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Tool, A Unimorfologia e Transcendência dos Objectos

Tool, A Unimorfologia e Transcendência dos Objectos

2019-07-02, Altice Arena
Nero
Paulo Maninha
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Numa experiência quase religiosa, os Tool foram majestosos na Altice Arena, através de um concerto imperial e catalisador de uma intensa experiência sensorial.

Não se pode dizer que tenham havido surpresas (e, no entanto, estas existiram) no concerto dos Tool. A banda não edita há uma carrada de tempo (irá quebrar esse silêncio no próximo dia 30 de Agosto), portanto a playlist seguiria o percurso da discografia, além disso, os dois temas novos apresentados, “Descending” e “Invincible”, também já eram conhecidos através de bootlegs. A postura do quarteto, proibindo esta nova praga de viver concertos através de um ecrã, anunciada nas redes sociais e amplamente exposta na Altice Arena (por exemplo, com cartolinas nas costas de cada cadeira) também só terá surpreendido os mais incautos.

E por mais pseudo polémica que tenha gerado, certamente não haverá ninguém que a esta hora não esteja agradecido por ter visto um concerto focado no palco, no som e na experiência visual, porque isso permitiu (tenham-no feito de forma consciente ou inconsciente) transcender as correntes que os objectos de ligação ao mundo digital criaram no ser humano actual, mesmo que por apenas uma hora e meia.

Assim, cada um dos cerca de 20 mil indivíduos ali reunidos, foi feito uno com a banda e com o monumental concerto que esta ofereceu.

Passavam alguns segundos das 21h quando se ouviu, em sample, as locuções radiofónicas e os graves pulsantes da introdução de “Third Eye”. E a viagem começou com “Ænema”, evocando o segundo álbum dos californianos, o primeiro com Justin Chancellor. O baixista, tal como os colegas, soou desde logo, desde o primeiro segundo, com um tremendo coice e excelente recorte sonoro. Além da enorme potência sonora, o espectro harmónico de cada instrumento ouvia-se exemplarmente recortado, com cada um a soar afiadíssimo. Na simples, mas versátil produção visual, viam-se as icónicas figuras humanóides do vídeo promocional (realizado em animação stop-motion) dessa canção que versa sobre a cultura de celebridades. Aberrações dos arquétipos de Jung e Freud, aliás o protagonista do vídeo move-se num meio aquático (embriónico), ligado a um cordão umbilical, num exercício simbólico de abandono do material, para transcender o ego e abraçar o idílico inconsciente feminino.

PARABOLAS

O assombro inicial em que esta interpretação deixou o público foi quebrado com “The Pot”. A Arena despertou com o sonzaço e groove demolidores e fez coro a Maynard nesse single de “10,000 Days”. É um chavão que já usámos noutras ocasiões, mas ao segundo tema estávamos a assistir ao concerto do ano. No centro do fundo de palco, eis o heptagrama. O potente símbolo da Kabbalah que representa os sete dias da Criação ou os primeiros sete versos do Alcorão, carregado, nas tradições pagãs, de hierofania mágica, ou simbolizando os sete planetas que os primeiros alquimistas conheciam. Inconscientemente, exercendo um poder de magnetismo sobre o público.

Quando a banda iniciou “Parabola”, chegava ao que será a suma das suas idiossincrasias, o álbum “Lateralus”, iniciou uma viagem ao fundo da consciências. Aí teve lugar uma curva de crescimento visualmente exponencial, para potenciar uma descensão interior, através das ilustrações de Alex Grey e das suas visões enteogénicas, visões dos mundos subtis, cuja principal fonte de inspiração são as plantas visionárias do planeta, especialmente a grande medicina da selva amazónica que é a Ayahuasca.

Do nosso macrocosmos interior, a banda conduz-nos mais fundo, à escuridão órfica, com “Descending”. Uma monolítica pirâmide negra, coroada com o heptagrama, domina a Arena, com as cruzadas simbologias anabáticas e catabáticas (a base terrena apontando ao alto e este, por seu lado, expandindo para a terra). O público mantém um temor reverencial diante deste monumento visual e sónico, onde se destaca a interpretação de Danny Carey, na primeira parte da canção, e depois a de Adam Jones, iniciando o seu protagonismo solista com slide, através de arrastos melódicos tão simples como imponentes. No monumental final do tema, surgem poderosos, e todavia discretos, apontamentos de sintetização.

Não será inocente a imagem da pirâmide, se nos recordarmos do “erro matemático” que se pensava conter esta forma arquitectónica, até se descobrir o valor Phi (que corresponde a 1,618), e a sua progressão espiralada, como sucede com a sequência de Fibonacci, com a qual a banda compôs “Lateralus”.  Durante séculos, o homem procurou a beleza perfeita, a proporção ideal. Os gregos criaram o rectângulo de ouro, do qual se extraiu uma proporção: o lado maior dividido pelo lado menor. E a partir dessa proporção tudo era construído. Assim foi erigido o Parthenon: os rectângulos que formam a face central e a lateral, a profundidade dividida pelo comprimento… Tudo com proporção 1,618. Descobriu-se depois que os egípcios haviam usado essa valor nas pirâmides, nas quais cada pedra era 1,618 menor do que a pedra de baixo. Anabase, catabase…

Essa é a proporção de crescimento da sequência de Fibonacci. Desenhando a sequência iremos conseguir uma espiral cujo vértice é definido pelo número que inicia a sequência a que o baterista Danny Carey recorre múltiplas vezes no álbum “Lateralus”, de onde brotou “Schism”. Quiçá o tema mais aclamado no concerto, com a Arena rendida à incomparável abertura do baixo e progressiva integração com a bateria e guitarra num ritmo que parte dum desenho 6,5/8, até todo o tipo de configurações. A bridge da canção foi alargada, através de arranjos de maior intensidade, estridência e distorção. Aliás, durante todo o concerto, a banda tocou cada um dos temas sem qualquer ansiedade, focando-se com precisão em cada nota, em cada dinâmica, em cada silêncio, numa actuação que, em momentos, tocou a perfeição.

ZARATHUSTRA

Essa focagem da banda, de cada elemento, no todo e na individualidade da execução foi extraordinária. A última vez nesta sala, na altura, ainda chamada Atlântico, não teve esta dimensão. E a remodelação sonora que revestiu cada um dos temas, beneficiou as novidades como “Invincible”. Iniciada com exóticas percussões. Brevemente pausada. Ovacionada, ainda como reflexo da indução de euforia provocada por “Schism”. Inicia-se num dedilhado progressivo e cresce firme e lentamente até um epílogo fenomenal, através de um groove simples, ultra trancado, denso e pesado. E por falar em peso, “Intolerance” fez prova de que as composições de “Undertow” mantém intacto todo o seu poder.

A ferocidade crescia, intercalada por breves segundos pela estranha percussão que introduziu “Jambi”. E talvez sejamos obrigados a rever essa história de poder. Colado a “Forty Six & 2”, ouviu-se o momento de maior impacto da amplificação de Adam Jones. O som nos power chords finais deste último tema… Cruzes, credo! Uma colossal parede de potência valvulada, que agora que os Tool saíram para intervalo, podemos rever esses rigs [artigo em remodelação, podem ver temporariamente aqui].

O intervalo terminou quando Danny Carey se sentou atrás do kit para o seu tremendo solo de bateria. A aparatosa nova tarola, obra da VK Drums, não teve um papel visualmente preponderante no solo, apesar de alguma expectativa. Não que isso tenha, de forma alguma, diminuído o que quer que fosse nesta noite memorável. Aliás, quando os Tool introduziram “Vicarious”, os três instrumentistas aumentaram-nos o assombro através de um detalhe, executando uma pausa de semínima de forma extraordinária, como se fosse um prego propositado, ou seja, um “não-prego”. Sobre-humano. Assim falou Zarathustra!

Como foi hábito nesta digressão europeia que terminou em Lisboa, Maynard dirigiu-se ao público, permitindo (devido ao «bom comportamento») que os telefones pudessem agora fotografar ou filmar “Stinkfist”. A banda terminou com o início, através do álbum “Ænima”. Já fora da Altice Arena, um tipo pediu-me um cigarro. Acedi e perguntei-lhe se achava que tinha sido o melhor concerto dos Tool no nosso país. Ele, um gajo do Norte, respondeu que tinha visto todos, «que o primeiro, no Ozzfest em 2002, foi especial», talvez por ter sido o primeiro foi o seu favorito, mas que «este foi uma experiência quase religiosa». O meu favorito, pelo seu poder prímevo de volume, foi o do Super Bock Super Rock, em 2006. De resto, concordo em absoluto.

SETLIST

  • Ænema
    The Pot
    Parabol
    Parabola
    Descending
    Schism
    Invincible
    Intolerance
    Jambi
    Forty Six & 2
    Vicarious
    Stinkfist