Bob Dylan: Há Livros que se Escrevem Sozinhos
2018-03-22, Altice Arena, LisboaÉ complicado conceber qualquer motivo pelo qual, face a um concerto como o dado na Altice Arena na semana passada, alguém se possa sentir traído por Dylan.
Nota: Não foi dada autorização para captar imagens do concerto.
Uma boa quantidade de fábulas (grande parte delas menos positivas) têm vindo a ser criadas em torno das performances ao vivo da figura incontornável que é Bob Dylan. Abundam na rede as descrições dos deploráveis espetáculos de Dylan do lado de cá da viragem do século, os depoimentos da sua voz para lá de irremediável e do modo como é incapaz de fazer jus ao material que o imortalizou na história da música – de tal forma que alguém que nunca tenha tido o privilégio de o testemunhar ao vivo, não resistiria a reduzir drasticamente as expectativas: uma coisa, e já vale por muito, é ver Bob Dylan em concerto, outra bem diferente é esperar de lá sair em êxtase.
Tratando-se de quem se trata, é um ponto de partida contra-intuitivo, antitético à carreira que o cantautor vem construindo há mais de meio século e cuja perseverança só pode ser explicada, presumimos, pela cada vez maior dificuldade em apanhá-lo em espetáculo. É complicado conceber qualquer outro motivo pelo qual, face a um concerto como o dado na Altice Arena na semana passada, alguém se possa sentir traído por Dylan. E não se trata apenas do argumento de que “a idade chega a todos” – ainda que esse seja um factor a ter manifestamente em conta – até porque, face a alguma pesquisa, não havia nenhum motivo para se esperar algo de diferente daquilo que se testemunhou no Parque das Nações: uma pequena retrospectiva dos mais memoráveis momentos da discografia secundária de Dylan, o inevitável apelo à sua época de ouro que se fez voz de uma geração, e uma “para-lá-de-saudável” fixação por Sinatra, a era do big band e o cancioneiro do Great American Songbook, o mesmo enamoramento que se tem feito sentir nas últimas léguas do seu percurso musical.
Dylan esteve igual a si próprio, através de música que sempre encantou mais pela autoria que pela performance, com uma base instrumental sempre tão simples quanto eficaz
É certo que estas componentes poder-se-iam ter apresentado em diferentes (e mais nostálgicas) proporções, o que certamente pesou na apreciação geral do concerto, mas que não se diga que Bob Dylan surpreendeu pela falta de êxitos no alinhamento. Parece-nos igualmente injustificado apontar a falta de vitalidade ou o desgaste da sua voz como motivo de fracasso, pelo simples facto de Dylan não ter feito mais do que se manter fiel a si próprio: à música que sempre encantou mais pela autoria do que pela performance, à base instrumental tão singela quanto eficaz e aos malabarismos vocais caracteristicamente desengonçados que, tocando em todas as notas erradas, chegaram a todos os lugares certos.
Se o tempo erodiu essa técnica ou embruteceu essa entrega, mais mérito se lhe dirija pela sinceridade com que a exibiu em Lisboa. E não é como se a idade não tivesse contribuído para exacerbar, nesta faceta quase-octogenária do cantautor, algumas virtudes que hesitaríamos em atribuir-lhe por regra: o charme, por exemplo, que transpirava das versões de Sinatra que conspicuamente ia deixando cair entre temas seus de discos vários. Pontuados, é claro, pelas verdadeiras jóias da coroa dos anos 60, que iam levantando palmas adequadamente comovidas: “Don’t Think Twice, It’s Alright” e “Blowing in the Wind” do emblemático “The Freewheelin’ Bob Dylan” e, de “Highway 61 Revisited”, a faixa-título e “Ballad of a Thin Man”, à qual coube o encerramento do espetáculo em Lisboa.
Há demasiados e demasiadamente flagrantes casos de esgotamento artístico e segundas (e terceiras) vidas fracassadas na indústria da música para que possamos encarar este como um deles. O Bob Dylan da Altice Arena não foi, certamente, o melhor que poderíamos ter apanhado (e nem um gostinho de “Blonde on Blonde”?), mas mesmo que tenha sido o pior, o ganho bruto esteve lá para quem lá estivesse a aproveitá-lo.
SETLIST
- Things Have Changed
It Ain’t Me, Babe
Highway 61 Revisited
Simple Twist of Fate
Summer Days
Make You Feel My Love
Honest With Me
Tryin’ to Get to Heaven
Don’t Think Twice, It’s All Right
Pay in Blood
Tangled Up in Blue
Soon After Midnight
Early Roman Kings
Desolation Row
Spirit on the Water
Thunder on the Mountain
Why Try to Change Me Now
Love Sick - Blowin’ in the Wind
Ballad of a Thin Man