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Clutch, Moonshine & O Sonho Americano

Clutch, Moonshine & O Sonho Americano

2022-08-02, Cineteatro Capitólio
Nero
Miguel Barros Grazina
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Alinhamento de luxo e a força da convicção na sua música. Os Clutch esmeraram-se por mostrar ao público português tudo aquilo que perderam nestas três décadas, numa alucinante viagem pela sua enorme discografia. Foi tudo um pomadão!

A pandemia forçara duas vezes o adiamento da tour europeia que finalmente materializou uma muito aguardada estreia em Portugal do grupo formado por Neil Fallon, Dan Maines, Jean-Paul Gaster e Tim Sult. O quarteto do Maryland protagonizou uma data-dupla no nosso país, subindo ao palco do Hard Club, no Porto, e do Cineteatro Capitólio, em Lisboa, a 1 e 2 de Agosto de 2022, respectivamente. Os ecos da noite anterior, na Invicta, davam conta de uma festa de arromba. Na capital, as coisas não terão sido muito diferentes, excepto o alinhamento, que a banda muda de noite para noite.

O American Dream assume muitas formas, mas talvez a principal seja aquela em que os desfavorecidos ou os mais improváveis têm a oportunidade de, através do seu esforço, do seu engenho e dos recursos que conseguirem capitalizar, ganhar fortuna. É uma noção cada vez romântica e menos concreta. Mas depois, assim de repente, a uma terça-feira de Agosto, com uma Lisboa escorada das suas gentes – em fuga para as zonas balneares ou concentradas no Estádio da Luz – os Clutch surgem-nos como o esplendor do ideal norte-americano. Uma banda que, surgida na explosão do nu metal, esteve sempre longe dos escaparates do mainstream e da aclamação universal, mas cuja resiliência e fé fervorosa na sua música lhes deu um estatuto cultual, maior a cada ano que passa. Enfim, talvez nunca venham a estar na garrafeira de cada casa, como o Jack Daniels, mas o seu moonshine passou de fora-da-lei a, nesta era neo-liberal, produto glamoroso.

Por falar em moonshine… Tim Stult passou a noite agarrado a uma SG da Banker. As Banker Guitars fazem parte da agenda Authorized Partnership Program que a Gibson publicou no final de 2019, onde concede licença especial aos luthiers de marcas boutique, nomeadamente a Jimmy Wallace Guitars, Banker Custom Guitars e Echopark Guitars, para construirem modelos com os formatos (corpo e cabeça) Les Paul, Flying V, Explorer, ES-335 e Firebird. Se visitarem o website da Banker Custom não há ainda exposta nenhuma SG, portanto ou se trata de um protótipo ou de um modelo custom. As guitarras são puras Gibson USA e, de resto, Matt Hughes, da Banker, foi o primeiro luthier de guitarras boutique a assinar o referido acordo com a gigante marca norte-americana. Infelizmente, o preço destes bichos é apenas ligeiramente mais convidativo que os originais. Nos amps, Stult esteve ligado a um Orange Rockerverb MKIII e, à falta de um Sunn Model T (que usa várias vezes), a um Marshall JCM800. Ao lado dos Ampegs SVT que amplificavam o Rickenbacker 4003, um Fender blackface iria ainda servir a ES-335 de Fallon.

A discografia dos Clutch é nada menos que abundante e o alinhamento escolhido para Lisboa foi tão demolidor como capaz de evocar esse percurso de mais de três décadas. Nesse sentido, “Passive Restraints” inaugurou a noite de forma perfeita. Repare-se, a versão original remonta aos primórdios da banda e foi restaurada recentemente (nas Weathermaker Vault Series) com Randy Blythe como convidado. Depois, de rajada, uma viagem a “Psychic Warfare” – um dos álbuns mais consensuais – através de “X-Ray Visions” e “Firebirds”. O som vai aumentando progressivamente de volume, mas durante todo o concerto nunca irá quebrar os espartilhos das limitações de ruído. É algo incompreensível que, ainda para mais numa sala “isolada” de prédios de habitação, nunca se tenha tornado verdadeiramente explosivo. E, já agora, a mistura penalizou imenso a voz de Neil Fallon.

A abordagem despretensiosa da banda ao concertos, com a altura reduzida do palco e consequente proximidade do público, deu a tudo isto um ar de assembleia pentecostal. Sem grandes artefactos de produção e iluminação bastante simples, apenas o extâse do rock ‘n’ roll celebrado em febril comunhão com os fiéis presentes.

Valeu todo o carisma, irascibilidade e humor do frontman que entre os elogios ao público e evocação do tempo que demoraram a chegar ao nosso país, soltava lacónicos agradecimentos como: «Thank you for the customary feedback». O seu dinamismo foi acompanhado a rigor pelas baterias de Jean-Paul Gaster. Já Dan Maines e Tim Sult demoraram um pouco a “aquecer”. De resto, o guitarrista foi mais metódico que exuberante. Poucas notas falhou e trancou fenomenalmente o groove dos riffs, mas foi demasiadamente rígido na execução e pouco fluído nos solos. Todavia, os Clutch sempre viveram, acima de tudo, do groove dos seus riffs. E falando de poder rítmico e groove nos riffs, há por aí poucos como os de “Burning Beard”. Malhão que antecedeu “We Strive For Excellence”, o primeiro dos dois temas no alinhamento daquele que será “Sunrise On Slaughter Beach” (o 13º álbum chega a 16 de Setembro de 2022).

A abordagem despretensiosa da banda ao concertos, com a altura reduzida do palco e consequente proximidade do público, deu a tudo isto um ar de assembleia pentecostal. Sem grandes artefactos de produção e iluminação bastante simples, apenas o extâse do rock ‘n’ roll celebrado em febril comunhão com os fiéis presentes. É, acima de tudo, a música quem fala quando se dá uma sequência como “The Soapmakers”, “A Quick Death In Texas”, “Earth Rocker” e “Ghoul Wrangler”. E se, numa altura destas, muitas bandas tirariam o pé do acelerador, doseando o dinamismo e as emoções do concerto, os Clutch pisaram-no a fundo. “(Notes From The Trial Of) La Curandera”, “Subtle Hustle” e “Mice And Gods” recuam ao tremendo período de 2004 e 2005 e dos consecutivos e fenomenais álbuns “Blast Tyrant” e “Robot Hive/Exodus”. Aliás, a abrir o encore, regressamos ao álbum de 2004 com esse épico sulista que é “The Regulator” e antes do encore, “The Mob Goes Wild” também evocou “Blast Tyrant”, mas no caso serviu para dar seguimento quase conceptual ao díptico que a antecedeu…

“How To Shake Hands” e “Red Alert (Boss Metal Zone)”, o outro dos temas do álbum em advento, remetem-nos para a acutilante crítica social e para a idiotização das corridas eleitorais e do acesso à informação. “Red Alert (Boss Metal Zone)” está mesmo directamente relacionado com uma das rábulas mais absconsas que os negacionistas e conspiracionistas da pandemia promoveram. Recordava Neil Fallon, frontman dos Clutch: «No início do ano passado, soube que o esquema do pedal Metal Zone da Boss estava a ser apresentado como ‘prova’ de que a vacina contra a COVID-19 tinha um componente electrónico para comunicar com as redes 5G. Era, claro, um tremendo disparate». Podem ler mais sobre essa imbecilidade neste artigo.

Nenhum concerto dos Clutch será digno sem “Electric Worry”, cantado a plenos pulmões pela plateia (mil pessoas?), antes da banda se despedir de forma quase narrativa, através de “Pure Rock Fury”. Foi tudo uma enorme pomada.

SETLIST

  • Passive Restraints
    X-Ray Visions
    Firebirds!
    Crucial Velocity
    Burning Beard
    We Strive for Excellence
    The Soapmakers
    A Quick Death in Texas
    Earth Rocker
    Ghoul Wrangler
    (Notes from the Trial Of) La Curandera
    Subtle Hustle
    Mice and Gods
    How to Shake Hands
    Red Alert (Boss Metal Zone)
    The Mob Goes Wild
    Spacegrass
    The Regulator
    Electric Worry
    Pure Rock Fury