Dead Can Dance, sem palavras
2012-10-24, Casa da Música, PortoNOTA PRÉVIA: O mais fácil seria dizer que a primeira vez que os Dead Can Dance [DCD] actuaram no nosso país foi um daqueles concertos que são impossíveis de descrever. Quem não foi… bom, azar. Portanto queria pedir desculpa, desde já, pela escassez de justiça que estas palavras farão ao que se passou ontem na Casa da Música, no Porto. É que não é possível descrever aquelas coisas da ordem do misticismo, do assombroso.
Ontem, através da voz de Lisa Gerrard, descobri o som com que cada um de nós ouve a voz da sua mãe no coração. O poder, calor e ressonância que transmutamos dentro de nós.
De uma forma mais mundana, a verdade é que penso que quem ontem esteve na casa da música e nunca havia presenciado um concerto de DCD teve a imediata sensação, de que a voz de Lisa esteve, imagine-se, muito acima daquilo que ouvimos nos álbuns. E se a primeiríssima nota teve uma ténue falha de respiração, admito que isso terá sido a forma de percebermos que não estivemos a ouvir uma entidade divina, mas humana. Pois a partir daí, o que se ouviu só pode ser descrito como perfeição.
Isso acaba por ofuscar o trabalho de Brendan Perry, cujo timbre, naturalidade, suavidade e segurança das notas são simplesmente exemplares, mas e sendo um grande cantor ontem, tal como os restantes elementos a sua função foi a servir uma força divina como aquela que se percebe na voz de Lisa. Isso não invalida que a outra metade dos DCD não tenha também deslumbrado, porque o fez, especialmente na rendição de “Song of the Siren”.
A força de um ritual reside muito na sua preparação e os DCD souberam demolir alguma eventual resistência ou estranheza da lotação esgotada da Casa da Música perante o novo álbum, assim depois de “Children of the Sun” e “Anabasis” – depois de Perry e Lisa ambos terem tido o seu momento (uma alternância que se repetiu durante as duas horas de concerto) – surgiu logo o deslumbrante “Rakim”.
Um pequeno aparte para falar na acústica da Casa da Música. Um dos instrumentos de eleição de Lisa é o exótico yangqin, um instrumento de pouca projecção acústica, mas que ganhou através da sala uma dimensão condutora sempre ao nível dos três sintetizadores, que juntos com a bateria Dan Gresson [usou como previsto um kit digital da Roland, mas com pratos acústicos, com uma maior riqueza harmónica], constituíram um backline tão simples, como rítmica e melodicamente poderoso. Mesmo as notas “acanhadas” de Perry na bouzoki, com excepção de “Lamma Bada” em que executou de forma cativante as melodias gémeas do instrumento com as suas linhas vocais.
As músicas do novo álbum e temas como “Host of Seraphim” ou “Nierika”, através da soberba mistura sonora e acústica da sala, soaram sempre com uma força superior à registada nos discos. Não deixou de ser uma surpresa ouvir a deslumbrante “We Are Free”, theme song de “Gladiator”, o filme de Ridley Scott, mas foi possivelmente a música em que as coisas não correram tão bem à banda como um todo – pelo menos, a solidez não foi a tónica aqui. Mas obviamente que o objectivo é uma vez mais forçar o estado de hipnose induzido pelas melopeias de Lisa Gerrard.
No final foi a diva que, através de “Rising of the Moon”, embalou sozinha [apenas acompanhada por Jules Maxwell na sintetização] a despedida. Juntando um “You’re wonderful, I love you” à última nota da canção. Será difícil descobrir alguém que não tenha saído da sala com o coração a transbordar de calor.