Chrysta Bell, Sonhos Fuscos
2014-03-30, Casa Independente, LisboaHá vermelho vivo e azulejos no Largo do Intendente (o Pina Manique). Há hipsters boémios e prostitutas mal-amanhadas e todo um rol de com e sem abrigo alcoolizados. A água escorre de novo da fonte por tanto tempo seca, e o mais improvável cruzamento de improbabilidades por aqui ocorre diariamente. O cenário e as pessoas são, para abusar do cliché, “Lynchianos”.
Não é qualquer um que, no tempo de uma vida, se pode orgulhar de dar o apelido a um determinado cenário da condição humana (Orwell e Kafka são outros). E quando esse alguém, que já nem é bem uma pessoa, mas uma preposição, anuncia ao mundo que aqui se encontra algo que merece ser escutado, nós paramos. E escutamos. Foi então sob a mão apadrinhadora de David Lynch que Chrysta Bell se deu a conhecer. E é, talvez, sobre a égide do seu espírito onírico que ela chega ao largo. Mais concretamente à Casa Independente. Num palco construído para acolher tertúlias carbonário maçónicas, o ambiente é acolhedor, uma intimidade de cabaré. A hora é a do lusco-fusco (também chamada a hora mágica, e quiçá a mais Lynchiana de todas as horas do dia, e cá o temos de novo, a sombra omnipresente).
De muita presença em (muito pequeno) palco está o cenário construído: um toque de burlesco, um pouco de etéreo, muito clube decadente de fronteira, muito bluesy, muito fim da garrafa. O som no início é quase lo-fi, a voz um mastigar de palavras (Propositado? Misturador a tentar acertar com o som? Quem sabe; não é importante, se calhar no início ela ainda não está bem aqui, ainda é apenas um sonho, uma visão mal formada). E, mais uma vez, o inescapável movimento: estamos no interior da Road House de Twin Peaks, onde boa parte da música e da intriga da série se processava? Esta musa não é composta, no entanto, da candura angelical de Julee Cruise. Vem talvez de um lado mais duro da vida, da curva da estrada. Os movimentos são mais sinuosos e o sentido de humor mais negro.
A formação que a acompanha é um power trio de teclas (com muitos efeitos, muitos samples, criando a atmosfera), bateria dura e compassada, e baixo a marcar o tom e a passagem dos minutos e do dia para a noite. Serão sensualidade, ou mesmo voluptuosidade, os lugares comuns para descrever esta prestação? Como quem começa um texto referindo que era uma noite escura e tempestuosa? Mas era, ou pelo menos adivinhava-se. “Miss Bell” pareceu ter apanhado o comboio que dá o título ao seu álbum e desembarcado especialmente neste palco, nesta hora, neste salão antigo, quase uma festa particular, como quem sem querer acaba a noite na casa de alguém. Chrysta toca guitarra. Ou dança. Lentamente. Um lento propositado. E provocatório!
“Real Love” é um blues mastigado, música de fim de noite em casa de strip, em que o fim do turno acende a promessa de encontrar (ou de regressar) ao amor verdadeiro! “Angel Star” vem melancólica e esperançosa; será talvez uma elegia a um tempo e um modo que já passou! “This Train” é o comboio que, no filme Inception, prometia libertar o casal de protagonistas da felicidade ilusória em que viviam: «ridding to the future, the great unknown!»
Esta musa não é composta, no entanto, da candura angelical de Julee Cruise. Vem talvez de um lado mais duro da vida, da curva da estrada. Os movimentos são mais sinuosos e o sentido de humor mais negro.
Chrysta vai soltando a voz, o cabelo, a alma. Declara a paixão recém-descoberta por Lisboa (não declaram todos?!). Deverá ser sentida. As almas que dedicam as suas vidas a fazer trovas de amor e desespero e saudade e retornos tem sempre nesta cidade uma segunda casa! Como Nick Cave, de quem Chrysta resgata o clássico de “Henry’s Dream”. “Do You Love Me”, já no encore. E temos ainda direito a um segundo retorno ao palco e a uma segunda versão, desta vez de “Sycamore Trees”, tema chave de Angelo Badalamenti e, como não podia deixar de ser, David Lynch! Mais pesado, mais espesso do que na voz Jimmy Scott. E é assim, assumidamente sob a batuta e benção do padrinho, que Chrysta se despede.
Lá fora já se fez noite, e a atmosfera continua molhada, elétrica. As personagens que compõem o cenário habitual deste local terão talvez ouvido alguns dos acordes da actuação? Esperemos que sim pois esta é também e sobretudo a música deles! O, em boa hora, renovado Largo do Intendente, abriu as suas estranhas portas a uma das grandes intérpretes actuais do estranho, do avesso, do genuíno. Pedia-se quase uma residência permanente nesta casa, como fazem artistas em fim de carreira em Vegas! Este (pequeno) palco merecia uma artista deste calibre a animar todas as noites o carrossel da Lisboa esquecida e agora reencontrada!