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Mötley Crüe, Ainda os Reis do Umlaut

Mötley Crüe, Ainda os Reis do Umlaut

2023-06-23, Passeio Marítimo de Algés
Nero
Inês Barrau
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Longe do seu pináculo de forma, os Mötley Crüe estrearam-se finalmente ao vivo em Portugal com uma força digna da reputação de ferocidade e irascibilidade que os tornou nos monarcas da Sunset Strip na década de 80.

2020 pretendia ser o ano de muitas reuniões, depois de terem sido confirmadas as reuniões de Mr. Bungle, Faith No More (que já não foi adiante devido à pandemia), Rage Against The Machine, Black Crowes (cuja passagem por Lisboa pudemos acompanhar) e dos Mötley Crüe. Estes últimos tinham mesmo assinado um contrato de reforma, após terem anunciado a última digressão da carreira em 2014. Mas, de repente, aconteceu “The Dirt”. A adaptação cinematográfica que a Netflix produziu a partir da biografia da irascível banda foi um enorme sucesso, revitalizando o interesse nos Crüe e assim surgiu o vídeo que revela a destruição do dito contrato de reforma – narrado por um dos protagonistas do filme, Machine Gun Kelly, que interpreta o baterista Tommy Lee na película.

Ainda antes da confirmação oficial, já haviam surgido rumores de estar a ser preparada uma digressão a juntar os Mötley Crüe aos Poison e aos Def Leppard. Logo confirmada oficialmente. Ora, inicialmente os fãs portugueses não acalentavam grandes esperanças de ver os Mötley Crüe em Portugal, afinal e apesar do estatuto colossal da banda a nível mundial, Vince Neil, Nikki Six, Mick Mars e Tommy Lee nunca haviam pisado juntos um palco no nosso território. Isso mudou quando a Everything Is New confirmou a presença dos reis do sleaze rock no Passeio Marítimo de Algés, no dia 23 de Junho de 2023. Os Def Leppard também foram confirmados, já os Poison acabaram por nem iniciar a tour.

«Depois de finalmente voltar à estrada e ter uma monumental tour de Verão nos Estados Unidos e Canadá este ano, estamos muito entusiasmados por trazer esta enorme digressão de estádios às principais cidades do mundo e arrancar na Europa em Sheffield, onde tudo começou para nós há 45 anos», disse Joe Elliott, frontman dos Def Leppard. «Tivemos uma experiência incrível com a The Stadium Tour na América do Norte neste Verão e mal podemos esperar para levar os nossos concertos a todo o mundo com a The WORLD Tour em 2023. Crüeheads na América Latina e Europa: Preparem-se! Estamos a chegar e mal podemos esperar para finalmente ver-vos a todos novamente no próximo ano!», afirmam, na altura, os Mötley Crüe num comunicado em conjunto.

Além da ausência dos Poison, houve um outro senão verdadeiramente significativo. Já depois da confirmação desta data e da leg europeia, em 26 de Outubro de 2022, o guitarrista Mick Mars (que já conta mais de 70 anos), anunciou que não iria mais fazer mais digressões com os Crüe, por causa dos seus problemas de saúde. Um representante do músico enviou um comunicado à Variety, onde se lia: «Mick Mars, co-fundador e guitarrista da banda de heavy metal Mötley Crüe durante os últimos 41 anos, anunciou hoje que, devido à sua luta dolorosa contra a Espondilite Anquilosante (A.S.), não poderá fazer mais tours com a banda. Mick continuará a fazer parte da banda, mas já não consegue aguentar os rigores da estrada. A Espondilite Anquilosante é uma doença degenerativa extremamente dolorosa e incapacitante, que afecta a coluna vertebral».

No dia seguinte, chegou a confirmação de outro rumor de longa data: o substituto de Mars em palco seria nada mais nada menos que John 5, mais conhecido por tocar com Marilyn Manson, por estar na banda de Rob Zombie desde 2005 e por ter uma relação chegada com alguns dos membros dos Crüe, até tem uma banda com um deles. Em Maio de 2021, o guitarrista anunciou a criação dos L.A. Rats, um super grupo em que se junta a Six, Rob Zombie e Tommy Clufetos. Até ao momento, lançaram apenas uma gravação, uma versão de “I’ve Been Everywhere”, incluída na banda sonora do filme “The Ice Road”, de Liam Neeson. «Embora a mudança nunca seja fácil, aceitamos a decisão do Mick de se retirar da banda devido aos desafios com a sua saúde», escreveu a banda em comunicado.

«Vimos o Mick gerir a sua Espondilite Anquilosante durante décadas e sempre a geriu de uma forma muito corajosa. Dizer ‘basta, já chega’ é o derradeiro acto de coragem. O som do Mick Mars ajudou a definir os Mötley Crüe desde o momento em que ligou a sua guitarra no nosso primeiro ensaio em conjunto. O resto, como se costuma dizer, é história. Vamos continuar a honrar o seu legado musical. Vamos cumprir os desejos do Mick e dar continuidade à nossa digressão pelo mundo em 2023 como estava planeado. É claro que sabemos que é preciso um músico absolutamente notável para ocupar o lugar de Mick, pelo que estamos gratos que o nosso bom amigo John 5 tenha concordado em embarcar nesta aventura connosco». John 5, por seu lado acrescento: «Sinto-me honrado por dar continuidade ao legado de Mick e estou ansioso por tocar estas canções».

Claro que isto não ficou por aqui. Mars acabou por denunciar brechas contratuais e acusou os seus antigos colegas de traição. Os restantes membros da banda retaliaram, afirmando que Mars deixara de ser musicalmente competente. As coisas ficaram feias e descambaram numa disputa legal. Chegados a Lisboa pela primeira vez, após 43 anos de carreira, é uma pena que os Mötley Crüe o tenham feito sem o veterano guitarrista, logo ele que foi tão determinante para a agressividade sónica da banda, resgatando-a das garras da mera “espampanância” e criando hinos como “Wild Side”, malhão que abriu o concerto.

Dito isto, John 5 não teve uma performance nada abaixo daquilo que Mars sempre mostrou nos Crüe, na verdade até é mais shredder.

Dito isto, John 5 não teve uma performance nada abaixo daquilo que Mars sempre mostrou nos Crüe, na verdade, até é mais shredder. Na opinião de quem vos escreve, perde no carisma e na personalidade sónica. A velocidade da mão direita tem mais assinatura que a de Mars. Depois, o som de guitarra de John 5 esteve com uma compressão e uma parede de distorção absolutamente impenetrável. O poder foi evidente, mas a ausência de dinâmica também. Considerando o estado da voz de Vince Neil, percebe-se a opção. A estridência maquilha as actuais incapacidades do frontman e, de qualquer forma, Vince nunca foi um cantor excepcional, já os Crüe sempre foram mais amigos do estoiro que da subtileza. A sobrecarga eléctrica assentou que nem uma luva numa sequência estrondosa de malhas: “Shout At The Devil”, “Too Fast For Love”, “Don’t Go Away Mad (Just Go Away”, que soou mais musculada e menos no seu registo semi-acústico original, “Saint Of Los Angeles”, “Live Wire”, “Looks That Kill” e “The Dirt”. Ufa!

Absolutamente singular, a Telecaster John 5 Ghost apresenta um corpo em amieiro e um braço em ácer de uma única peça, com um acabamento Arctic White, acentuado por detalhes em vermelho e um pickguard e placa de controlo espelhados e brilhantes. Os humbuckers DiMarzio D Activator proporcionam um som harmonicamente rico e moderno, aproveitado por um conjunto de controlos orientado para o desempenho, com um selector de 3 vias montado na parte superior, para uma rápida comutação dos pickups e um volume principal montado no pickguard e um “kill switch” estilo arcade, para efeitos de interrupção rápidos que seriam protagonistas no solo de guitarra a meio do concerto. Antes disso, soou arrasadora e mais ajustada ao carácter rocker moderno de malhas como “Saints Of Los Angeles” e a aclamadíssima “The Dirt” – sem dúvida, muitos dos presentes vieram à boleia do colorido filme biográfico da banda, estreado na Netflix.

Entre recém-conversos e fãs de sempre, o Passeio Marítimo de Algés esteve muito longe de encher, mas com o “olhómetro” a apontar para algo entre os 15 e os 20 mil presentes, a moldura humana não deixou de ser impressionante. Para uma banda que raramente teve airplay nas rádios e televisões lusas, diria mesmo que é uma prova da resiliência do rock. Será a paixão a falar mais alto, mas seria interessante testar a teoria: ostracizar uma qualquer diva Pop/R&B, nas frequências radialistas nacionais, durante vinte ou trinta anos e verificar quanta gente estaria presente diante do palco…

Por esta altura, entre o solo de John 5 e um medley algo estéril (Rock and Roll, Part 2 / Smokin’ in the Boys Room / Helter Skelter / Anarchy in the U.K. / Blitzkrieg Bop), as coisas abrandaram suficientemente para permitir consecutivas e sequiosas viagens ao bar. Afinal, era necessário afinar a goela para a icónica power ballad da banda: “Home Sweet Home”. Depois disso, as coisas tornariam a acelerar rumo à apoteose, com “Dr. Feelgood” – quiçá a malha que os Crüe tiveram mais dificuldade em traduzir para palco nesta noite -, “Same O’l Situation”, “Girls, Girls, Girls”, “Primal Scream” e, naturalmente, “Kickstart My Heart”.

De fora ficou o espalhafato dos solos de bateria de Tommy Lee, que também acabou por surgir com um kit DW mais reduzido do que aquele com o qual iniciou a digressão. Já se esperava que estivessem ausentes, mas a título pessoal teria sido um excelente bónus ouvir uma malha como “Toats Of The Town” (do primeiro álbum) ou “Mutherfucker Of The Year” (do último álbum). Nikki Sixx acabou por estar algo discreto, mas expressou-se com gratidão genuína pelos números que Lisboa reuniu diante de si. No final, considerando o contexto e as condicionantes, o concerto foi muito melhor do que talvez muitos tivessem antecipado.

SETLIST

  • Wild Side
    Shout at the Devil
    Too Fast for Love
    Don’t Go Away Mad (Just Go Away)
    Saints of Los Angeles
    Live Wire
    Looks That Kill
    The Dirt (Est. 1981)
    Guitar Solo
    Rock and Roll, Part 2 / Smokin’ in the Boys Room / Helter Skelter / Anarchy in the U.K. / Blitzkrieg Bop
    Home Sweet Home
    Dr. Feelgood
    Same Ol’ Situation (S.O.S.)
    Girls, Girls, Girls
    Primal Scream
    Kickstart My Heart