“NOVA (pop)” é um trabalho de coragem de Miguel Ângelo. Ao lado de Surma, Filipe Sambado, Chinaskee e dos D’Alva, o Delfim criou uma fantasia pop, repleta de cruzamentos geracionais e revestida por um deslumbrante corpo sonoro.
Quando publicamos artigos relativos ao trabalho do Miguel Ângelo ou dos Delfins, há uma animosidade latente na maioria dos comentários que surgem nas redes sociais em relação a esses assuntos. Como se fosse algum imperativo dialético menosprezar a música da icónica banda nacional ou do seu frontman. É certo que, na nossa redacção, também não gostamos de toda a música que fazem esses veteranos da pop, mas daí a ter preconceitos é um salto considerável… Ainda mais ouvindo este trabalho.
Nem bem um álbum, nem bem um EP, mas mais este último. “NOVA (pop)” é o conjunto de canções criadas e produzidas num exercício criativo que Miguel Ângelo iniciou em 2019 com nomes meritórios da nova música nacional. Ao longo dos últimos meses fomos conhecendo o resultado dessas colaborações, bem como os vídeos que as ilustram. E cada uma das seis canções foi sendo surpresa gratificante. Pelas fusões estéticas, pelo carácter omnipresente de Miguel Ângelo e pela personalidade evidente de cada um dos colaboradores, pelo enorme som que tem a produção cristalina de cada tema e o luxuoso corpo sonoro do disco no geral.
“NOVA” resulta da acção directa de Filipe Sambado e Chinaskee sobre demo de Miguel Ângelo, que «com liberdade total e autonomia participam nele e assinam a sua produção». Na outra proposta desta parceria, “A Cantiga”, impera mais o perfil estético de Miguel Ângelo. Mas ambas revitalizam o perfil vocal do cantor e as suas melódicas harmonizações corais. São os dois temas ritmicamente mais cerebrais do EP.
“Aquista” resulta da colaboração entre Miguel Ângelo e Surma, no campo da composição e produção. «O ponto de partida foi um pequeno livro de Herman Hesse, ao qual o autor roubou o título e o ambiente de que necessitava para se inspirar. A experiência sonora em “Aquista” transporta-nos para uma dimensão hermética – ao mesmo tempo bela e delicada – numa assombração derivada da estadia de Hesse nas Termas de Baden, Suíça, no ano de 1923». Essa sensação etérea é exemplarmente transporta para o plano físico através das sintetizações e das cativantes manipulações de processamento vocal na mistura, que criam um ambiente quase sobrenatural. Algo que tem sequência no spoken word (com sintetizações krafwerkianas ou tarangerine dreamescas) assinado singularmente por Miguel Ângelo.
Depois há os dois temas daquela que era uma colaboração quase obrigatória: Miguel Ângelo com os D’Alva. Com Ben Monteiro e Alex D’Alva Teixeira como timoneiros, “Carnival” e “Quimera” são «a viagem que os une entre o passado, o presente e futuro da música popular». As referências geracionais cruzam-se de forma perfeita, fechando círculos e criando pontes entre décadas. Temas directos e vibrantes que capturam o espírito de uma banda que está na plena posse das suas capacidades e o savoir faire de um artista que está cristalizado no nosso cancioneiro pop, mas que se revela humilde e despretensioso neste novo trabalho.
Nesse sentido, “NOVA (pop)” é um exercício fascinante e meritório, à imagem do arrojo que, por exemplo, demonstrou Lena d’Água em “Desalmadamente”, disco que a levou à nossa lista de melhores de 2019. Voltando ao início, se os músicos se despem de preconceitos, porque raio os ouvintes não?