Feist, Multitude Emocional
2023-09-21, Coliseu dos Recreios, LisboaO Coliseu dos Recreios não encheu para ver a Feist, paradoxalmente isso permitiu uma intimidade desconcertante entre a artista e o público. Com um magnetismo que provém de uma simplicidade encantadora, Feist levou-nos consigo num turbilhão de emoções contrastantes e ofereceu-nos um dos concertos do ano.
Feist regressou a Portugal trazendo consigo as canções do novo álbum, “Multitudes” (o seu primeiro trabalho em 6 anos). Produzido pela própria, em colaboração com parceiros de longa data, “Multitudes” sucedeu o aclamado álbum Pleasures (2017), que deu origem ao premiado podcast “Pleasure Studies”. O álbum ganhou forma logo após o nascimento da filha de Feist e a morte repentina do seu pai, dando por isso voz a um potente realismo cru que privilegia a relação entre artista, arte e a comunidade, uma vez que muitas das canções foram trabalhadas durante um espectáculo experimental.
Essa premsisa resultou, inquestionavelmente, um dos concertos mais extraordinários, encantadores e emocionalmente poderosos de 2023. O Coliseu dos Recreios pode ter estado longe de lotado (onde andam todos esses melómanos que enchem os festivais das operadoras telefónicas?), mas aqueles que ali estavam investiram a sua inteligência emocional na absorção do carácter confessional que Leslie Feist deu ao último concerto da sua digressão europeia e, certamente, vão demorar a esquecer duas horas hipnotizantes de música de uma intérprete verdadeiramente singular.
Não consigo recordar o contexto, mas há uma entrevista de Lemmy Kilmister em que o saudoso líder dos Mötorhead refere que uma banda, para ser efectivamente considerada como uma banda, necessita de se provar diante de um público, noite após noite, na estrada. E se Feist o fez…
Em Lisboa, Feist colocou-se à prova de duas formas: na primeira metade do concerto, quando subiu a um pequeno palco no meio da plateia do Coliseu e, ao melhor estilo de Elvis no ’68 Comeback Special, sozinha com a sua voz titânica e (quase sempre) com a sua sovada Martin 00-17 (acrescentada com o pickup LR Baggs M1), ofereceu uma experiência rara na música.
Sin-é
Foi desconcertante estar tão perto de uma artista de tamanha sensibilidade, mas essa intimidade ampliou o poder das músicas e o contrato emocional entre artista e plateia. Durante a abertura com “The Bad in Each Other” e a alegre “Mushaboom”, ficamos totalmente envolvidos no momento, na sua ressonância e num silêncio reverencial, até com receio de respirar para não estragar o processo alquímico em ebulição. É a descontração (imagine-se!) e o humor ligeiro de Feist que nos desperta, que fomenta a que a plateia se liberte do encanto e comece a trautear as canções com a cantora.
No Concerto no Coliseu, tudo foi ancorado na destreza sublime de Feist na guitarra – física, percussiva e ousada; moldando a dinâmica e a fisicalidade da música.
O paradoxo é evidente: a simplicidade de canções de construção e emoção requintadas como “The Redwing”, “Forever Before” e “A Man is Not His Song”. Tudo ancorado na destreza sublime de Feist na guitarra – física, percussiva e ousada; moldando a dinâmica e a fisicalidade da música. Sente-se nas vísceras cada ondulação de desordem, cada reviravolta harmónica e cada nota ressonante.
Ali tão perto, invocamos os concertos de Jeff Buckley no pequeno Sin-é ou as Gaslight Tapes de Dylan. Fazendo a transição das fitas que ouvimos para este pequeno palco improvisado no Coliseu dos Recreios, sentimo-nos no epicentro de algo verdadeiramente singular e irrepetível. Claro, a produção obedece a algumas coreografias, mas certamente que será difícil testemunhar algo tão livre de espartilhos.
Tristezas Não Pagam Dívidas
E de repente, tudo muda. A meio de “I Took All My Rings Off,” Feist desce do pequeno palco e começa a percorrer a multidão, antes que se perceba, ela está no palco principal e a cortina abre-se para revelar banda completa, que se junta a ela na música, num acto audaz e glorioso de teatralidade musical. O poder sónico que, subitamente, emerge do fundo da sala deixa todos atónitos. É Feist quem chama o público para junto de si, recordando «a canção que nos fez conhecer uns aos outros», a saltitante “My Moon My Man”.
A partir desse momento, acontece um concerto mais “tradicional”, mas sem nunca se perder a solenidade e, mais impressionante ainda, a proximidade que havia sido criada. “A Commotion” recorda-nos do peso sónico e catártico desse extraordinário álbum que é “Metals”. Um colosso harmónico cujos apontamentos rítmicos (da percussão ou não) nos atinge como um comboio de carga.
Os contrastes sucedem-se, em múltiplas formas e feitios. É nessa dinâmica que se seguem “I Fell It All” e “Any Party” e emoções tantas vezes conflituosas vão sendo ordenadas e harmonizadas em algo que transcende a experiência física e as barreiras psíquicas que tantas vezes nos impomos como mecanismo de sobrevivência. Por falar nisso, “Calling All The Gods” foi, absolutamente visceral, o maior momento da noite. E se no pequeno palco nos fez pensar em Buckley ou Dylan, no final de tudo, uma vez mais sozinha com a sua Martin, abdicou um pouco do sentido mais jazzy da versão original e transfigurou-se em Joni Mitchell numa assombrosa interpretação de “Gatekeeper”.
Houve vários instantes no concerto em que Leslie Feist foi iluminada por um holofote de palco vindo de trás e se juntava à neblina do fumo seco, a pairar no ar. Então a luz etérea contornava a silhueta de Feist como um Espectro de Brocken, fazendo com que a sua pequena estatura a transfigurasse e revelasse a verdade do seu espírito, que se via imponente e grandioso na projecção. Uma imagem que encerra em si tudo aquilo que foi a noite de Lisboa.
SETLIST
- The Bad in Each Other
Mushaboom
The Redwing
Century
Forever Before
Become the Earth
A Man Is Not His Song
I Took All of My Rings Off
My Moon My Man
A Commotion
I Feel It All
Any Party
Hiding Out in the Open
Caught a Long Wind
Calling All the Gods
In Lightning
Sea Lion Woman
1234
Of Womankind
Love Who We Are Meant To
Gatekeeper