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Dead Can Dance, (Pan)Espiritualidade & Panfonia

Dead Can Dance, (Pan)Espiritualidade & Panfonia

2022-06-01, Coliseu dos Recreios, Lisboa
Nero
Inês Barrau
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Liderados por Brendan Perry e Lisa Gerrard, para cujas vozes e perfeição vão escasseando adjectivos, os Dead Can Dance ofereceram mais um catártico e transcendental ritual xamânico a Lisboa.

Em 2019, Lisa Gerrard e Brendan Perry celebraram a carreira singular dos Dead Can Dance (DCD) num grande concerto na Aula Magna que, exaltou o álbum “Dionysus”. O regresso à Europa ficou logo aí prometido, devido ao sucesso, não só, dos concertos de Lisboa, como de toda a digressão, cuja bilhética esgotou quase invariavelmente em todas as cidades e salas por onde passou. Este regresso, adiado pela pandemia, veio celebrar triunfalmente uma discografia com nove álbuns de estúdio que já atravessa quatro décadas. A intoxicante experiência aural, que congrega exóticas correntes musicais que vão do Finisterra ao Tibete, apoiou-se numa setlist reordenada, mas não muito diferente daquela que pudemos ouvir na última visita. Seja como for, é difícil não se sentir uma atracção imediata pelos DCD, pelas sintetizações densas e pelo órfico magnetismo vocal de Lisa Gerrard.

MATÉRIA

Muito mais preenchido do que sucedera na última visita, o backline da banda é tão elegante como despretensioso. A sintetização, para lá das vozes, domina a criação de atmosferas. É uma questão prática, no fundo. Para recriar toda a geografia musical que é percorrida, apenas com instrumentação nativa, seria necessário um exército de músicos. Desta forma, em unidades ocultas do olhar, Jules Maxwell – que parece fazer as vezes de director musical – e Astrid Williamson percorrem e fundem a alargada panóplia de fontes sonoras. À imagem do que sucede na sintetização, a bateria é um abrangente modelo electrónico, uma Roland V-Drums que, pelo tamanho do bombo, arriscaríamos dizer tratar-se de uma TD-30K.

Mais clássico, o amplificador de Brendan Perry é um inefável Roland Jazz Chorus. Vai amplificar dois modelos Tremar (tremolo) Viking, os hollowbodies da Hagstrom. Para os cordofones de Robert Perry há um Fender Acoustic Pro que, no seu lançamento, em 2015, a marca cunhou como «amp audiófilo». Máquina capaz de mandar 200 watts, com canais para guitarra ou micro (com I/Os XLR ou jack), um woofer de 12” em neodímio e tweeter de alta definição. O Acoustic Pro possui ainda effects loop, entrada auxiliar, hall reverb, phase switch e até um tilt-back kickstand. Como sucede invariavelmente com os amps acústicos da Fender, foi algo ostracizado. Neste caso, isso é um crime.

Para os baixos, há um Markbass Micromark (por sua vez ligado a uma coluna Ampeg). Se permitem a derivação, este é um amp capaz de um som bem espesso, por culpa dos 50 watts a 8 ohms ou 60 watts a 4 ohms debitados através de um altifalante de 8”. Por isso, está nas escolhas de amps de baixo portáteis que apresentamos na AS #61. Vê-lo no palco dos DCD fez-nos sentir, de alguma forma, legitimados.

A percussão é a ponte entre mundos, o seu pulsar tribalista e xamânico serve de intermediação entre os sons divinatórios, a linguagem das pitonisas, e os devotos. Há um setup elaborado para Robert Perry, que durante todo o concerto dança e move-se tal como recordam aqueles que, ao longo dos anos, devoraram o filme do concerto gravado em 1994 no Mayfair Theatre, em Santa Mónica, Califórnia, e editado como álbum ao vivo sob o título “Toward The Within”.

METAFÍSICA

E o ritual iniciou assim, através de “Yulunga (Spirit Dance)” e os seus polirritmos. Lisa soa com poder angêlico desde o início. Nas batidas tribalistas, sincopadas, a sua mão esquerda conta o compasso. Depois, foi logo jogado o contraste do dualismo vocal do grupo, através do romantismo baritonal de Brendan Perry em “Amnesia” – como soam arrebatadoras aquelas pontuações de compasso com a espécie de trompas sintetizadas. Em “Mesmerism” passa a ouvir-se o exótico yangqin de Lisa, um instrumento de pouca projecção acústica que se ouve no Coliseu com articulada minúcia. O som está absolutamente luxuoso.

No primeiro acto do concerto o foco nos discos da icónica década de 80 e a lenta transição do post-punk até ao estatuto pan-geográfico e menos electrificado, consubstanciado em “The Serpent’s Egg”. Viajamos entre o contemporâneo e o hierofânico, arrebatados pela divinal “Persian Love Song” – raríssima ocasião – ou pela lindíssima balada gótica que é “In Power We Entrust the Love Advocated”, que soa muitomais lânguida e poderosa, com maior riqueza harmónica e mais camadas instrumentais, que na sua versão original em disco. Também “The Ubiquitous Mr. Lovegrove” se ouve revestida com um maior corpo de graves e consequentemente maior groove que a versão gravada em 1993.

Em “Sanvean”, onde Lisa Gerrard nos acolhe com calor uterino e eufonia, o silêncio é absoluto, como só uma diva poderia evocar.

Esse preâmbulo, digamos assim, foi encerrado de modo apogeico, com a interpretação de “The Carnival Is Over”, na qual Brendan Perry soou bem colado à elegância de Charles Aznavour, e os esplendorosos sobretons de Lisa Gerrard em “Cantara”. O som, repita-se, está tão poderosamente equilibrado que se distinguem com minúcia aqueles pequenos pratos de dedo que a diva usa na percussão deste tema. Zills no Médio Oriente e sāgāt no Egipto, tingsha no Tibete. São um instrumento cujo detalhe ilustra bem o esplendor da mistura oferecido pelo FOH. De Resto, “Cantara” foi um dos temas mais estrondosamente ovacionados na noite.

O ÚLTIMO OLÍMPICO

Então chega-se ao pulsante coração do concerto, o momento dá-se com a inalação de “Opium”. Depois, com a mente entorpecida somos acolhidos pelo calor uterino e eufónico de “Sanvean”. O silêncio é absoluto, como só uma diva poderia evocar. Depois de lisérgicos e embalados, caem as inibições (várias pessoas na plateia levantam-se para dançar) e somos confrontados com esses misteriosos rituais de morte e renascimento e loucura, com as síncopes rítmicas de “Dance Of The Bacchantes”, as psicoamantes dionisíacas e os seus rituais de abandono.

Eurípedes, de forma majestosa, assim os exalta na sua tragédia: «Ó venturoso, quem feliz conhece ritos de Deuses, consagra a vida e no tíaso põe a alma, é bacante nas montanhas em sacras purificações! Mistérios da grande mãe Cíbele são a lei, o tirso agita no alto, em hera coroado cultua Baco! Avante, Bacas, avante! Brômio, o Deus filho de Deus, Dioniso, trazei para casa, dos montes da Frígia às amplas ruas da Grécia, o Brômio! Teve-o a mãe em parto doloroso, à força, quando voaram trovões de Zeus, abortado do ventre o gerou enquanto deixava a vida golpeada pelo raio. Mas logo nos casulos do parto o acolheu Zeus Cronida — o ocultou na coxa — e com áureas fivelas o costurou às ocultas do olhar de Hera. Quando as Moiras definiram ele gerou o Deus de chifres táureos e com coroas de serpentes o coroou, daí que as Mênades entrançam feras víboras nos cabelos. Ó Tebas, onde Sêmele cresceu, Coroa-te de hera! Floresce, floresce, nas folhas verdes do frutífero teixo! Entrega-te a Baco nos ramos de carvalho e nos pinheiros, com peles rajadas de corça, coroa-te com fímbrias de alva lã e em volta das violentas férulas sacraliza-te! Logo a terra toda dançará, assim que Dioniso liderar os tíasos, monte acima, monte acima! Lá o bando das fêmeas espera longe da roca e do tear por Dioniso aguilhoadas!»

A efusividade desse encontro é depois alvo de como que uma exegése de séculos posteriores, pelos sons medievais da extraordinária de “Bylar”, a raridade composta por Lisa e por Robert Perry, o irmão de Brendan. Soa como se fosse feita por goliardos – os pobres e boémios amantes de vinho, estudantes de teologia e intelectuais mendicantes da Idade Média – os únicos que, sem as amarras da disciplina escolástica, seriam capazes de descobrir os paralelismos entre Dioniso e Cristo. Esta sequência foi clamorosamente aplaudida.

ALFA & ÓMEGA

Congregadoramente tribalista, “Black Sun” transporta o consolo da efusividade, antes da primeira despedida com a angelical “The Host Of Seraphim”. Os drones, o moderado pulsar rítmico, as vozes num plano devocional, com os mantras monásticos dos restantes músicos a envolverem as fogosas ululações de Gerrard… É absolutamente catártico. E os DCD deixam o palco sob intensa aclamação, preparando-se o encore.

“Children of the Sun” reflecte sobre a evolução humana e como o código genético acolhe infusões de memória ancestral até ao presente. É essa ponte de ressurreição cíclica, de eternida que abre o encore. Nestes actos rituais, o simbolismo é da maior importância e o concerto encerra como começou – Alfa e Ómega – com o contraste dualista de Gerrard e Perry. A grande sacerdotisa cantando quase acapella, não fora uma simples e espartana linha de sintetização a tradicional balada irlandesa “The Wind That Shakes The Barley”, pungente poema de Robert Dwyer Joyce, em homenagem aos combatentes da rebelião irlandesa contra o jugo da coroa britânica em 1798. Robert Perry acentua a melancolia, no início e no final, através do tin whistle. Depois, o seu irmão regressa ao palco e vem cantar “Severance”, de guitarra na mão, liderando os DCD ao cortar suave e melancolicamente a ligação umbilical criada ao longo de hora e meia.

SETLIST

  • Yulunga (Spirit Dance)
  • Amnesia
  • Mesmerism
  • The Ubiquitous Mr. Lovegrove
  • Persian Love Song (The Silver Gun)
  • In Power We Entrust the Love Advocated
  • Avatar
  • The Carnival Is Over
  • Cantara
  • Opium
  • Sanvean
  • Dance of the Bacchantes
  • Bylar
  • Black Sun
  • The Host of Seraphim
  • Children of the Sun
  • The Wind That Shakes the Barley
  • Severance