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Glenn Hughes, Um Fogo Que Arde e Ainda Se Vê

Glenn Hughes, Um Fogo Que Arde e Ainda Se Vê

2023-05-10, Salão Preto e Prata, Casino Estoril
Rodrigo Baptista
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Numa viagem musical que nos levou até 1973-75, Glenn Hughes confirmou o seu estatuto de lenda viva do rock com uma atuação eximia. Entre jams e solos à moda antiga, juras de amor e um desfilar de clássico atrás de clássico, a protagonista da noite foi mesmo a voz de Glenn, que, com os seus agudos retumbantes arrepiou muitos dos que estiveram presentes.

A idade é só um número“, é uma expressão que certamente muitos já ouviram para descrever pessoas mais idosas, mas que ainda se apresentam na plenitude das suas capacidades mentais, físicas, e, porque não neste contexto, performativas.

Quem se deslocou ao Casino Estoril para assistir ao concerto de Glenn Hughes, pôde comprovar que o veterano músico britânico é a personificação perfeita desta expressão. Do alto dos seus 71 anos, Hughes apresentou-se não só numa excelente forma física como também demonstrou toda uma lucidez jovial ao nível do discurso e da postura performativa em palco. Contudo, o destaque tem mesmo que ir para a sua voz, que se mantém intocável passados mais de 50 de anos de carreira, um feito deveras impressionante tendo em conta o historial de Glenn no que ao álcool e drogas diz respeito. E perguntam vocês: «Mas ele ainda consegue sacar aqueles agudos?» Não só consegue, como demonstra ainda uma maior mestria em termos de controlo dinâmico. Só para terem uma ideia muitas das vezes Glenn acabava de vocalizar certas frases a uma considerável distância do microfone, mas a sua voz continuava a ecoar pela sala de forma audível e cristalina.

São poucos os músicos da geração de Glenn que podemos referenciar por ainda se apresentarem ao vivo numa forma irrepreensível, talvez Paul Rodgers (ex-Free/ Bad Company) seja o único que ainda possa rivalizar com Hughes. Mas isto, só demonstra que esta é uma “espécie” em claras vias de extinção. A noção de rockstar foi um conceito que surgiu precisamente nos anos 70, uma época onde o talento e a singularidade artística se tocavam de uma forma quase divina e Glenn Hughes é um dos últimos resistentes que ainda se apresenta na linha da frente.

As 50 Sombras da Púrpura Escura

O mote do espetáculo era a celebração do 50º aniversário, tanto da entrada de Glenn Hughes nos Deep Purple, como do lançamento do álbum “Burn”, mas foi com “Stormbringer”, faixa titulo do segundo álbum que Glenn gravou com a banda, que deu início ao concerto. Com um som quase imaculado, foi-nos logo dada a possibilidade de escutar todos os instrumentos com clareza, incluindo o baixo de Glenn que não ficou escondido atrás da guitarra de Soren Andersen, da bateria de Ash Sheehan e do Hammond de Bob Fridzema. “Might Just Take Your Life” foi a primeira visita ao álbum que está ser celebrado e rapidamente percebemos que a estratégia adotada por Glenn para estes concertos é a de estender as músicas, em forma de jams, para além da sua duração convencional. Isto não só demonstra a posição da banda em não querer apresentar um espetáculo pré-formatado, pois dá muito mais liberdade criativa aos músicos, mas também ajuda a preencher o tempo de atuação, visto que a setlist apresentou apenas dez músicas.

Com o seu Precision Custom Nash Guitars (bastante semelhante ao Fender que utilizou em 1974 na tour de “Burn”) ligado a um Orange AD200B Mk3, Hughes é claramente a estrela da banda, mas “Sail Away” trouxe-nos um Ash Sheehan completamente endiabrado na bateria, ao demonstrar todos os seus truques num solo que incluiu os famosos drum sticks swirls, o seu rufo na tarola a uma só mão e um efeito visual com água a chapinhar nas peles, e se dúvidas existissem quanto à competência do baterista, essas dissiparam-se quando vislumbrámos na plateia Alexandre Frazão, um dos mais respeitados bateristas portugueses, a abanar a cabeça em sinal de aprovação. Seguiu-se o groove meio psicadélico de “You Fool No One” que colocou em evidência a qualidade virtuosística de Soren Andersen. Substituir Ritchie Blackmore não é tarefa fácil, mas o guitarrista dinamarquês fê-lo com distinção com recurso às suas duas Fender Stratocaster 70s Style ligadas a dois Marshall JCM 800.

Por esta altura, e apesar da atuação irrepreensível, o ambiente que se fazia sentir na sala apresentava-se algo estranho. Para além da sala se apresentar algo despida e com a configuração de lugares sentados a não ajudar, sentiu-se pouco entusiasmo e pouco calor a emanar do público. As reações às músicas e às declarações de Glenn eram também elas pouco efusivas, o que nos leva a crer que grande parte da plateia era composta por curiosos, e que apenas uma pequena percentagem do público é que era mesmo fã e conhecia realmente o catálogo das Mk III e IV dos Deep Purple. Contudo, esse comportamento acabaria por se alterar com a chegada de “Mistreated”, essa balada bluesy que colocou em total evidência a voz soulful tão característica de Hughes. Após ouvirmos este tema ao vivo ainda nos deu mais a sensação de que Ritchie Blackmore o escreveu após ter escutado “Since I’ve Been Loving You” dos Led Zeppelin. Já na coda do tema, Hughes agigantou-se e deitou tudo cá para fora numa vocalização improvisada a capella plena de intenção e sentimento.

“Gettin’ Tighter”, “This Time Around”, só com a voz de Hughes e o Nord Stage 3 de Bob Fridzem,  e “You Keep On Moving” foram os temas escolhidos para revisitar “Come Taste The Band”, único álbum gravado com a Mk IV e com o malogrado guitarrista Tommy Bolin. Desta forma, Glenn utilizou este momento para dedicar esta celebração não só a Bolin, mas também a John Lord, o eterno teclista dos Deep Purple que faleceu em 2012.

Sem darmos pelo tempo passar já estávamos no encore. O público ainda não estava disposto a ir para casa, pois ainda faltava ouvir os dois maiores clássicos da noite.

Sem darmos pelo tempo passar já estávamos no encore. O público ainda não estava disposto a ir para casa, pois ainda faltava ouvir os dois maiores clássicos da noite. Rapidamente a banda regressou ao palco, e impulsionado pelo entusiamo do momento, o público lá se levantou para experienciar o concerto como ele deveria ter sido experienciado desde o seu início. “Highway Star” foi então a escolhida para abrir o encore e aí a energia da sala subiu de forma exponencial. O tema faz parte do período correspondente à Mk II, quando Glenn ainda não estava na banda, mas é um tema demasiado incontornável para não ser tocado neste concerto. Mais uma vez Hughes foi irrepreensível nos agudos, que aqui, com todo o mérito, são originais de Ian Gillan, mas Soren Andersen foi um monstro autêntico no solo que consagrou Ritchie Blackmore como um dos melhores guitarristas da história do rock. Para fechar a noite em apoteose, a banda partiu para “Burn”, essa malha hard rock que deu a conhecer uma das melhores parelhas vocais da história do rock, Glenn Hughes e David Coverdale. Ficou assim fechada uma noite onde sem recurso a playbacks e a grandes produções o rock falou mais alto e demonstrou a sua vitalidade. Como diz Glenn Hughes: «rock ‘n’ roll will never die.»

SETLIST

  • Stormbringer
    Might Just Take Your Life
    Sail Away
    You Fool No One
    Mistreated
    Gettin’ Tighter
    This Time Around
    You Keep On Moving
    Highway Star
    Burn