battle jacket.
Porquê esta opção de calçado? Só se pode especular, mas talvez seja uma afirmação contra as botas de vaqueiro ou outros tipos de salto alto usados pelas rockstars que dominaram o mainstream na década de 70 e 80. Nesse caso, a inspiração, até se pensarmos nas roupas, estaria na fase nova-iorquina do movimento punk, quando os Ramones trouxeram para a ribalta os antecessores dos Converse All Star, os Chuck Taylor brancos! Usar essas sapatilhas era mais que uma opção estética. Tommy Ramone resumiu bem a atitude: «Nos anos 70 era rebeldia usar sneakers fora do ginásio. Fazê-lo entra anti-sistema. Era punk e arrogante andar de sapatilhas em vez de sapatos».
Já na década de 80 surgiu outra derivação do punk, com raízes em São Francisco e no Sul da Califórnia, o punk hardcore. A sua grande bandeira (pun intended) foram os Black Flag. T-shirt preta, jeans escuros (ou calções) e nos pés qualquer coisa que viesse emprestado do punk, desde Dr. Martens, creepers ou os Chuck Taylor.
Os rockers portugueses criaram uma alternativa. Num país ainda muito depauperado pela convulsão política (que ditaria a intervenção do FMI no final dos anos 70 e logo no início dos anos 80), não havia orçamento que resistisse a sapatilhas importadas. Na ausência de high-tops das grandes marcas desportivas ou dos Chuck Taylor, uma quase centenária marca portuguesa calçou a cena musical subversiva do país. Músico ou melómano que se prezasse, conjugava as jeans justas, o blusão de cabedal e a t-shirt (branca pela ramificação Ramones ou com estampagem de guerra pela ramificação heavy metal) com um par de ténis brancos da Sanjo! Foram bastante populares, mesmo. Hoje em dia existe uma edição dedicada aos Xutos & Pontapés, que são a reserva espiritual da cena rocker portuguesa dessa era.
Recuando novamente à década de 70 e ao punk britânico. Há um calçado, já referido acima, que trilha a ténue linha entre os sapatos e os ténis: os creepers. O calçado punk original, as Dr. Martens, apesar da sua origem operária (digamos assim) eram demasiado agressivos para os boomers, numa nação ainda cheia de cicratizes da Grande Guerra. Mas, curiosamente, foi no palco Norte Africano do conflito que surgiu uma das alternativas às famosas “botifarras”. Os soldados aí destacados, em usavam os creepers e a sua confortável sola crepe e a forma em camurça. Uma mistura de moccasin, huarache e brogues, os creepers ganharam notariedade no UK graças à “Senhora Dona Mãe do Punk”, Vivienne Westwood, e ao manager dos Sex Pistols, Malcom McLaren, que os vendiam na sua loja na 430 King’s Road, a icónica SEX.
Os creepers foram determinantes em duas ramificações surgidas em força nos anos 90. No Reino Unido, na cena de Manchester, permaneceram um padrão estético nas tribos musicais, acabando por, já nos anos noventa, na era dos Blur e dos Oasis, darem lugar aos modelos suede da Adidas e da Puma. Já nos Estados Unidos, as cenas hardcore e skater vira-nos evoluir para os Vans e para os Vision Street Wear.
Os últimos viriam a ganhar imensa popularidade junto da comunidade metaleira na primeira metade dos anos 90, quando usar high-tops brancos se tornara demasiado… Flashy! Os high-tops da Vision tornaram-se uma referência e criaram o cisma com os das grandes marcas desportidas que, fechando o círculo, passaram a ser quase exclusivamente adoptados pela cena hip-hop.